segunda-feira, 15 de outubro de 2012

São Paulo Companhia de Dança por Cibele Sastre


Eu ainda não tinha assistido à SPCD. Foi minha primeira vez. A primeira impressão tem que ser boa para haver empatia. Nada melhor do que um Balanchine para quebrar o gelo! Depois dele, um ar nostálgico que irrompe com o trabalho de Nacho Duato, coreógrafo que assisti nos áureos tempos do Carlton Dance Festival. Parece que quanto mais o tempo passa maior é a 'novelinha que passa na cabeça' quando vemos trabalhos que um dia fizeram parte de nossos ideais artísticos. O tempo passa, artistas se consagram, repertórios tornam-se referências. Impressões e apreciações andam juntas não por serem duas simétricas e lineares companheiras, mas por serem convergentes na definição e atualização do olhar. Com menor referência sobre o terceiro trabalho apresentado na noite do dia 22 de setembro, Supernova inaugurou em mim a sensação de doce estranhamento da noite. O programa não podia ser mais expressivo da  variedade a que a Cia se dedica. Reforça o impressionante domínio do movimento de um grupo nem tão homogêneo assim. Nada mais emblemático do que o comentário da querida pessoa que sentou ao meu lado, por acaso, uma adulta que já fez aula de dança moderna comigo nos idos anos 90, dizendo-me responsável por desenvolver seu gosto pela apreciação da dança: “nem precisa entender nada. A gente sente tudo.” Sem saber a ordem do programa, depois de Balanchine não sabíamos o que vinha: “[…] nem precisa dizer qual é o espanhol e qual é o alemão”. Voltei feliz da vida aos anos 90.
A companhia me surpreende por sua performance, entendida aqui como desempenho. Não vamos falar de physique de role quando se fala de Balanchine, claro. A oportunidade que a SPCD nos dá ao incluir em seu repertório Tema e variações é um presente raro e que talvez poucos saibam apreciar. De que ballet se fala quando se tem à frente uma coreografia de Balanchine? O jogo coreográfico das variações de movimentos do ballet me convida a apreciá-lo como raramente consigo fazer. Que sutil operação nos apresenta este coreógrafo, com efeitos esplendorosos. A Companhia, comprometida com a presentificação de repertórios de coreógrafos consagrados nem sempre em circulação pelo Brasil, além de comprometer-se com o rigor de cada obra e coreógrafo, nos mostra a excelência de um grupo afinado e preciso. Feito no Brasil.
Natcho Duato rompe com a suspensão que a sinergia dos corpos havia produzido no público. Ele traz de volta para esta conversa corporal, que é o melhor modo de apreciar dança, um ritmo enraizado na coluna vertebral, e mesmo em nossa kundaline. Como nos diz Laurence Louppe, o tônus postural fala à consciência do espectador. Eu diria também que a soltura articular rearticula e amplia nosso senso de corpo. Nada mais evidente disso do que os espantos de tantos: “nossa, a gente não tem ideia do que um corpo pode”. Cada singularidade é instigante e fecunda. Saímos do teatro com a certeza de que nossos corpos podem muito mais do que o que deles dispomos. Saímos todos mais bailarinos, primitivos e especializados. A excelência de uma performance corporal como esta mora na disponibilidade dos corpos dos bailarinos ao treinamento saboreado, técnico e poético, desdobrado não só na produção coreográfica, mas também em projetos sociais que a cia proporciona, em seu exercício de articulação entre dança e sociedade. Com isso, cumpre um papel vital para a própria existência, afinal, a discussão sobre o investimento público nas artes está sempre na pauta de quem é atuante e nem sempre compactua com o valor dado às grandes companhias de dança.
Supernova parece compor o estranhamento com elementos ora racionais ora sensoriais. Visualizamos a energia que circula no palco através de corpos que se condensam e se expandem. O espaço se torna visível pelo tratamento dado ao movimento: a relação corpo-espaço do mestre Laban é aqui matéria visual e composicional. Condensar, neste caso, não é comprimir o corpo, mas potencializar a energia em circulação no espaço dentro e fora do corpo. Condensar potencializa a rápida explosão esférica, com acentos espaciais lineares pontuando nosso olhar para a tal relação corpo-espaço, desenhando o que Laban chamou de ritmos espaciais. A trilha sonora recheada de múltiplas informações não permite qualquer acomodação catártica. Razão e emoção operam juntas na composição dos diversos elementos desta dança. Fechar o programa com esta obra valoriza-a, valorizando também o aquiagora de cada um.
Conhecer Marko, Duato, Balanchine em corpos brasileiros alimenta nosso desejo estético de dança, nos mostra não só o que as maravilhosas coreografias podem nos mostrar, mas também, o quanto é possível vê-las em corpus brasilis. Eu sempre alimento um desejo de assistir obras com as cias. para as quais elas foram criadas e a SPCD flexibilizou esse desejo. A dança precisa de apreciadores. Ser meio de difusão de trabalhos consagrados é tornar viva a relação entre a dança e seu público. Compreender esta função pode/deve ajudar a fortalecer nosso trabalho como criadores e como educadores em dança em qualquer nível. Saio do espetáculo mobilizando a espinha, condensando gestos, explodindo-os mais tarde em formas que não se aproximam do que foi visto, disparam novam concepções. E há sempre um prazer, lá dentro do abdômen, quando alguém diz: é por tua causa que eu estou aqui no teatro!
 
*Cibele Sastre é bailarina e professora de dança

sábado, 29 de setembro de 2012

Fuerza bruta por Jeferson Cabral


A poesia megalomaníaca
Antes de assistir o espetáculo Fuerza bruta, ouvi diversos comentários sobre sua execução e a cada nova percepção me instigava mais para assistir, porque as opiniões eram divergentes. Algumas pessoas acharam o show incrível e outras comparam as grandes produções que não possuem sentido algum além da arte pela arte. Então, no espaço do Pepsi On Stage me decidi a entrar na onda extasiante que o espetáculo propunha, deixando assim os diversos depoimentos que ouvira para mergulhar no universo bruto da força humana.
O grupo argentino dirigido por Diqui James tem como poética teatral a investigação da performance show e está em cartaz com Fuerza bruta desde o ano 2005, em Buenos Aires. Uma de suas inspirações para essa hibridização artística é o grupo catalão Fura del Baus, que também pesquisa a arte como um evento e utiliza grandes maquinários para suas encenações.
Signifiquei três universos apresentados em Fuerza bruta, os vejo como números artísticos porque para criarmos um elo entre eles é uma tarefa difícil. A primeira atmosfera me remeteu à individualidade do ser humano em uma sociedade que está à frente de nosso tempo, em que as horas passam de uma maneira exacerbadamente veloz, em que nos fechamos em nossa cinesfera e assim vivemos os nossos problemas dialogando somente com nosso ser através da ventania do passar dos dias. O segundo universo contempla a atmosfera onírica que alimentamos ao deixarmos nossa mente transcender a materialidade da existência e revelar a poesia como poética da vida. Nesse aspecto vemos as ninfas contemporâneas soltas no universo acrobático e no oceano que reflete o céu violeta com corpos dançantes. Esse mundo poético me remeteu à infância, a liberdade que temos com a natureza e a necessidade de não arquitetar o amanhã. O último baseia-se no encontro entre as almas que comungam a diversão e celebram a vida, nesse momento somos transportados à tradição do povo argentino, mais especificamente de Buenos Aires. Na noite de Ano Novo, as pessoas usam a data para praticar o desapego. Elas jogam fora por suas janelas tudo aquilo que não será mais usado para dar boas vindas ao novo ano e celebram as novas possibilidades, e é lindo ver essa tradição em cena juntamente com a dança popular de nome Murga, que embalava os corpos do elenco flutuante.
Esse show nos preenche de energia com sua música, que atinge diretamente nosso ritmo interno e é quase indescritível a sensação de estar vivo. Os performers desse trabalho são instrumentos de exaltação da energia e por algumas vezes tornam-se parte da grande massa que vivencia esse momento ímpar.
Em alguns momentos pensei sobre a evolução da história nos corpos de quem a assistia. A interpretação de nosso corpo no espaço nesse acontecimento é algo para se pensar, pois diversas vezes me senti induzido a acompanhar a multidão que se apertava sem estar disposto a isso, como algo imposto. Talvez, essa sensação tenha feito com que muitas pessoas se sentissem incomodadas com o show.
Fuerza bruta significou uma viagem na própria existência humana entre a materialidade de nossa rotina e nossos momentos transcendentes e lúdicos, que significam o alcance de nossa mente em outro plano astral. Como no fim do show, devemos como seres humanos pularmos no abismo da existência e sentirmos a força da dádiva de viver com todas suas complexidades e belezas.
*Jeferson Cabral é graduando no Departamento de Arte Dramática da UFRGS

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Preferiria não? por Laura Backes


A que você preferiria dizer não?
 
Antes de ir assistir Preferiria não? de Denise Stoklos perambulei pela internet para saber um pouco mais sobre o espetáculo. Baseado no conto Bartleby, o escrivão, do estadunidense Melville, o personagem título dá eco a um tema que há muito tem me atraído: a necessidade de agir no mundo de forma desapegada. Desapegada de convenções, desapegada do comércio de afetos, desapegada do consumo. Em um tempo que nos impõe diversos must have, must do, must see - que nos oferece uma avalanche de imagens, textos, ideias - criar espaços vazios para si, para o mundo, é imensamente necessário. A que preferiríamos dizer não? 
No conto - que Denise reproduz no palco mesclado a comentários pessoais sobre política e sobre as exigências impostas a artistas no mundo dos editais e patrocínios - Bartleby é um funcionário de um escritório que começa a dizer “Preferiria não [fazer]” às diversas tarefas que lhe são pedidas. Entre intrigado e encantado, alternando raiva e pena, seu patrão é incapaz de confrontá-lo.  
Há algum tempo tenho me dado conta que também eu tenho me encantado com personagens que apresentam essa recusa às convenções mundanas. Eles aparecem nos filmes que mais me marcaram ao longo da minha vida, apresentando esse desapego sob diversas facetas.
Há o sábio ermitão arquetípico Dersu Uzala (do Kurosawa), que vive em meio às florestas. Ou o jovem retratado por Sean Pean em Na natureza selvagem – baseado em uma história real - que recusa seu passado burguês e queima todo o seu passado em busca de um contato desapegado com o mundo e a natureza, mas cuja ingenuidade em dimensionar sua pouca experiência lhe reserva um fim fatal. 
Um outro personagem marcante é a mochileira vivida por Sandrine Bonnaire em Sem teto nem lei, de Agnès Varda, que em seu caminho recusa qualquer comércio afetivo, qualquer dever de civilidade: reage ao presente, somente isso. Há ainda aqueles o que recolhe para se dedicar à arte como o músico de Todas as manhãs do mundo, de Alain Corneau. 
Entretanto, a recusa de Bartleby é mais extrema. Ele não almeja nenhuma sabedoria, nenhuma transcendência, nenhuma aventura. Até chegar ao extremo de recusar comida, recusar à vida: morrer. Denise alerta na peça que psicanalistas o veem como esquizofrênico: nem desejo sequer ele tem. E filósofos como um ícone da desobediência civil, o exercício do livre arbítrio em sua totalidade: parar o sistema. Mas ele não quer ser ninguém e espelha nossa vontade de também abrir mão de tudo. De não querer ter uma utilidade, um fim. Sua loucura expõe nossas feridas. Desconfia daquele que se encaixa demasiadamente ao sistema doentio do mundo.
Ao começar o espetáculo não se tem dúvida nenhuma do domínio que Denise tem de seu corpo (ela desenha gestos no espaço absolutamente precisos) e voz (projetada, clara, cheia de nuances). Ela nos transporta para onde ela quer transportar. O palco é quase nu: estantes de partituras espalhadas, com livretos no qual se lê o nome de Bartleby; uma mesa. O domínio se estende ao tempo cômico. Vários aplausos em cena aberta. Como quando ela diz que cagar e andar é o suprassumo da maturidade.
Também eu ri. Mas aos poucos parei. O excesso de piadas passou a me incomodar. Parecia-me que os gestos eram excessivos, que eram demasiadas as piadas, que elas não estavam ali para ajudar a penetrar na beleza da recusa de Bartleby: a beleza de ser inútil, de NÃO SERVIR. A sensação que tenho é que Denise não conseguiu se despojar totalmente de suas muletas, não abriu mão do riso fácil do público.Que ainda não consegue dizer não a muitas coisas às quais ela gostaria. Não ousou se entregar totalmente à beleza selvagem da inutilidade.
Bartleby pede menos. Ele pede um despir-se de qualquer excesso. O essencial: um lugar pra dormir, um pequeno pedaço de queijo envolto no jornal. É justo na cena na qual o narrador/patrão examina os humildes pertences de Bartleby que o espetáculo revela sua alma. 
Ao final da peça, resisti um pouco, mas por fim levantei pra aplaudir. Mas não estava aplaudindo por estar revigorada com a peça. Aplaudi a imensa atriz que estava à minha frente. Agora que já se passaram alguns dias, sei que aplaudo também a escolha de Bartleby. Mas ainda não sei se só aplaudi de pé por que não tive coragem de dizer que preferiria não.
 
*Laura Backes é atriz

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Vencedores do 7º Prêmio Braskem em Cena

Foram divulgados, na noite de 24 de setembro, em cerimônia no Teatro do Bourbon Country, os vencedores do Troféu Braskem. A comissão julgadora foi composta pelos jornalistas Alice Urbim, Fábio Prikladnicki, Michele Rolim e Vera Pinto.
 
Melhor Espetáculo pelo Júri Popular:
INCIDENTE EM ANTARES, do Grupo Cerco
 
 
Melhor Atriz:
MARTINA FRÖHLICH, por Incidente em Antares
 
 
Melhor Ator:
ROBERTO OLIVEIRA, por Um verdadeiro cowboy
 
 
Melhor Direção:
INÊS MAROCCO, por Incidente em Antares
 
 
Melhor Espetáculo:
BREVES ENTREVISTAS COM HOMENS HEDIONDOS, do Teatro Sarcáustico

Antes do silêncio por Tatiana Cardoso


Antes do silêncio, montagem mineira, é uma livre adaptação da obra de Samuel Beckett., em que o excelente ator Rodolfo Vaz contracena com a atriz Kelly Criffer. A imagem inicial é sugestiva: o ator sentado de costas pra plateia, com o chapéu apoiado nos ombros, parecendo um espécie de homem sem cabeça ou então de uma cabecinha esmagada pelo peso do mundo. O cenário, um amontoado de cadeiras, cama, objetos empilhados, lembram uma casa abandonada, um beco ou um lugar em ruínas. Uma grande janela atrás, que serve de sugestão de interior e algumas vezes também de exterior, de onde a mulher aparece aos olhos do homem.  
No início da peça o homem, ainda de costas, levanta lentamente o chapéu e no lugar da cabeça, o vazio. Em seguida leva a cabeça ao chapéu, criando um gesto potente de significados, por ser exatamente o contrário do habitual.  
O personagem conta quando seu pai diz: Chegou a hora de você ter seu chapéu. E o filho homem, narrador de sua história, comenta diretamente ao público: Como se o chapéu já existisse antes, como se já estivesse em um lugar determinado. E lemos que talvez o vazio do buraco do chapéu ou o oco do seu mundo já esperasse sua cabeça, de antemão. Um bom começo que é amassado por um texto sem fim.  
O ator personagem muito próximo do proscênio dirige-se diretamente à plateia narrando fragmentos de sua vida e destrinchando sua visão de mundo, sua condição  diante de sua história e sobretudo diante das lembranças de uma mulher.  
Os momentos em que a cena sugere a lembrança do velho, quando a lembrança se torna corporificação de um encontro impedido pela própria impotência diante do amor, em jogos de sensualidade e desconforto do homem são os momentos mais potentes da peça, criando imagens que quase chegam a nos lembrar da realidade árida do mundo de Beckett.  
Mas o texto é o mais importante na peça, sendo apresentado o tempo todo numa narração do personagem com o público, num discurso direto. Alguém que fala, fala e fala e justamente por isso cria uma incongruência entre o discurso e a ação - a ideia de criar espaços entre as palavras – de criar espaço para o silêncio ou de prepará-lo.  
Antes do silêncio é fala e uma fala fechada, toda dada pela voz do personagem que não gera suporte para os vazios e para o inusitado de personagens presos em um mundo sem saídas, que o próprio Beckett propõe o tempo todo em sua obra. O silêncio do título, o silêncio irreversível da escuta e do acontecimento quase não tem vez na peça, o que gera uma espécie de previsibilidade e monotonia restritiva e não potente, apesar de ser claro que não é isso que o grupo quer passar. Sou posta mais como ouvinte passiva das palavras do homem que como testemunha de um pensamento, de um movimento que estaria escondido por detrás destas palavras. Isso não me permite criar relações com um outro tempo, com um outro mundo, ou seja, com a de outros homens ou com a  minha própria realidade de espectadora, que não aquela daquele homem específico e suas voltas com suas lembranças. Essa restrição do discurso, tão direta, leva a lugares predeterminados, ou seja de um teatro fechado, dado, previsível.  
Mas claro, nem tudo é só formalmente fechado, acontecem boas escolhas de algumas ações que são mais abertas simbolicamente, como o giro do homem com um braço nas costas como a de um cachorro correndo atrás do próprio rabo, o jogo quente e sensual entre os atores e a imagem final do homem assistindo imobilizado o vulto distante da mulher pela janela, um não amor, um não encontro, uma não realização diante da vida.  
Destaco o desenho incrivelmente sensível da luz, que engrandece as intenções da montagem criando um clima denso, quente, profundo. A iluminação sim estimula nossa imaginação e nos transporta prum mundo mortalmente vivo, humano, cheio de contornos, arestas, sombras e mistério.  
Apesar de em alguns momentos as palavras de Beckett se elevarem e retumbarem aos nossos ouvidos diante do aparato cênico, em Antes do silêncio o texto é dado - como encenação e não como atuação - num ritmo monótono e linear perdendo sua força justamente porque é um texto que deveria ser ouvido, visto, sentido, como um corpo por si só. Confesso que pra mim o resultado final beira mais a um filme noir – sem querer menosprezar os filme noir, que adoro, mas simplesmente porque parece que aquele espaço vazio preenchido pela encenação não parece que toca no ponto que se inspira, o de um mundo sem saída, sem lugar, tragicômico e delirante de Beckett.  
Gostei muito do seu poeminha disse alguém a Mario Quintana. Obrigada pela sua opiniãozinha respondeu o poeta. Pois essa é minha opiniãozinha: Assisti à peça sem me deixar afetar – apesar de ter querido. 
 
*Tatiana Cardoso é atriz, professora da graduação em Teatro: Licenciatura da UERGS e diretora do Teatro Torto

Estamira- beira do mundo por Mauricio Guzinski


Estamira é mulher-mistério, é “beira-do-mundo”, indecifrável, inexplicável. E é melhor, mesmo, nem tentar decifrar, sequer explicar seus enigmas; basta aceitar sua existência, deixar-nos ser tocados pelo olhar, pela mirada desta pobre, “ignorante e sábia” mulher, para cruzarmos a ponte, experimentada e oferecida por ela a todos nós, entre aquilo que mais tememos – loucura, doença e morte – e o que mais ansiamos – transcendência. 
Mulher sofrida e lúcida, como a Dolor de Jorge Andrade, em Vereda da salvação. Santificada, como essa, pelo martírio da vida dos “sem nada” – nem terra, nem teto – pra chamar de seu. Pura, como a Virgem Santíssima, mas estuprada, como tantas outras Marias. Delirante, como o “filho de Dolor” (filho da dor, das dores do mundo); transtornada, como aquele Joaquim, Cristo das Roças, que via o Demônio, em tudo e todos, naquela vereda, e que enxergava Deus somente dentro de si mesmo (sem outra salvação do que aquela prometida pelo “Santo Livro”). 

Dolor: (Em Vereda da salvação) Botei tanto filho no mundo! (...) Carpi roça com filho pendurado nos peito. Velei filho, com filho pendurado nos peito. Foi o que deixei nas fazenda: um filho em cada uma. Mas, deixei embaixo da terra! Meus olho e meu corpo deitou mais água na terra que as nuvem do céu. Sou! Sou Maria das pureza. (...) Sofri pra meus filho nascer... e agoniei mais ainda pra eles morrer. A Maria do livro perdeu um filho na cruz. Eu perdi oito! Na cruz tenho vivido eu.
A "lucidez” de Dolor vem de seu criador, vem da poesia-dramática de Jorge Andrade, um gênio da dramaturgia brasileira (o maior de todos, em minha opinião, até o momento), inspirado pela tragédia real de Catulé, em que agregados de uma fazenda que jejuavam, durante a semana de penitências de sua religião – o Adventismo da Promessa – passaram a ter visões da “Terra Prometida”; e foram todos (homens, mulheres e crianças) assassinados pelos capangas do dono das terras, no interior de Minas, em 1955.
De onde vem a “lucidez” de Estamira? Sua fala “delirante”? Quem fala, através dela? Demônios, Anjos, extraterrestres que a abduziram para implantar um chip em seu cérebro (um “controle remoto”); após o segundo estupro do qual ela foi vítima, aqui, na Terra? Estupro que trouxe à luz sua filha (invisível) Sirena e, mais tarde, outros tantos filhos (visíveis): Marcos Prado, Dani Barros, Beatriz Sayad e a mim mesmo. Herdeiros ansiosos por propagar o legado de “nossa santa mãezinha”. Onde (e como?) a “santinha do lixão” encontrou meios de desenvolver sua “sabedoria”? Teria ela projetado sua consciência para acessar seus “arquivos akáshicos”, seus registros etéricos?
Estamira teria encontrado, no lixão de Gramacho, em algum cantinho escondido de seu “prejudicado e privilegiado” cérebro, a morada de seu próprio poder, o poder Superior, Deus?! O Todo, o Tudo, o Universo, o Infinito Astral, a Unidade, o Divino em Si Mesma, em Nós? ou...O Nada, o Grande Vazio? Como Buda, Jesus, Francisco de Assis, Teresa de Ávila, Agostinho, Joana D’Arc e tantos outros homens e mulheres iluminados? Através de um jejum prolongado? Do automartírio? Ou da simples loucura? Todas ou nenhuma dessas possibilidades? 

Ela, como Dolor (fictícia) e Artaud (real), parece ter decidido “acabar com o juízo de Deus”, rebelar-se contra o poder dele, para acessar o seu, a sua própria divindade. Não fosse o seu “desequilíbrio”, sua “falta” de conhecimento e estrutura, talvez pudesse ter sido uma líder religiosa, como Antônio Conselheiro ou Jacobina; uma filósofa, como Nietzsche; uma santa, como Teresa de Ávila ou Joana D’Arc. Poderia ser canonizada por sua atitude ecológica, frente ao “descuido” de todos com a vida do planeta. O seu amor pelos “bichinhos” da Terra lembra, de perto, a pureza, a beatitude de Chico de Assis. Que beleza “o sabiá”, segundo o olhar de Estamira! Que poder, o de um simples coqueiro! Pura poesia, como a poesia pura de Manoel de Barros. Mesmo assim, creio que o Vaticano e o Papa jamais irão reconhecer nossa catadora de lixo como a Santa Padroeira do Jardim Gramacho, Santa Protetora dos loucos mansos, das margens do Guaíba às do Sena.

Segundo seu próprio filho, Estamira tinha “um encosto” (o do “coisa ruim”, do “bicho caviloso” visto só pelo Joaquim, na obra de Andrade). Segundo os médicos (aqueles que só sabem dizer: “Fala!”, diante da angústia de seus pacientes), ela teria esquizofrenia paranoide (que se trata com um “dopante”, só pra esconder os indesejáveis sintomas).
De acordo com um artigo psiquiátrico (publicado no webartigos.com), “Estamira é tachada como louca, porém, apresenta muitos momentos de lucidez e crítica social, fazendo com que se torne possível mudar a perspectiva e visão sobre a esquizofrenia. Estamira trabalha, cozinha, pega ônibus, convive com seus filhos, sua esquizofrenia não faz dela um monstro. Falamos (...) de como a psicanálise vê esse distúrbio da ordem do delírio e da cisão entre o ego e o real”. 

Tempos atrás, ela poderia ter sido enquadrada, também, na tese ultrapassada de Michael Persinger, cientista que tentou provar a existência de um compartimento, no cérebro, responsável por nosso misticismo e a consequente criação dos deuses, por nós, humanos e mortais. Células que poderiam ser estimuladas por um impulso elétrico; quiçá também pelo uso do peyote (experimentado por Artaud e Castaneda), a ayahuasca (pelos xamãs, desde os Incas), os cogumelos, o LSD (pesquisado por Timothy Leary) ou outros tantos enteógenos (do grego: en = dentro ou interno + theo = deus ou divindade + genos = gerador; ou seja, gerador do deus interno, da divindade dentro de nós) ou pela loucura, em si. 

Segundo a diretora do espetáculo, Beatriz Sayad, (em entrevista concedida a Fernanda D’Angelo, para a Revista Personalité): “Ela tinha capacidade de refletir, poeticamente, o que pensava de Deus, da saúde, dos médicos, do lixo e da sociedade burguesa. Usava um vocabulário espetacular e muito claro sobre estas questões que, na nossa cabeça, às vezes se confundem.
Marcos Prado perpetuou “a mensagem” de Estamira em uma verdadeira obra de arte, seu documentário (imperdível) que já recebeu 25 prêmios, entre nacionais e internacionais (e que me faz chorar, quase do princípio até o fim, a cada vez que o assisto; obra que parece contradizer a teoria brechtiana de que o envolvimento do espectador prejudica sua tomada de consciência. Neste caso, ao contrário, potencializa!).
A releitura pós-dramática do documentário, feita por Beatriz Sayad e Dani Barros, ainda vai além ao misturar o resultado do encontro da atriz com “a doença” de Estamira e a de sua própria mãe, na vida real. O resultado de tantos encontros (incluindo o do histórico teatral da atriz com o da diretora) é uma outra obra de arte de extrema potência, poesia, delicadeza, sensibilidade, envolvimento e, até mesmo, do “verdadeiro” distanciamento crítico, postulado por Brecht. Méritos da atriz que, com sua incrível “mímesis corpórea”, traz Estamira, novamente, à vida, diante de nossa mirada estarrecida; ela sabe transitar, com perfeição, entre a incorporação da persona à narrativa dos acontecimentos de três histórias de vida (da visionária do lixão, a sua própria e a de sua mãe esquizofrênica); sabe orquestrar, com absoluto domínio, sua emoção e a nossa; e, acima de tudo, atinge uma “presença cênica” impressionante em momentos muito especiais do roteiro dramático. Entram para o meu rol de “antológicas”: a cena com a vassoura/cajado/cetro que traduz a imensa força da personagem, e a espetacular transformação do pavoroso lixão de Gramacho (um verdadeiro inferno), no próprio paraíso, na ascensão de Estamira aos Céus, em sua viagem através do Cosmo. Méritos da diretora e da atriz que merecem receber todos os prêmios e a consagração do público e da crítica, como já vem acontecendo.
É tudo muito simples (uma atriz, um banco, sacolas plásticas e muita dedicação) parece inacreditável que resulte neste belíssimo espetáculo! BRAVO!
Estamira Gomes de Souza morreu, aos 70 anos, em 26 de setembro de 2011, vítima do “descuido” do SUS, por septicemia, além de tantos outros “descuidos”, durante seu longo calvário. Entretanto, sua “delirante lucidez” terá longa vida na Arte (assim como a obra cinematográfica, de Prado, e a teatral, de Barros e Sayad. Ambas as versões já alcançaram a eternidade). Já canonizada pelo poder do artista, Estamira, assim como a personagem de Apocalipse segundo Santo Ernesto de la Higuera na peça do dramaturgo gaúcho Júlio Zanotta (texto sobre Che Guevara que irá a público, em leitura encenada, por mim, com “a nata” dos atores, bailarinos e músicos de Poa, dia 9 de outubro, às 20h, no Teatro de Câmara, com entrada franca), continua a oferecer rico e complexo material para a criação artística, podendo ser vista por estas e tantas outras diferentes miradas. Posso vê-la, desde já, ressuscitar na pele de muitas outras personagens, na ficção literária, cinematográfica e dramática. Posso ouvi-la dizendo palavras semelhantes às criadas por outro dramaturgo gaúcho, nosso genial Ivo Bender, para uma outra santinha (do fantástico Cabaré do autor): Erica Schmitt, no momento em que esta interrompe, revoltada, seu sono de morte, para interpelar seus fiéis (de forma sensacional e surpreendente):
Erica Schmitt: ...nem o demônio, nem Deus podem me socorrer. Os milagres que concedo a meus fiéis, não posso conceder a mim mesma. Todos pensam que morri virgem. Mentira. (...) morri nas mãos de um pai enfurecido! (...) Se existe inferno, é dentro de mim que ele arde. (...) Escutem: façamos um trato. Voltarei a cobri-los de milagres, atenderei o mais mesquinho desejo de quem me trouxer o meu camponês (o meu negro, de volta!). Quero ele vivo, porém. Jovem, inteiro. Esta gruta tem muitos nichos, desvãos escuros onde os sexos podem se cruzar. Agora, andem, saiam daqui, fora! Rolem pelas campinas, trepem com a simplicidade dos bichos e fiquem sabendo: milagre de hoje em diante, só depois de me trazerem o meu negro! Vamos, fora daqui! Fora daqui!
Onde estará Deus? Fora? Dentro de nós? Em toda a parte ou em lugar algum? Estas são questões que nos assaltam e assombram diante de Estamira, a mulher, o filme, a peça. Depende da mirada, do olhar de cada um. NA ARTE! O Divino em nós está, “pelo menos”, na ARTE. Esse é apenas “um” dos meus pontos de vista!
BRAVO! BRAAVO! BRAVÔÔÔ! Muito mais prêmios e aplausos para Estamira! Gratidão eterna a Prometeu que nos deu a chama e a Dionísio que a transformou em Teatro!
*Mauricio Guzinski é ator, diretor e professor de teatro

Cartas de Maria Julieta e Carlos Drummond de Andrade por Zoravia Bettiol


Um espetáculo sensível e equilibrado
A peça alia o conteúdo intimista e amoroso da correspondência de Drummond e de sua filha Maria Julieta a uma cenografia que tem funcionalidade. A atriz Sura Berditchevsky narra, com muita expressividade, cronologicamente, o desenvolvimento de correspondência de ambos. Sura movimenta-se com naturalidade e desenvoltura no cenário bege com seu traje negro atemporal e os elementos dos cenários vão se transmutando em arquivos, mesas, bancos, cadeiras e berços assim como diversas placas na parede são suporte para projeção de vídeos, imagens fotográficas, documentos, e belos desenhos e pinturas com texturas e padrões de design de superfície criadas e/ou relacionadas à Maria Julieta. Esses elementos contribuem para transmitir o clima afetivo entre ambos, o contexto político e social do Brasil e do mundo e o tempo que se escoa.
O espetáculo torna-se mais dinâmico e rico porque Sura vai nos revelando objetos, livros, brinquedos e lembranças que estavam adormecidos, escondidos, nos elementos cenográficos e que oportunamente têm relação com o texto.
O texto, que inicia com a ingenuidade e a delicadeza das cartas de Maria Julieta menina vão dando lugar a uma relação mais madura e cúmplice com seu pai à medida que ela fica adulta. A trilha sonora muito bem escolhida colabora para nos dar a sensação de passagem do tempo. Um sentimento de melancolia, de saudade e tristeza, se insinua no final da peça pois o amor paterno não resistiu à perda da filha. Mas este sentimento não carrega saudosismo, nem melodrama, pois a Sura diretora e atriz e toda a sua equipe, conseguiram emocionar a plateia e realizar um bem equilibrado espetáculo de forma contemporânea.
*Zoravia Bettiol é artista plástica

El rey se muere por Desirée Pessoa

Com o Rei, morre uma oportunidade
Num cenário com clima onírico se desenvolve a trama de El rey se muere, espetáculo uruguaio criado a partir do texto de Eugène Ionesco, no qual o personagem central (rei Berenguer) tem seu encontro com a morte marcado desde o início da peça.
Elementos cênicos cujos materiais são leves e claros nos remetem imediatamente a um tempo passado, no qual o contato com o onírico era entendido frequentemente como um acesso do homem a uma dimensão desconhecida e, mesmo, próxima do divino. Daí, creio, seja proveniente a escolha deste ambiente para a ocasião de tratar deste tão caro tema ao ser humano que é o da morte.
Com um elenco notavelmente experimentado, o espetáculo tem marcações precisas e soluções de cena bastante funcionais.
A velocidade sempre ágil da encenação é sustentada de forma competente pelos seis atores, desde a abertura da peça – constituída pela apresentação do rei Berenguer. A decisão por este ritmo que se constrói sob o olhar do espectador foi tomada, ao que pude observar, na busca pelo tempo da comédia de Ionesco. Esta, por sinal, é composta por uma estrutura muito particular. Considero o humor do autor romeno tão específico quanto difícil de ser alcançado e executado com primor. O absurdo de suas comédias precisa ser procurado nos detalhes. O texto sinaliza aos criadores, muitas vezes, por uma linguagem metafórica aquilo que poderá ser aproveitado em cena, e se faz necessário estarmos atentos às suas indicações.
Um dos principais traços da obra de Ionesco é a proposta de levar os personagens e cenas a extremos. E é aí que, em minha opinião, El rey se muere do grupo uruguaio deixa um pouco a desejar. As atuações são um misto dos estilos farsesco, naturalista e melodramático. Porém, falta brilho (na falta de palavra melhor) no desempenho – e nos olhos – dos atores. Talvez isto tenha ocorrido apenas na ocasião em que assisti, por se tratar de uma apresentação em uma noite extremamente chuvosa, com um público que não preenchia a lotação do teatro. Nunca saberei, pois eis a tão complexa fatalidade do teatro, com a qual todos nós, que a este ofício nos dedicamos, temos de lidar: ele existe de forma única a cada noite. O que passou não se resgatará jamais. Por isso não tenho como afirmar se o aparente desânimo em alguns momentos dos atores se deve às condições singulares da noite em que presenciei a obra uruguaia. O fato é que, durante a encenação, tive a sensação de que a escolha pelo exagero, condizente com o texto original, não chegou a se concretizar em alguns momentos. Existe uma proposta de busca pelos extremos a cada cena, mas por vezes não atinge seu grau máximo. As marcações são muito bem executadas pelos atores, mas nem sempre o jogo acontece. As cenas não apresentam grandes surpresas de uma para a outra, então não vi também evolução na encenação.
O conflito cênico se estabelece a partir da evidência da morte do rei: este já não tem direito ao seu poder e não consegue se conformar. Neste personagem aparecem questões humanas de grande valor, e nisto consiste um dos dois maiores méritos do espetáculo: a validade de seu tema. A ruína, a caminhada rumo ao fim e o desejo de deixar um legado são abordados de forma comovente em alguns momentos. Da rainha à empregada, todos acusam Berenguer de suas injustiças enquanto governou. Em instantes já o estão tratando com glórias demasiadas (muitas delas nem mesmo verdadeiras dentro da ficção estabelecida), devido à hipocrisia que socialmente prevalece frente à morte de alguém. Enquanto isso, o moribundo pergunta à sua corte (e em verdade não querendo enfrentar a crueldade da resposta): “Por quanto tempo vão lembrar-se de mim?”. Complexa e comovente abordagem.
O segundo (e fundamental) mérito do espetáculo é o momento em que, sob meu ponto de vista, o acontecimento teatral atinge seu ápice na encenação criada. O ponto alto do espetáculo é a reflexão sobre o fardo do poder, significativamente trabalhada pelas palavras “isto não és tu”, tão bem ditas por Carla Moscatelli a Roberto Bornes. É neste momento em que o discurso aborda questões como imagem e máscaras que se vê o teatro que a atriz sabe fazer com excelência: até sua respiração consegue nos comover.
Paradoxalmente, a cena mais forte é exatamente o ponto mais frágil da encenação, pois é aí que percebemos que talvez a decisão inicial possa ter sido equivocada. O teatro que a grande atriz sabe fazer de melhor é outro, que não o estilo de peça adotado pela trupe. Anne Bogart diz que a escolha é sempre um ato de violência, no teatro. Afirma, no entanto, que esse ato violento é uma condição necessária para todos os artistas. Fico pensando, após assistir El rey se muere, o quanto, por vezes, sem consciência, mergulhados em nossos processos, somos fragilizados por nossa própria sensibilidade artística. Naquele que considero o melhor momento desta peça, ela nos revela a oportunidade que perdemos de assistir uma montagem de excelência, não fosse a escolha feita.
Simbolicamente, o grande clímax do espetáculo é justamente neste estilo tão diverso daquele em que o todo se desenvolve: quando o rei se vê abandonado por todos, é a primeira esposa a única que o acompanha no fatídico momento. Com a mão estendida, é ela que o conduz à morte. É o momento mais intimista desta obra. O silêncio eleva a plateia e a suspende. Há apenas uma luz recortada. O restante do palco, todo o tempo muito iluminado, agora é invadido por uma escuridão sombria. Aprecio este momento, especialmente, e volto satisfeita para casa.
*Desirée Pessoa é diretora de teatro e atriz. Diretora do Grupo Neelic e mestre em Artes Cênicas pela UFRGS

Pablo Held Trio por Marcelo Birck


A música do Pablo Held Trio se encaixa em um estilo normalmente definido como jazz, mas que, sem deixar de sê-lo, situa-se no rastro daquele momento em que o jazz se volta definitivamente para fora do seu contexto de origem, e desta forma tanto se expande quanto se dilui. No Brasil (e mesmo em outros países), tal tendência foi bastante associada ao catálogo da gravadora ECM, que teve inúmeros títulos lançados por aqui a partir dos anos 70. A apresentação começa com um solo do contrabaixista Robert Landfermann, disparado o melhor jogador em campo. Com uma sonoridade precisa e fazendo um uso refinado das dinâmicas, o solo caracterizou-se por poucas polarizações de notas, que quando ocorriam eram rapidamente abandonadas ou disfarçadas. No instante em que uma nota de referência por fim se estabelece, os demais músicos vão se juntando ao contrabaixista. Com o foco ainda voltado para o contrabaixo em função do tempo que durou o solo, aos poucos a atenção começa a passear entre as propostas dos três instrumentistas, em um exercício de escuta seletiva que pode fixar-se tanto nos instrumentos individuais quanto nas configurações das execuções simultâneas. É como se os espaços de atuação de cada um dos músicos fossem órbitas magnetizadas, cujas forças de atração e repulsão os mantêm em equilíbrio. Largamente fundamentado no improviso, este acordo musical vai se confirmando durante o concerto. Cada músico tem o seu espaço, e a partir destes são sugeridos hiatos, intersecções, atritos, encontros, paralelismos. A influência do free-jazz é evidente (inclusive com citação de Lonely woman, de Ornette Coleman). Os improvisos por vezes apresentam ideias consideravelmente simplificadas (Held em especial). É uma estratégia arriscada, mas que não deixa de ser interessante para inserção de contrastes. Ainda que alguns improvisos aparentem ser banais, tal percepção é na verdade induzida pelo confronto com as texturas mais complexas. A proposta pode não estar plenamente amadurecida, mas com certeza está bem encaminhada. No final das contas, o saldo é positivo, seja pelos méritos do trio ou pela oportunidade para refletir sobre os formatos que o jazz pode adquirir quando definitivamente seu contexto original está tão expandido quanto os limites do planeta.
 
*Marcelo Birck é músico

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Divergências por Marcelo Adams


Neste ano, o Porto Alegre em Cena não teve uma grande polêmica como a que se viu em outras edições (no ano passado, por exemplo, encontravam-se defensores e detratores aguerridos em relação à montagem de Pterodátilos). Identifiquei, no entanto, uma unanimidade e três demi polêmicas: a unanimidade foi a vinda do Berliner Ensemble com sua inesquecível Mãe Coragem e seu filhos. Não lembro de ter lido ou ouvido ninguém se pronunciar negativamente (de forma consistente), e que não tenha reconhecido as qualidades tanto da montagem tradicionalizante de Claus Peymann quanto da dramaturgia dialética de Bertolt Brecht. Um espetáculo como esse é mais do que apenas um evento, é uma aula de teatro ao vivo e na prática. Lê-se e escreve-se muito sobre o brechtianismo, mas quando temos oportunidade de ver à nossa frente suas ideias postas em práticas, o nível é outro, bem mais elevado.
 
As demi polêmicas: Deus da carnificina é apenas um veículo para atores televisivos, em que a dramaturgia não chega a dizer nada, ou um espetáculo ácido e com questões que nos incomodam? Yasmina Reza é uma dramaturga que conhece muito bem o seu ofício, que sabe se fazer visível e relevante no mundo contemporâneo. Não merece ela nosso respeito, por investir em teatro como expressão artística, em um mundo cada vez mais fragmentado e onde a interpretação de tudo o que se vê sobre o palco é jogado sobre o colo do público, entregando a ele toda a responsabilidade de dar sentidos ao que vê?
 
Por falar em fragmentação, eis a outra "polêmicazinha": Fuerza bruta é mais do que um amontoado de sequências técnica e visualmente bem construídas? Pode-se ler, nas curtas "esquetes" visuais (como a do homem que corre sem sair do mesmo lugar, e é "atacado" por uma parede de caixas de papelão) algo que reflita sobre nosso lugar e função no mundo atual, ou tudo não passa de "enlatado", feito para agradar a uma plateia predominantemente jovem e pouco afeita ao teatro como linguagem artística?
 
Finalmente, Eclipse, do Grupo Galpão: cheguei a ler e ouvir pessoas dizendo que não é assim que se faz Tchekhov. Luiz Paulo Vasconcellos escreveu que viu apenas uma "série de tiradas de autoajuda pseudofilosóficas". Pessoalmente, discordo totalmente de Luiz Paulo, pois reduzir o espetáculo a isso é se colocar impermeável à forma corajosa pela qual os excelentes atores do Galpão trabalharam a tão conhecida dramaturgia e narrativa tchekhovianas. Me comovi em mais de uma ocasião ao ouvir as palavras de Tchekhov, e não me considero nem um pouco adepto de qualquer forma de autoajuda literária ou em forma de palestra. Outros, reclamaram sentir falta do barroquismo que marca certa produção do Galpão: pessoal, que bom que esse incrível grupo mineiro não se "deitou nas cordas" e passou a viver do sucesso pregresso. Acomodar-se em formas e opiniões é matar um pouco a arte, que é viva e se retorce a todo instante.
 
*Marcelo Adams é ator e professor da graduação em Teatro: Licenciatura da UERGS

domingo, 23 de setembro de 2012

Jussara Silveira- Ame ou se mande por Simone Rasslan


Quem poderá em vão calar meu coração?
A plateia canta. Termina o show e estou com os olhos cheios e o coração não se cala!
Foi assim que saí do teatro Renascença nesse domingo.  
Ame ou se mande é o nome desse show. Enchem o palco a voz de Jussara Silveira, o piano de Sacha Amback e a percussão de Marcelo Costa. Os três trouxeram um trabalho muito limpo, onde o foco estava na música e com pouco fizeram muito. A voz, o piano e a percussão deram conta de tudo. O piano também funcionou como percussão. Sacha Amback usa um sintetizador pra, de vez em quando, trazer algumas texturas ou melodia que divide sempre com o piano acompanhando. Uma mão para cada lado e o cérebro dividido em dois! O percussionista/baterista Marcelo Costa é responsável por um momento lindo do show em que o tempo se abre para os orixás na música Doce esperança (Roberto Mendes/J. Velloso), fora seu bom gosto musical ele partilha momentos de cumplicidade cênica com Jussara.
Jussara tem um timbre muito pessoal. Sua voz é um instrumento brilhante com vibrato característico e com um repertório finíssimo passa carinho acolhendo aos poucos a plateia. Terminamos nas suas mãos. Embalados. Cantando em coro no bis a Felicidade do Lupi.
Não há como calar o coração e a voz da plateia que é impelida a fazer essa escolha. Como se não pudéssemos nos conter.
Mais uma vez o Em Cena está de parabéns por trazer música Brasileira e partilhar essa missão de divulgar o Brasil para o Brasil.
Pra quem ficou querendo saber um pouco mais, procure por:
http://www.jussarasilveira.com.br/ vale a pena!
*Simone Rasslan é cantora

Deus da carnificina por Mauricio Guzinski (3ª parte)


Claro que Carnage se apresenta melhor, muito melhor, nas mãos de Polanski e seu compenetrado elenco, que brilha em cada palavra dita, em cada ação executada, até mesmo ao vomitar e limpar seu vômito. Essa era a opinião generalizada das pessoas do meio teatral com quem tive a oportunidade de conversar, na saída do TSP, aquelas que haviam assistido, antes, ao filme. Como eu, esse público, também especializado e restrito, considerou que, apesar de tantos maus tratos, o texto de Yasmina sobreviveu quase ileso à tamanha violência (e inconsequência). Um tanto disso se deve à qualidade do trabalho do elenco, especialmente, Evelyn e Betti, que seguravam o tempo todo a dignidade da obra, ignorando as “gracinhas” de seu colega Orã.
Na minha opinião, se o diretor excluísse, substituísse ou disciplinasse Orã Figueiredo, e também abrisse mão de alguns elementos desnecessários ao texto em sua montagem (exemplo: com cenário algum, ou mesmo realista, e um elenco heterogêneo, afinado à proposta, o resultado já teria sido muito melhor). Eu até seria capaz de rever, mudar meu juízo e escrever nova opinião a respeito. Nas circunstâncias em que assisti, em Porto Alegre (Flávio deve ter assistido, no Rio, e “eu quero achar” que isso deve ter feito toda a diferença. Pois é muito provável que Orã, ainda não tivesse mostrado suas garras), assim como foi mostrado, aqui, em 12 de setembro, ao contrário de Mainieri, considero ruim o espetáculo e ótimo o texto.
Frente a meus parcos conhecimentos, hesito bastante em classificar Deus da carnificina...seria uma comédia de costumes?!...drama de humor negro?!...tragicomédia contemporânea?!...Não sei! Talvez isso possa ficar a critério de cada leitor, encenador, espectador. É bem possível que essa criação contemporânea nunca venha a ser incluída entre as obras primas da dramaturgia universal de todos os tempos. Nem eu pretendo provar isso, agora. Só o tempo dirá. Isso se sobrevivermos todos a esse conturbado 2012, diante de tantos conflitos internacionais, instaurados e regidos pelo verdadeiro deus da carnificina (e do lucro). Se não sobrevivermos, conforme as previsões mais pessimistas, será uma grande lástima. Yasmina e tantos outros autores ainda não atingiram sua plenitude como dramaturgos. Realmente, ela não está nem aos pés de Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Shakespeare, Lorca ou Brecht. Por enquanto, não acrescentou qualquer inovação ao que eles já haviam criado, muito antes. Seu grande mérito, nessa obra específica, é o de tecer uma escrita conectada ao público de seu tempo; e comunicar-se com ele através de suas peças, como os mestres anteriores fizeram, a despeito das críticas desfavoráveis que enfrentaram, cada qual, em sua própria época.
Meu querido Mestre, por favor, não interprete mal o que escrevo, tente entender que, talvez, eu ainda o faça a partir de uma percepção exacerbada, comum a meu ego 4 (tipo caracterológico, também chamado “romântico trágico"), tente compreender e desculpar a forma como minha sensibilidade, minha subjetividade recebeu o conteúdo de seus dois comentários, muito bem escritos e fundamentados que foram tornados públicos no jornal ZH. Como tentei dizer, antes, não é minha intenção polemizar, menos ainda confrontá-lo. Talvez o Sr. não lembre. A Doutora Marta Isaacsson, minha orientadora naquele curso de especialização em Teatro Contemporâneo, deve lembrar, ainda, de minhas angústias, em 2001, diante da muralha que costumamos erigir entre criadores e pensadores. Continuo querendo derrubá-las. Talvez, nesse momento, eu me sinta como a personagem representada por Deborah Evelyn, na montagem carioca, um tipo 1, movido pela ira divina (melhor, pois seguir este caminho, defeituoso, para o irado ego 1, é considerado mais saudável para um melancólico ego 4). Não estou em defesa de Yasmina Reza. Penso em minha obrigação como professor de teatro e servidor público. Quero defender meus filhos, os filhos de Dionísio, os dramaturgos, os criadores. Faço isso há 24 anos, através do Prêmio Carlos Carvalho. Quero incentivar o surgimento de algo novo, fresco, próprio do espírito de nosso tempo e que talvez ainda nem haja “jurisprudência” (nem conceitos) para que possa ser defendido. Difícil, por mais que eu “trabalhe sobre mim mesmo”, estude minha personalidade e me observe...difícil desnudar-me dessa máscara quixotesca, que combate moinhos, ainda. Talvez só quando eu me aposentar (o que já está prestes a acontecer. Sou substituível e necessito transmitir meu legado, depressa. Alguém se habilita?).
Ontem, após me deleitar com o talento de Denise Stoklos como dramaturga, diretora e intérprete de Preferiria não? – transposição do texto literário Bartleby, o escriturário (1853) de Herman Melville para a cena contemporânea, dentro da estética criada e denominada por ela Teatro Essencial – presenciei ao bate-papo da atriz com um psicanalista (infelizmente, não consegui gravar seu nome) e o entusiasmado e emocionado público; dentro da programação Psicanalista em Cena. Com toda propriedade determinada por seu ofício, o psicanalista destacou, a partir da encenação de Stoklos, o funcionamento do ser humano, desde que toma consciência de sua inexorável finitude e nosso consequente desejo de transcendência, perpetuação, eternidade. Uma das formas de perpetuar nossa existência pode ocorrer através do legado de valores internos transmitidos aos filhos (na peça de Yasmina, a herança transmitida aos filhos pelo exemplo dos pais – além das máscaras, da hipocrisia social, do verniz da civilização – também é a violência, ou sua dificuldade em usar a agressividade, construtivamente). Segundo ele, a perpetuação também pode acontecer através de nossas obras, em especial as de arte. Ele ainda referiu-se ao importante filme Melancolia, de Lars von Trier, em que essa angústia própria do ser humano não encontra solução, pois a Terra, único planeta com vida inteligente, será destruída e com ele todos os vestígios de nossa civilização, por isso a melancolia, a depressão inevitável (da personagem central e também do diretor do filme).
Este ano estive muito perto da minha própria finitude e da morte de pessoas muito próximas e estimadas. Acompanhei, de perto, o sofrimento de uma grande amiga, cujo filho, jovem e talentoso poeta, com alguns livros publicados – aparentemente, feliz e realizado – não suportou a melancolia de nosso tempo, preferiu voar dela, prematuramente, pela janela do décimo andar. Comportamento muito comum, sempre evitado em manchetes e noticiários, mas praticado, com frequência, por muitos de nossos ídolos. Flávio, diante de tudo isso, estou muito preocupado com nossa função, como pais e professores, em tempos tão difíceis. Quero acreditar no Deus da criação e não no “da carnificina que reinou sobre todos nós há milhares de anos”, como afirma uma das personagens de Yasmina.
Quero me comprometer, cada vez mais, com a vida, com o poder criativo, construtivo, e não com o poder destruidor da palavra. Por mais pessimista que seja a visão impressa pelo criador em sua obra de arte, ela expressa um desejo de mudança. Ou ele não conseguiria realizá-la, “eu acho”. Penso isso do deprimido e genial Von Trier, de Nicky Silver, de David Foster Wallace (muito bem apresentado ao público, que ainda o desconhecia, na adaptação de Breves entrevistas com homens hediondos feita pelos jovens e atrevidos criadores do Teatro Sarcáustico, selecionado, por todos os seus méritos, para constar na grade do festival, que, aliás, está estupendo. Bravo, Luciano! Parabéns a toda a tua maravilhosa equipe!) e de tantos outros inventores de nosso tempo.
Nem eles, nem Yasmina, muito menos, Bertolt necessitam de minha defesa, “não são sagrados”, mas já estão “consagrados” pelo público ou pela crítica. Estou preocupado é com aqueles que ainda não chegaram lá, e com “os que virão depois de nós”. É com a necessidade desses que me preocupo, eles precisam (e merecem) encontrar um campo fértil para o plantio daquele algo novo (que pode ser ainda melhor do que o já conhecido), não posso aceitar que recebam como legado: terra arrasada, estéril.
Como disse antes, já caíram muitos muros (até a Muralha da China andou sendo abalada por um tremor, recentemente), não quero construir novas barreiras, apresentar velhas regras e cartilhas a qualquer criador. Não há mais separações possíveis entre Teatro, Literatura, Dança, Cinema ou Artes Plásticas, ficção, realidade...A surpreendente atualização da Senhorita Júlia de Strindberg, por Christiane Jatahy, mostra isso muito bem (só fui assistir a este espetáculo, graças ao sincero e ótimo comentário de Jacqueline Pinzon, no blog do Em Cena. Obrigado, Pinzon! Valeu e muito!). Plagiários também mostra isso, esplendidamente, e comprova o talento dramatúrgico de nosso jovem e brilhante Diones Camargo (que bela homenagem a Nelson Rodrigues, que fantástico investimento da Braskem e do Em Cena, que oportuna reunião de criadores! Que belo resultado!). Tive que exclamar: Bravo! E aplaudi-los, entusiasticamente, de pé, por um longo período; além de expressar, diretamente à equipe, o prazer que senti ao assisti-los, durante sua última sessão no festival. Espero que aquela seja apenas a terceira de muitas outras. É mais um excelente trabalho que merece ter uma longa vida e ser assistido por muito mais gente.
Flávio, eu fiquei em dúvida se deveria enviar esta looonga carta para teu endereço, particular e privado, ou torna-la pública, aqui, neste blog. Optei pela segunda opção porque “achei” que essa divergência de opiniões poderia interessar também a outras pessoas, instigar a reflexão entre teoria e prática, criação e crítica, etc. Não quero gerar polêmica alguma. Gostaria apenas de defender, aqui e agora, a criação de um campo favorável, mais apropriado ao exercício da criatividade de toda essa “gurizada” com sangue dionisíaco nas veias (e mesmo para os apolíneos, também presenteados com a chama de Prometeu). Não temos mais tempo para estarmos agarrados a ideias do passado, mortas ou moribundas, muito menos a pré-conceitos. Precisamos de sangue novo, fresco e bom, para garantir nossa eternidade (como os vampiros que fizeram Sharon e Roman dançar; será que estamos tão distantes, ainda, de nossa “verdadeira natureza”). Precisamos acabar com as diferenças entre os montecchio e os capuleto; assim como, entre criadores e pensadores (estes últimos não sobreviverão, nem terão qualquer razão de existir, sem os primeiros). Não podemos julgar o que vemos hoje com o olhar de ontem. Conceitos só podem ser elaborados após a criação (impossível já catalogar e encaixotar o que está sendo feito, aqui e agora). Poderiam até ter o nome de pós-conceitos (mas nunca: pré). Isso talvez deixasse as teorizações um pouco mais claras, colocasse as coisas no seu devido lugar. Inverter a ordem toda pode tornar a obra de arte, demasiadamente, artificial (no pior sentido da palavra), o artificialismo (no melhor do termo) já está, ali, em sua essência. Equivaleria a inverter o curso da água dos rios, secar a terra e matar a fonte. Transformaria o fruto da criação em alimento congelado, coisa morta e sem nutrientes, que só poderia ser exposta em balcões de buffet a quilo (ou nos museus de história). Precisamos nutrir os vivos e deixar os mortos em paz. “Sagrada” é...(ou deveria ser) “a infância” (valham-nos as ideias de Reichert) e a juventude daqueles que começam a criar, agora. Estou velho, professor! Nos meus arquivos, quase corrompidos: Will e Macbeth, Bertolt e Setsuan, Federico e Yerma, Andrade e Dolor, Nelson e Doroteia, Ivo e Teresa, Carlinhos e Tuda...parecem-me, criadores e criaturas,“ insubstituíveis”! Preciso esvaziar, depressa, a lixeira para abrir espaço ao novo! Insubstituíveis todos somos, é verdade, porque únicos! INSUPERÁVEIS, NÃO! A humanidade continua a quebrar, a cada ano, os recordes anteriores. Podemos avançar muito além de 2012 (se entendermos melhor as profecias de civilizações que já desapareceram na poeira do tempo)! Tenho certeza que é dentre eles, os jovens, que surgirá o Brecht do futuro (quem sabe, ele já esteja por aqui, dentre esses 2.073 [de 22 estados brasileiros] inscritos no Prêmio Carlos Carvalho. Estou muito otimista em relação ao teatro feito em Porto Alegre, no Brasil e no Mundo, hoje.
Agradeço-te muito, Flávio, por teres dedicado teu tempo para escrever sobre Deus da carnificina; agradeço, também por teus comentários terem se tornado públicos, na Zero Hora; pois me fizeram abrir, novamente, os olhos, os ouvidos, a boca e, ainda mais, meu enorme nariz. Que maravilha que nossos jornais estejam reabrindo espaço para a crítica teatral e para os jovens que praticam a escrita para o palco! Adorei ver o mais promissor de todos, Diones Camargo, ocupar capa inteira do Segundo Caderno, com suas criações (mesmo ao ler, também ali, sua crítica sobre as nossas premiações. Afinal, “toda a unanimidade é burra”, mesmo! Precisamos considerar a opinião dele e a dos demais concorrentes para continuarmos evoluindo, como servidores públicos.
Não estou defendo Yasmina Reza e seu texto. Posiciono-me ao lado de Deus da carnificina para defender “a dramaturgia”. Especialmente a nova, que ainda não foi consolidada. Desejo que ela possa se firmar, desenvolver, amadurecer (como está acontecendo com Diones Camargo, aqui e agora). Flávio, se me permitires, um conselho de amigo: tua experiência, assim como a minha, é muito maior e mais fecunda, no terreno da educação, da formação; poderemos evoluir muito, nós dois (e todos lucrariam muito mais com isso), se não separarmos tanto o olhar crítico daquele outro que estimula a crescer, a amadurecer, a construir o novo; o que está sendo gestado, agora, que nem temos condições de apreciar, racionalmente, intectualmente, ainda; esse é o olhar de professor; ou melhor, do Mestre (essa, sim, é a tua verdadeira natureza. Isso, eu “não” acho; eu tenho certeza! Tive a oportunidade de conhecê-la muito bem, 11 ou 12 anos atrás, como teu discípulo. Trabalho sobre mim mesmo, ainda hoje, seguindo teu paradigma, desde que nos introduziste ao universo das letras de Bernard-Marie Koltès [que eu ainda não conhecia e passei a apreciar] e aos conceitos de narrativa lacunar, hipertexto, intertextualidades e alguns outros [que eu intuía, apenas, e que, a partir de então, passei a empregar com maior propriedade]. Mestre, quero chegar também a essa mesma natureza, um dia. Quem sabe, estejas apenas me provocando a ingressar no Mestrado, agora. Cada vez que encontro Marta Isaacsson, sinto-me provocado, ao mesmo, também por ela. Mas não sei se me enquadro!).
Bem, agora chega! Gostaria muito de continuar esse diálogo contigo, mas em outro momento (até porque todos já cansaram de ler minhas rubricas... aliás, parênteses [e parágrafos] intermináveis. Além do que o dia amanheceu, outra vez, e falta tão pouco para o término de nossa maratona anual de Teatro [e eu ainda não consegui enviar ao blog qualquer dos textos que iniciei, logo após a abertura, em 04/09/12])...Quem sabe possamos tomar um chá ou café, Flávio, no TSP, antes...ou, depois, do próximo espetáculo, para rirmos um pouco de tudo isso, talvez, então, degustando um bom carmenère (como, algumas vezes, tive o prazer de fazer com meu outro generosíssimo Mestre, o Bender). Flávio, acaba de me assaltar, agora, outro temor...teria eu te usado, enquanto escrevia estas doze laudas, como bode expiatório das culpas que atribuo ao papel do pai, no meu próprio teatro familiar? Enxerguei em ti o fantasma de meu pai, numa espécie de Hamlet às avessas? Agi “como se fosse eu” o carniceiro Macbeth para usurpar o poder do rei (o pai castrador!)? Será que teus comentários despertaram em mim a sombra, o demônio da inveja? Inveja do poder de tuas palavras concisas, objetivas, melhor fundamentadas do que as minhas (oriundas da “delirante lucidez” de minha mãe, Estamira)? Peço-te milhões de desculpas. Tenho muito carinho por ti, Flávio. Insisto em meu convite. Tudo o mais, pode ser fruto de minhas máscaras, de minha sombra, de meu ego, e eu espero que me perdoes.
Saiam já deste corpo que não lhes pertence, coisas ruins!
Eparrei Iansã! Odoia! Ora Aie Eu! Patacori Ogum Iê! Kaô Kabecilê! Atotô Babá! Selai nossos corpos diante do inimigo! Protegei nosso espírito dos deuses da carnificina e da morte!
Fazei-nos receber as boas coisas da Vida na Terra!Comida, Diversão e Arte para todos!
Evoé, Dionísio!
*Mauricio Guzinski é ator, diretor e professor de teatro

Brasil por Plínio Marcos Rodrigues


Brasil parecia uma mistura de teatro com performance de dança e vídeo. Com uma grande atriz argentina que mais uma vez mostrou a força da interpretação de nossos vizinhos. Em um tom coloquial, Maria Ucedo conta passagens “reais” de sua vida em um palco quase nu: quase porque um imenso puff divide o palco com a atriz, objeto aliás pouco utilizado, mas que mesmo assim ajuda na demonstração da solidão em que vivi, pois buscou a personagem. O palco não inicia vazio, quase meia centena de ovos brancos espalhados pelo palco preto nos oferecem uma falsa impressão do que será a peça/performance. A atriz então dança desviando dos ovos, depois se acosta com eles, reúne-os numa bela coreografia no solo e finalmente os choca! A partir dai o ritmo muda vertiginosamente: vídeos com paisagens virtuais, “chapas” da arcada dentária da atriz, música eletrônica alta, mais dança, cansaço e o descanso merecido no citado puff. A peça encerra com a atriz cantando uma versão em espanhol, feita por ela mesma de uma música do Arnaldo Antunes promovendo uma bela troca entre artistas “hermanos". Mais uma bela oportunidade oferecida pelo festival para que conheçamos o bom teatro argentino contemporâneo.
*Plínio Marcos Rodrigues é ator

sábado, 22 de setembro de 2012

Heróis- o caminho do vento por Luís Carlos Pretto


Para mim, um herói, ao contrário dos da mitologia grega que inspiraram os dos desenhos animados, quadrinhos e filmes, é bem próximo de nós.
Heróis são os bombeiros, os enfermeiros, os policiais, os médicos e todos aqueles anônimos cuja única força "sobre-humana" é o amor e a dedicação a vida.
Heróis é um espetáculo de teatro cujo o poder felizmente não é a invisibilidade, pois a curadoria do POA EM CENA os trouxe até nós.
Enfrentaram vários "oponentes" mais famosos, mais festejados, mais badalados, para nos mostrar que a arte do teatro está no simples, no exercício da encenação, da interpretação, do bom texto e não somente nas pirotecnias que cada vez invade mais o tablado.
Heróis- o caminho do vento é um belo exemplo de um bom teatro que aposta na simplicidade para contar a história de três velhos veteranos de guerra que se encontram todos os dias durante uma hora no terraço do asilo para contarem suas histórias e no final, planejarem algo ousado para aqueles homens, acomodados, ranzinzas e debilitados.
O texto é ótimo, do francês Gerald Sibleyras (primeira montagem no Brasil) que perfeitamente conduzido pelo trio de atores nos faz rir, refletir e comover.
Fazia tempo que eu não ria tanto com um texto que não é uma comédia (eu pelo menos não vi assim), e os atores que interpretam os velhinhos: Renê, Gustavo e Fernando o fazem magistralmente completando-se apesar das diferenças e criando uma grande empatia com o público.
A direção de Guilherme Reis fica como o juiz de uma partida boa de futebol, conduz o espetáculo sem parar e sem querer aparecer, deixando o campo livre para quem quer jogar e joga.
A cenografia é composta por três cadeiras e um cachorro (de pedra?) que torna-se o quarto elemento em alguns momentos. Temos também ao fundo um painel onde são penduradas as lembranças dos ex-combatentes e de onde eles buscam elementos cênicos e guardam/pegam figurinos.
A trilha resume-se na maioria das vezes a barulho de vento e som de caixinha de música com diversos temas, incluindo, o hino francês e nos momentos de transição de cena.
É o simples sendo muito mais que simples. São heróis discretos salvando vidas e fazendo bem a sua função, diferentemente dos astros que no mesmo dia desfilavam com seus figurinos de cores berrantes, aparecendo em outdoors e fazendo estardalhaço na sua chegada nos palcos do Em Cena.
A arte do ator e um bom texto ainda é o que mais me conquista e assim sempre vai ser...
 
*Luís Carlos Pretto é ator e diretor teatral