segunda-feira, 15 de outubro de 2012

São Paulo Companhia de Dança por Cibele Sastre


Eu ainda não tinha assistido à SPCD. Foi minha primeira vez. A primeira impressão tem que ser boa para haver empatia. Nada melhor do que um Balanchine para quebrar o gelo! Depois dele, um ar nostálgico que irrompe com o trabalho de Nacho Duato, coreógrafo que assisti nos áureos tempos do Carlton Dance Festival. Parece que quanto mais o tempo passa maior é a 'novelinha que passa na cabeça' quando vemos trabalhos que um dia fizeram parte de nossos ideais artísticos. O tempo passa, artistas se consagram, repertórios tornam-se referências. Impressões e apreciações andam juntas não por serem duas simétricas e lineares companheiras, mas por serem convergentes na definição e atualização do olhar. Com menor referência sobre o terceiro trabalho apresentado na noite do dia 22 de setembro, Supernova inaugurou em mim a sensação de doce estranhamento da noite. O programa não podia ser mais expressivo da  variedade a que a Cia se dedica. Reforça o impressionante domínio do movimento de um grupo nem tão homogêneo assim. Nada mais emblemático do que o comentário da querida pessoa que sentou ao meu lado, por acaso, uma adulta que já fez aula de dança moderna comigo nos idos anos 90, dizendo-me responsável por desenvolver seu gosto pela apreciação da dança: “nem precisa entender nada. A gente sente tudo.” Sem saber a ordem do programa, depois de Balanchine não sabíamos o que vinha: “[…] nem precisa dizer qual é o espanhol e qual é o alemão”. Voltei feliz da vida aos anos 90.
A companhia me surpreende por sua performance, entendida aqui como desempenho. Não vamos falar de physique de role quando se fala de Balanchine, claro. A oportunidade que a SPCD nos dá ao incluir em seu repertório Tema e variações é um presente raro e que talvez poucos saibam apreciar. De que ballet se fala quando se tem à frente uma coreografia de Balanchine? O jogo coreográfico das variações de movimentos do ballet me convida a apreciá-lo como raramente consigo fazer. Que sutil operação nos apresenta este coreógrafo, com efeitos esplendorosos. A Companhia, comprometida com a presentificação de repertórios de coreógrafos consagrados nem sempre em circulação pelo Brasil, além de comprometer-se com o rigor de cada obra e coreógrafo, nos mostra a excelência de um grupo afinado e preciso. Feito no Brasil.
Natcho Duato rompe com a suspensão que a sinergia dos corpos havia produzido no público. Ele traz de volta para esta conversa corporal, que é o melhor modo de apreciar dança, um ritmo enraizado na coluna vertebral, e mesmo em nossa kundaline. Como nos diz Laurence Louppe, o tônus postural fala à consciência do espectador. Eu diria também que a soltura articular rearticula e amplia nosso senso de corpo. Nada mais evidente disso do que os espantos de tantos: “nossa, a gente não tem ideia do que um corpo pode”. Cada singularidade é instigante e fecunda. Saímos do teatro com a certeza de que nossos corpos podem muito mais do que o que deles dispomos. Saímos todos mais bailarinos, primitivos e especializados. A excelência de uma performance corporal como esta mora na disponibilidade dos corpos dos bailarinos ao treinamento saboreado, técnico e poético, desdobrado não só na produção coreográfica, mas também em projetos sociais que a cia proporciona, em seu exercício de articulação entre dança e sociedade. Com isso, cumpre um papel vital para a própria existência, afinal, a discussão sobre o investimento público nas artes está sempre na pauta de quem é atuante e nem sempre compactua com o valor dado às grandes companhias de dança.
Supernova parece compor o estranhamento com elementos ora racionais ora sensoriais. Visualizamos a energia que circula no palco através de corpos que se condensam e se expandem. O espaço se torna visível pelo tratamento dado ao movimento: a relação corpo-espaço do mestre Laban é aqui matéria visual e composicional. Condensar, neste caso, não é comprimir o corpo, mas potencializar a energia em circulação no espaço dentro e fora do corpo. Condensar potencializa a rápida explosão esférica, com acentos espaciais lineares pontuando nosso olhar para a tal relação corpo-espaço, desenhando o que Laban chamou de ritmos espaciais. A trilha sonora recheada de múltiplas informações não permite qualquer acomodação catártica. Razão e emoção operam juntas na composição dos diversos elementos desta dança. Fechar o programa com esta obra valoriza-a, valorizando também o aquiagora de cada um.
Conhecer Marko, Duato, Balanchine em corpos brasileiros alimenta nosso desejo estético de dança, nos mostra não só o que as maravilhosas coreografias podem nos mostrar, mas também, o quanto é possível vê-las em corpus brasilis. Eu sempre alimento um desejo de assistir obras com as cias. para as quais elas foram criadas e a SPCD flexibilizou esse desejo. A dança precisa de apreciadores. Ser meio de difusão de trabalhos consagrados é tornar viva a relação entre a dança e seu público. Compreender esta função pode/deve ajudar a fortalecer nosso trabalho como criadores e como educadores em dança em qualquer nível. Saio do espetáculo mobilizando a espinha, condensando gestos, explodindo-os mais tarde em formas que não se aproximam do que foi visto, disparam novam concepções. E há sempre um prazer, lá dentro do abdômen, quando alguém diz: é por tua causa que eu estou aqui no teatro!
 
*Cibele Sastre é bailarina e professora de dança