Eu ainda não tinha assistido à
SPCD. Foi minha primeira vez. A primeira impressão tem que ser boa para haver
empatia. Nada melhor do que um Balanchine para quebrar o gelo! Depois dele, um
ar nostálgico que irrompe com o trabalho de Nacho Duato, coreógrafo que assisti
nos áureos tempos do Carlton Dance Festival. Parece que quanto mais o tempo
passa maior é a 'novelinha que passa na cabeça' quando vemos trabalhos que um
dia fizeram parte de nossos ideais artísticos. O tempo passa, artistas se consagram,
repertórios tornam-se referências. Impressões e apreciações andam juntas não
por serem duas simétricas e lineares companheiras, mas por serem convergentes
na definição e atualização do olhar. Com menor referência sobre o terceiro
trabalho apresentado na noite do dia 22 de setembro, Supernova inaugurou em mim
a sensação de doce estranhamento da noite. O programa não podia ser mais
expressivo da variedade a que a Cia se
dedica. Reforça o impressionante domínio do movimento de um grupo nem tão
homogêneo assim. Nada mais emblemático do que o comentário da querida pessoa
que sentou ao meu lado, por acaso, uma adulta que já fez aula de dança moderna
comigo nos idos anos 90, dizendo-me responsável por desenvolver seu gosto pela
apreciação da dança: “nem precisa entender nada. A gente sente tudo.” Sem saber
a ordem do programa, depois de Balanchine não sabíamos o que vinha: “[…] nem
precisa dizer qual é o espanhol e qual é o alemão”. Voltei feliz da vida aos
anos 90.
A
companhia me surpreende por sua performance, entendida aqui como desempenho.
Não vamos falar de physique
de role quando se fala de Balanchine, claro. A oportunidade que a SPCD nos
dá ao incluir em seu repertório Tema e variações é um presente raro e que
talvez poucos saibam apreciar. De que ballet se fala quando se tem à
frente uma coreografia de Balanchine? O jogo coreográfico das variações de
movimentos do ballet me convida a apreciá-lo como raramente consigo
fazer. Que sutil operação nos apresenta este coreógrafo, com efeitos
esplendorosos. A Companhia, comprometida com a presentificação de repertórios
de coreógrafos consagrados nem sempre em circulação pelo Brasil, além de
comprometer-se com o rigor de cada obra e coreógrafo, nos mostra a excelência
de um grupo afinado e preciso. Feito no Brasil.
Natcho
Duato rompe com a suspensão que a sinergia dos corpos havia produzido no
público. Ele traz de volta para esta conversa corporal, que é o melhor modo de
apreciar dança, um ritmo enraizado na coluna vertebral, e mesmo em nossa
kundaline. Como nos diz Laurence Louppe, o tônus postural fala à consciência do espectador. Eu diria
também que a soltura articular rearticula e amplia nosso senso de corpo.
Nada mais evidente disso do que os espantos de tantos: “nossa, a gente não tem
ideia do que um corpo pode”. Cada singularidade é instigante e fecunda. Saímos
do teatro com a certeza de que nossos corpos podem muito mais do que o que
deles dispomos. Saímos todos mais bailarinos, primitivos e especializados. A
excelência de uma performance corporal como esta mora na disponibilidade dos
corpos dos bailarinos ao treinamento saboreado, técnico e poético, desdobrado
não só na produção coreográfica, mas também em projetos sociais que a cia
proporciona, em seu exercício de articulação entre dança e sociedade. Com isso,
cumpre um papel vital para a própria existência, afinal, a discussão sobre o
investimento público nas artes está sempre na pauta de quem é atuante e nem
sempre compactua com o valor dado às grandes companhias de dança.
Supernova
parece compor o estranhamento com elementos ora racionais ora sensoriais.
Visualizamos a energia que circula no palco através de corpos que se condensam
e se expandem. O espaço se torna visível pelo tratamento dado ao movimento: a
relação corpo-espaço do mestre Laban é aqui matéria visual e composicional.
Condensar, neste caso, não é comprimir o corpo, mas potencializar a energia em
circulação no espaço dentro e fora do corpo. Condensar potencializa a rápida
explosão esférica, com acentos espaciais lineares pontuando nosso olhar para a
tal relação corpo-espaço, desenhando o que Laban chamou de ritmos espaciais. A
trilha sonora recheada de múltiplas informações não permite qualquer acomodação
catártica. Razão e emoção operam juntas na composição dos diversos elementos
desta dança. Fechar o programa com esta obra valoriza-a, valorizando também o
aquiagora de cada um.
Conhecer
Marko, Duato, Balanchine em corpos brasileiros alimenta nosso desejo estético
de dança, nos mostra não só o que as maravilhosas coreografias podem nos mostrar,
mas também, o quanto é possível vê-las em corpus brasilis. Eu sempre
alimento um desejo de assistir obras com as cias. para as quais elas foram
criadas e a SPCD flexibilizou esse desejo. A dança precisa de apreciadores. Ser
meio de difusão de trabalhos consagrados é tornar viva a relação entre a dança
e seu público. Compreender esta função pode/deve ajudar a fortalecer nosso
trabalho como criadores e como educadores em dança em qualquer nível. Saio do
espetáculo mobilizando a espinha, condensando gestos, explodindo-os mais tarde
em formas que não se aproximam do que foi visto, disparam novam concepções. E
há sempre um prazer, lá dentro do abdômen, quando alguém diz: é por tua causa
que eu estou aqui no teatro!
*Cibele Sastre é bailarina e professora de dança
2 comentários:
Oi...agradecemos o texto e a dica.
Ótimas dicas. Gostei muito do artigo e estou adicionando seu site aos meus favoritos!
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