segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Pterodátilos por Matheus Melchionna Diello

Nicky Silver?*

No dia 18 de setembro, estava marcada a sessão que eu iria assistir de Pterodátilos. A peça, dirigida por Felipe Hirsch, era uma das principais atrações do 18º POA Em Cena, todo mundo estava ansiosíssimo para assistir a montagem do diretor para o texto de Nicky Silver, dramaturgo contemporâneo americano. E pode-se dizer que o que menos se viu na encenação foi o texto original, mesmo que o texto adaptado pelo diretor seja a melhor coisa da peça.
Não que eu esteja desmerecendo o fabulo cenário de Daniela Thomas, muito menos a luz muito bem feita por Beto Bruel – dos quais já falo –, mas enquanto assistia à peça, as palavras que eram ditas me vinham com um peso, uma acidez incomodativa. A peça retrata a história de uma família que entra em crise após o filho voltar para casa depois de anos longe, revelando que está com AIDS. Nessa família, existe uma mãe alcoólatra, um pai distante, uma irmã louca e o seu noivo, que também é a empregada. As relações se mostram distorcidas, os diálogos são ágeis e por muitas vezes cheio de ironia e humor negro, onde mora o erro da montagem. O diretor optou por transformar o texto em uma comédia fácil, abusando das expressões “engraçadas”, e também em uma peça onde um ator teria mais destaque que os outros: Marco Nanini.
Ele fazia dois personagens – o pai e a irmã – e por causa disso, vários momentos de interação desses personagens foram cortados, o que também enfraqueceu o texto. E por fazer um personagem feminino, só de entrar em cena, já garantia a gargalhada do público, que estava extremamente risonho no dia - era até um pouco constrangedor que em momentos mais pesados houvesse risadas em diversos pontos da platéia. Talvez por causa disso, o outro personagem que Nanini fazia sempre que entrava parecia apagado, sem vida. Faltava alguma coisa ali.
Os outros atores estavam bem, principalmente Marina Lima, que cada vez mais se destaca como uma das melhores atrizes de sua geração. A sutileza com que ela constrói a mãe que não se preocupa com seus filhos, alcoólatra e extremamente viciada nas aparências é impressionante. Os que menos se destacavam era o noivo, que não aparecia muito, e ironicamente, o filho, que no texto seria o protagonista. Ele cumpre a sua função muito bem, mas parecia que faltava algum entrosamento das suas ações com o resto, principalmente na hora de tirar o chão do cenário. A metáfora do título do texto – pterodátilo, um dinossauro extinto, e a família – perde-se completamente, pois os ossos que estão escondidos debaixo das folhas secas da plataforma não são mostrados completamente e parecem apenas decoração.
Essa plataforma, junto com os sofás em cima da mesma, eram o cenário. Ela tinha uma função interessante: se inclinar durante toda a peça, desequilibrando os atores. Como efeito estético, é muito bonito ver isso em cena, o problema é que logo na sua primeira inclinação, ela começava paralela ao solo, já tinha alcançado toda a sua possibilidade de inclinação, ou seja, não iria mais trazer surpresa ao público. E mesmo a sua inclinação era pouca, ainda trazendo comodidade ao atores caminhando em cena, que se fosse para realmente mexer com as estruturas dessa família, seria preferível a inclinação ir aumentando aos poucos até um grau onde seria realmente impossível de caminhar.
Tanto a plataforma, quanto os sofás, também o piso e a parede atrás de tudo isso, tem um tom metalizado, industrial. Os figurinos também seguem essa linha sóbria, cheio de preto, branco e cinza – as únicas cores são a saia roxa da filha e o figurino do filho, todo marrom. A luz, que tem uma montagem interessante, de troca de focos, é essencialmente branca, trazendo mais desse clima para o espectador. Tudo converge para um mesmo símbolo, o que pode ser interessante, depende de quem está assistindo. A única exceção é quando a filha, já morta, volta para falar com o público e aí se utiliza o refletor sem o difusor, deixando a sua luz amarelada em cima da mesma, trazendo então mesmo a sensação que estamos a falar com o passado, pois acostumado com a luz branca, essa luz amarela modifica a percepção e tudo parece enevoado.
No fim da peça, há um monólogo do filho, enquanto sua mãe bebe e o noivo é mostrado morto, com uma luz fluorescente piscante e nesse clima sombrio, acaba por ser introduzida a mensagem da peça, um pouco tardiamente. Nesse momento, o teatro é silêncio, nada se escuta a não ser o ator e o barulho do ar-condicionado - parece que finalmente é percebida a natureza ácida do texto.
Infelizmente, Felipe Hirsch parece ter errado a mão ao transformar a peça em nada mais que entretenimento barato, sem mostrar essa família realmente se destruindo, tudo conseqüência dos seus cortes no texto e inserção de outros textos do mesmo dramaturgo, mas mesmo com tudo isso, o que mais chama em sua montagem é o texto e as suas tiradas satíricas de humor negro.
* Matheus Melchionna Diello é estudante do Departamento de Arte Dramática da UFRGS

Uma flauta mágica por Manoela Wilhelms Wolff

“A” flauta mágica*

Uma flauta mágica, espetáculo trazido a Porto Alegre pelo encenador e diretor Peter Brook, baseado na ópera homônima de Mozart, e livremente adaptado por Brook, juntamente com Marie-Hélène Estienne e Franck Krawczyk, com certeza além de trazer uma flauta em cena, trouxe também muita magia.
A história da ópera - no libreto original com cerca de três horas de duração, no de Brook, com uma hora e meia - é uma história de amor. Tamino, um jovem príncipe, se apaixona por Pamina, a filha da Rainha da Noite, que está, no momento, mantida em cárcere por Sarastro. Tamino conhece na floresta Papageno, um atrapalhado caçador de pássaros que vai auxiliar Tamino a salvar Pamina de Sarastro. Nesse momento é que entram os dois atores (espíritos da floresta) de Peter Brook que entregam aos dois uma flauta e um triângulo, que são objetos que os protegerão durante sua jornada. Diferentemente do roteiro original, Uma flauta mágica de Brook, é cantada e dialogada. A narrativa é feita especialmente nos diálogos, enquanto as mais célebres árias da ópera foram mantidas. No elenco, que possui dois grupos completos que se apresentam alternadamente, existem sete cantores líricos e dois atores. Aqui em Porto Alegre, um grupo de cantores/atores se apresentou na quarta e na sexta-feira, e o outro na quinta-feira.
Com os atores de pés descalços, a atmosfera é onírica e intimista. As luzes da plateia ficaram o tempo todo levemente acesas e o cenário já estava à mostra quando entrava-se na sala de espetáculos do Bourbon Country. Alguns bambus no palco, com uma iluminação azul ao fundo, mas com foco amarelo nos bambus permaneceu assim por quase todo o espetáculo, exceto nos momento do ritual de iniciação de Tamino e Papageno. Além dos bambus, que durante o espetáculo eram manejados pelos atores e transformados tanto em castelo, como túneis, como prisão e floresta, utilizava-se, na cena com Papageno e Papagena, um caixote com rodinhas (aparentemente de transporte aéreo), um manto vermelho, uma garrafa de vinho e um jantar. Como acessórios, visualizamos a flauta mágica e o triângulo mágico. Afora isso, eram só os cantores/atores.
A respeito dos cantores/atores também deve ser feito um comentário. Com certeza, a parte musical estava excelente, principalmente pela vanguarda de Brook: ao invés de uma orquestra completa, apenas um pianista, que em alguns espetáculos era o próprio Franck Krawczyk e em outros Matan Porat. Os sete cantores, fizeram muito mais do que é o papel de um cantor lírico: eles mostraram organicidade e energia, retiraram o ar conhecido da ópera (de algo muito mais realista e “pomposo”) para algo simples. Além disso, renderam (principalmente os Papagenos) momentos de risadas enfáticas. As músicas eram cantadas em alemão e os diálogos em francês, e, conforme pessoas que sabem francês e alemão, percebia-se o sotaque em ambos, apesar disso não ser o suficiente para atrapalhar o entendimento (além de legendas, para aqueles que não compreendem nenhuma das duas línguas). Os dois personagens que eram feitos propriamente por atores (os espíritos da floresta), com certeza representavam o antropológico de Brook: movimentos precisos e energéticos, um deles nada fala, comunicando-se apenas visualmente, enquanto o outro até mesmo arrisca palavras em português. Seus figurinos e penteados excêntricos, com certeza atraem o foco dos olhares.
Mas além dessas questões bastante práticas de como funcionou o espetáculo, é necessário acrescentar que foi com grande espera que Peter Brook voltou ao Brasil. Não foi somente em Porto Alegre que os ingressos se esgotaram rapidamente, mas São Paulo e Rio de Janeiro tiveram sessões extras. E não somente em âmbito nacional, América do Norte e Europa também aclamaram o espetáculo. Mas o que será que chamou mais atenção dos espectadores, o nome de Peter Brook, o de Mozart, ou a busca por uma ópera mais leve?
Aqui, muitas pessoas na saída do teatro disseram que o que Brook e sua equipe produziram não foi uma ópera. Em contraposição a isso, faço minhas as palavras de André Toso, que criticou o espetáculo para a Revista Bravo!:
“De uma maneira geral, no entanto, a aproximação entre a ópera e o teatro de vanguarda é um casamento apropriado. Afinal, a ópera foi inventada na Florença do século 17 justamente para ser a primeira forma de arte multimídia. A ideia era misturar talentos de várias áreas artísticas e deixá-los criar livremente (...) Nesse sentido, os encenadores – especialmente os mais criativos – são extremamente bem-vindos ao mundo da ópera, uma forma de arte que já nasceu de vanguarda.” (Bravo! Setembro, 2011)
Acredito que avaliamos provavelmente mal a ópera de Brook, porque temos pouquíssimo contato com o gênero no nosso país. Não sabemos direito nem bem como ele é originalmente, imagine óperas vanguardistas. Mas, para pessoas que se deixam envolver no espetáculo e o admiram sem conceitos pré-estabelecidos o encantamento é o mesmo, porque a mensagem é comunicada. Peter Brook, em uma de suas falas a respeito do espetáculo por ele dirigido, ressalta ainda mais o que acontece longe do Brasil, mas que na Europa e Estados Unidos está em “voga”:
“nos últimos trinta anos, vi muitas encenações de A flauta mágica. E pude constatar que a primeira dificuldade para o encenador e o cenógrafo é o conjunto de imagens que considero demasiado imponente: no caso de Carmen, é um pouco como se a imagem que se projeta e que se espera tivesse um peso excessivo em relação ao restante. A ideia é chegar a que os cantores – jovens cantores – avancem de modo natural, vivo, amável, no desenrolar da intriga sem se impor projeções, construções, vídeos ou cenários giratórios…”.
Não se leva mais tanto em consideração (seja no teatro, seja na ópera – ou seria a mesma coisa?) a imponência de um cenário, de um figurino, ou de uma figura “estrela” do elenco: se leva o todo, o que o todo comunica. Tanto que, pouco nos importa o nome dos atores de Uma flauta mágica, apesar de que o nome de Brook chame público. Mas este é um fardo unicamente dele que cometeu a terrível falha de ser inovador na arte da encenação.
Uma flauta mágica, para mim, é A flauta mágica. Foi minha primeira ópera e meu primeiro espetáculo de Peter Brook. Mas acima de tudo, me deu uma nova visão, me trouxe coisas que eu não conhecia, perspectivas sobre um gênero que até então só via em livros. O espetáculo Uma flauta mágica foi com certeza simples, mas não simplista.
* Manoela Wilhelms Wolff é estudante no Departamento de Arte Dramática da UFRGS

sábado, 22 de outubro de 2011

A vida como ela é por Eriam Schoenardie

A vida como ela não é*

Devo admitir que, ao me incorporar à plateia do espetáculo A vida como ela é, já tinha algumas perspectivas quanto ao estilo de representação escolhido pelo diretor Luiz Arthur Nunes para a peça que estava por vir. Para transformar em ação dramática cinco contos escritos por Nelson Rodrigues para uma coluna de jornal homônima na década de 1950, são empregadas técnicas do teatro épico desenvolvido por Brecht que visam o distanciamento do espectador perante as situações narradas. Nesse sentido, a obtenção da não-identificação do público se dá com êxito, exemplificada pelas risadas nervosas dos espectadores até em momentos de carga dramática mais densa. Ao optar por esse estilo de trabalho, o diretor acerta com a sua vontade de usar de diferentes meios cênicos para contar histórias, porém acaba por se perder em meio a excessos e superficialidades.
Basicamente, parecem questionáveis algumas escolhas da montagem. O primeiro conto mostrado, por exemplo, enfraquece o começo do espetáculo ao recorrer a quadros vivos compostos por dois atores, que ilustram fielmente a história relatada pelos demais. A novidade da proposta se esgota rapidamente, dando lugar a uma monotonia intimamente ligada ao caráter estático que circunda não só os referidos quadros, mas também a montagem como um todo. Por isso, vibramos ao ver uma maior movimentação corporal, como é o caso do “coro” de quatro personagens do terceiro conto, brincando com o uso de leques (desgastado, mas que funciona) e com uma dinâmica estrutural acelerada que encaminha o conto para um desenlace belamente contrastante ao da atmosfera instituída. É, sem dúvida, uma encenação que priva por uma marcação exata dos atores, característica que às vezes parece suprimir o trabalho destes e que instaura a questão: “Aquilo não poderia ter sido explorado mais a fundo?”.
O segundo conto se desenrola não menos estático, porém esteticamente mais interessante. A manipulação de atores que tem a sua face substituída por uma máscara de feições neutras é, sem dúvida, a escolha de maior beleza de toda a peça. Os usuários destes adereços se entregam nas mãos de outros colegas de elenco, para serem manobrados como se fossem marionetes de carne e osso, seja na questão dos movimentos ou até mesmo das falas (o quarto conto também se aproveita dessa ferramenta de ventriloquia, diferenciando-se ao excluir as máscaras e agora dar voz aos bonecos vivos).
Os elementos visuais, na sua maioria, são vibrantes e extravagantes. O figurino remete à época dos contos, com característicos vestidos de bolinhas em diferentes cores para cada uma das atrizes e ternos impecáveis para os homens. O cenário se resume a estruturas com design de páginas de jornal, reforçando a origem dos textos, que ao final de cada conto se iluminam e revelam uma imagem que ressalta a construída em palco. Essa última característica é desnecessária e ameaça inclusive ofuscar as imagens criadas ao final de cada quadro, já bastante significativas e por vezes muito bonitas (como é o caso dos contos dois e três).
A luz de palco é uma constante de iluminação geral para meia luz de troca de contos, sendo explorada sem muita elaboração cênica, exceto pela ajuda na criação de efeitos em algumas imagens finais. Em contrapartida, a sonoplastia tem um papel muito mais presente, sendo um recurso por vezes invocado desnecessariamente. O repertório vai de músicas populares de reconstituição histórica brasileira até músicas clássicas que sublinham a suposta tensão do enredo. Esse misto dá um clima brega a toda a trilha que, se assumida como proposta, poderia ser interessante e condizente com a forma de interpretação exagerada. Porém, esse ideal de encenação parece não se impor e o que se sucede é uma série de intervenções musicais que chegam a beirar um melodrama que se envergonha de ser melodramático.
A adaptação do texto, também feita por Luiz Arthur Nunes, acerta ao preservar grande parte da estrutura narrativa original, dando aos atores a figura de narrador em terceira pessoa ao mesmo tempo em que outros se encarregam dos diálogos. Em suas tramas, Nelson Rodrigues retratava as patologias psicológicas do subúrbio carioca usando de um caráter de depravação sexual e morbidez criminal que rodeou toda sua obra, mas que aqui é apresentado de forma muito atenuada. Assim, a encenação acaba por tomar uma válida posição de comicidade sobre tais temáticas, uma vez que o distanciamento proposto pela montagem se associa à uma análise feita por um espectador “distante” daquela época posta em palco. A exposição do texto revela outro aspecto positivo que vem como uma redenção para a falta de ações físicas mais complexas: a oralidade do elenco, que se caracteriza por uma ótima gesticulação e projeção vocal, a última talvez beneficiada pela acústica do espaço teatral.
Ao fechar das cortinas, o resultado de tudo que se vê é claro narrativamente, porém confuso teatralmente. A impressão que paira é de que as diferentes estéticas de representação dramática exploradas se tornam avulsas quanto à encenação vista em sua totalidade, uma vez que não estão amarradas entre si. Fica a dúvida, por fim, se a clássica regra do “menos é mais” não se aplicaria aqui com perfeição, optando somente pelos melhores mecanismos que preservassem a proposta geral, que em minha opinião se apoia na união de elementos de determinada época para discernir psicologismos atemporais. Infelizmente, tais signos históricos se sobressaem perante o argumento que visa a análise do “interior negro” humano, afastando demais o espectador da encenação e dando a irônica impressão de que o que contemplamos é o ser humano como ele não é, a vida como ela não é.
* Eriam Schoenardie é estudante do Departamento de Arte Dramática da UFRGS

Agreste malvarosa por Elvio Antonio Rossi

AGRESTE MALVAROSA: TEATRO NA MEDIDA*

Cruel, a natureza é
Dá o sol na desmedida
Dá um corpo na desmedida
Dá o amor na desmedida.
Este poema inicia e fecha o espetáculo teatral Agreste malvarosa, do Amok Teatro, apresentado na última edição do Porto Alegre em Cena. Através destas frases é possível já no início, criar uma expectativa do que vai acontecer no palco; no final, vemos que a citação se encaixa perfeitamente com o que foi apresentado.
O texto, escrito por Newton Moreno, foi dirigido por Ana Teixeira e Stephane Brodt (também diretores do Amok Teatro), a convite das duas atrizes da peça, Milene Ramalho e Rita Elmor. O nome da peça remete à malva rosa, uma planta considerada com poderes de cura para os males femininos. A história que se passa no sertão nordestino, trata do amor incondicional entre um casal de lavradores. Resgatando a tradição oral de culturas como a do agreste brasileiro, a história é contada pelas atrizes, que são as narradoras, mas também, por vezes, desempenham papeis de personagens da história. A encenação conta ainda com a presença do músico Beto Lemos, que executa a trilha sonora ao vivo, tocando diversos instrumentos e pontuando a dramaticidade da trama, como elemento integrador da ação.
Entramos no teatro e uma das atrizes está sentada numa cadeira, enquanto a outra caminha em círculos, com uma trouxa de lenha nas costas. Num dos cantos da frente do palco, o músico executa a trilha sonora em um ritmo nordestino, que juntamente com a luz forte sobre o palco e o calor que fazia na sala (por falha no sistema de ar condicionado ou, quem sabe, intencionalmente), nos remetem ao âmago do sertão; a um clima árido, de sol forte, de corpos marcados pela seca.
O cenário é simples, mas com os elementos essenciais para caracterizar o interior de uma casa com paredes de palha trançada, onde há uma cruz de metal ao fundo e uma capelinha com um santo em um dos lados; num dos cantos um cesto sobre uma mesa; no centro, duas cadeiras.
A primeira parte da peça é narrada pelas atrizes, numa perfeita sincronia e com uma emoção que transborda as palavras e nos invade, fazendo com que nos transportemos integralmente para dentro do texto e para sua ação. Temos a nítida impressão de que estamos vendo as cenas que estão sendo descritas. A história conta como acontece o encontro entre o casal, inicialmente separado por uma cerca; obstáculo superado através da descoberta de um buraco, que permite aos dois fugirem juntos. Na fuga, são acolhidos por uma comunidade e lá permanecem felizes, vivendo como marido e mulher por vinte e dois anos, porém, sem ter filhos e se tocando sempre por sob o lençol e com o candeeiro apagado.
Com uma pequena pausa para ajuste do cenário, marcada pela música, inicia a segunda parte do espetáculo, onde o lavrador está morto e é representado por peças de roupa tiradas do cesto, deitado sobre uma mesa montada por dois bancos. A partir disso, a peça vai se desenvolvendo, até chegar ao surpreendente final, com as atrizes se revezando entre a narração e a representação de personagens (femininos e masculinos), numa transição que espanta pela precisão, pelo rigor e pela técnica. O corpo das atrizes literalmente se transforma em apenas alguns segundos, na sua totalidade, dando identidades diferentes aos personagens, sem exagero ou caricatura.
Aqui é possível perceber a marca do Amok Teatro, que desde a sua fundação em 1998, tem pesquisado sobre o trabalho do ator e as possibilidades de encenação. Colocando o ator e a linguagem física no centro do ato teatral, o grupo apoia a sua pesquisa em dois eixos: Antonin Artaud e Etienne Decroux, de quem utilizam a técnica da mímica corporal dramática. Desta forma, como é possível comprovar nesta peça, o corpo do ator se afirma como sendo o lugar em que o teatro verdadeiramente acontece.
O corpo, aliás, parece ser o centro gravitacional do espetáculo, até mesmo em seu desfecho, quando a identidade sexual do lavrador Etevaldo é revelada e a forma como isso é interpretado pela sociedade, nos levando a refletir sobre questões contemporâneas como o preconceito, ou os tabus que envolvem a sexualidade feminina, por exemplo. O corpo é, portanto, o elemento de ligação entre o texto e a encenação. Expor o corpo do ator como o “local do teatro”, num momento onde os variados e mirabolantes elementos cênicos, muitas vezes sepultam o trabalho do ator (e o próprio texto), é um desafio. Porém, o Amok Teatro demonstra que isso ainda é possível, e o resultado pode ser o que tivemos a oportunidade de assistir em Agreste malvarosa. Não há “desmedida”, tudo funciona perfeitamente, na exata medida, apenas com os poucos (porém, bem selecionados) recursos cênicos e contando com o excelente trabalho das atrizes. Em Agreste malvarosa, podemos dizer que o recado foi dado, a mensagem foi transmitida, o papel do teatro foi cumprido, e a recepção do público presente ao espetáculo pareceu comprovar isso.
* Elvio Antônio Rossi é aluno de graduação em História da arte da UFRGS

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Pterodátilos por Nora Bastos

RI MELHOR...QUEM RI NA HORA CERTA! – Uma mensagem tardia da Sra. Nora Bastos sobre a polêmica a respeito da peça Pterodátilos*
Não sou crítica teatral. Aliás, não gosto de me envolver com nada relacionado a esse povo do Teatro pois acho-os todos uns arrogantes funcionais. Porém, uma vez mais me vejo forçada a sair do conforto do meu lar...digo, do conforto da minha posição como mulher da sociedade, para levantar a voz contra a maledicência e o escárnio que imperam nesse meio tão depravado.
Pra quem não sabe quem sou, me apresento: Nora Bastos – cidadã, mulher, devota. No fatídico ano de 2005 me envolvi numa polêmica vulgar que, infelizmente, mudou minha vida para sempre: naquela época eu havia ameaçado processar João Ricardo (hoje João De Ricardo) um diretorzinho desconhecido (hoje considerado um mártir do teatro gaúcho – e sabem por quê?! Pelo que pude notar nas redes sociais e blogues por aí, só virou mártir porque a pecinha que ele montou láááááááá na pré-história, Extinção – A Impossibilidade Física de dizer esse título inteiro e ainda assim continuar Vivo, foi apresentada por aqui novamente, na última edição do festival Porto Alegre Em Cena, porém dessa vez com elenco global e um diretor incensado nas páginas de publicações culturais. Pois bem, voltando: na época eu me impus contra o tal embusteiro que nada mais fazia do que aliar-se ao seu grupo (Cia Espaço em BRANCO, se bem me lembro...) para manchar o meu nome e de minha família em troca de alguma atenção (que ironicamente só veio a adquirir agora, e por motivos igualmente duvidosos). Pra quem tem memória de peixe – o que significa, a classe teatral inteira! –, aqui vai o link para tamanha indignidade:
http://www.orkut.com/CommMsgs?tid=11594402&cmm=48273&hl=pt-BR
Um parêntese: tempos depois fiquei sabendo através de fontes confiáveis que ele e sua trupe de mambembes criaram uma verdadeira afronta ao Bom Teatro, baseando-se na vida de uma tal Teresa e jogando-a num grande aquário pra ser devorada por piranhas assassinas, alguma coisa grotesca assim; e depois ainda, apresentaram ao público outra aberração teatral que, de tão ofensiva à moral e aos bons costumes, levou um “famoso” crítico local a afirmar que o espetáculo “não merece a gentileza de um aplauso”. É desse tipo de gente que estou falando...se é que vocês me entendem.
Voltando ao foco desta mensagem: agora, anos após eu ter sido atirada à cova dos leões da intelligensia portoalegrense, minha batalha se torna ainda mais árdua e perigosa: escrevo estas linhas para pedir (pedir não, recrutar!), a(os) católicos e pessoas de bem, tementes ao Nosso Senhor Agonizante na Cruz, para que juntos boicotemos essa peça maligna intitulada Pterodátilos, encabeçada pelo demoníaco Marco Nanini, que nela interpreta dois personagens: um pai pedófilo e sua filha (grávida!) de 15 anos, de forma que mostra assim seu enorme talento em incorporar dois lados da mesma doença, porém sem nunca abandonar a máscara sedutora de ator famoso – Plim! Plim! – ainda que sabidamente um ator corrompido pelo que há de mais pútrido na face desse mundo regido por códigos estéticos incompreensíveis a nós, meros leigos; e a pedir (pedir não, implorar!) para que combatam esse maléfico presente do inferno por onde quer que ele passe, pois ele, digo, ela (a peça), não merece nem deve ser presenciada, visto que é uma obra típica daqueles que têm intimidade com Belzebu.
E um AVISO: saibam que qualquer um que gargalhar com esta peça, está fazendo – sem que o perceba conscientemente – um pacto com o demônio, já que é IMPOSSÍVEL gargalhar com tamanha baixeza (como se estivessem assistindo a um sitcom transmitido do inferno), e PRINCIPALMENTE, se a risada for fora de hora – o que acho inadmissível no teatro, pois sou de opinião de que as pessoas até podem comer balinhas ou atender celulares** (nunca se sabe quando a sorte vai nos ligar, não é mesmo?!), mas ainda assim, tenho claro pra mim que numa sala de espetáculos todas as pessoas devem rir juntas, todas ao mesmo tempo, e nos momentos adequados, mantendo desse modo os códigos de comportamento mesmo quando estão no escuro...(sobre esse tópico ainda teria muito o que comentar, mas é melhor calar).
Sei que falando assim – quase um mês após o término desse reconhecido festival de teatro (e mais de 6 anos desde que aquela galinha preta pousou em minha cabeça) – pareço anacrônica. Mas garanto-lhes que não sou, não. João de Ricardo, como hoje se auto intitula esse vermezinho, corrompeu os valores da minha família naquela época, levando a minha filha mais velha à prática de contato lésbico e o meu filho mais jovem ao álcool, ao uso de substâncias tóxicas, e às peças homossexuais de Miguel Falabella. Já Felipe Hirsch, hoje FELIPE HIRSCH, faz o mesmo que De Ricardo fez comigo e minha família, porém dessa vez, devido ao prestígio dos envolvidos e ao alcance da mídia (muuuuuuuito diferente da situação anterior) este mal se estende a todas as famílias cristãs do nosso país, valendo-se do talento diabólico da luxuriosa Mariana Lima e de seu comparsa satânico, Marco Nanini, em mais essa empreitada do Tirano. Não vamos, bons irmãos, deixar que isso aconteça com a família de vocês! Abram os olhos!
Vejam, por exemplo, o que vem acontecendo nas últimas semanas, no mundo todo: devido à união desses anarquistas desocupados que se apresentam inocentemente como ANONYMOUS, o mundo está a beira de um colapso financeiro. E isso porque esses baderneiros não aceitam de jeito nenhum a decisão superior promulgada em lei para tornar obrigatório o desconto de 50% para jovens dos 15 aos 29 anos nos eventos que estes arruaceiros promovem (se não me engano, é isso... i algo sobre o assunto na Globo News). Gente, isso é um absurdo!!! Todas as lojas do MUNDO dão desconto!!! E mais: em épocas de mudança de estação esses descontos chegam a 60, 70% do valor total de cada peça! Então por que esses desocupados não aceitam fazer a sua (mínima) parte na construção de uma democracia mundial? Simples: porque eles se consideram melhores que os outros. Pra vocês terem ideia, até em Madri já tem pessoas protestando! Tenho amigos que moraram lá e que afirmam que este é o primeiro sinal do fim dos tempos; é como o poste...desculpe o termo que irei utilizar...urinando no cachorro. Como dizem esses mesmos amigos ex-madrilenhos, entre uma taça e outra, uma gargalhada mordaz aqui e um antidepressivo ali, é “a chinelagem ganhando cada vez mais espaço”.
Por isso, vamos nos unir, irmãos! Escrevam, abaixo, seus depoimentos; Peço encarecidamente àqueles que presenciaram essa...promiscuidade teatral (em qualquer das versões acima apresentadas), que relatem sobre o que se trata essa obra tão impura e revoltante. Façam isso, bom irmãos, eu vos peço! Não apenas para que retornemos logo aos áureos tempos em que as obras de arte refletiam a nobreza dos homens de bem e inflamavam em seus corações sentimentos puros e belos, como também para termos finalmente um Brasil laico absolutamente cristão, sem que essa cambada de mascarados, empoleirados em obeliscos nas praças públicas, venham a denegrir a nossa visão otimista de mundo. E mais do que isso: sem gargalhadas indevidas, seja no teatro ou em qualquer outro ambiente social que nós, cidadãos de bem e bem nascidos (e sem culpa por sermos assim!), frequentamos.
Obrigada pela atenção. E que Cristo esteja com vocês.
PS: Concordo com todos os que escreveram a respeito desse despacho intitulado Pterodátilos: analisando estruturalmente, Todd é o Protagonista, e não as facetas demoníacas de Nanini (apesar do merecido Shell de Melhor Ator).
**Sim, sou complacente com os espectadores que conversam durante uma peça, pois sei que pessoas como nós, meros mortais, precisamos nos comunicar e de alguma forma expressar o mais imediatamente possível a nossa opinião sobre os absurdos que presenciamos sobre o palco. Se você não é, então fique em casa!
* Nora Bastos é presidenta da Associação Porto-Alegrense pela Ordem, Família, Moral e Bons Costumes Para mais informações sobre as polêmicas declarações de Nora Bastos, visite o blog  http://www.norabastos.blogspot.com/

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Devolução industrial por Manuella P. Goulart

Devolução industrial*
Dirigido por Leo Sykes, Devolução industrial apresenta um espetáculo que mescla circo, clown, música e, é claro, teatro. Já sabendo desses artifícios, o público começa a se interessar para conferir o que resultará essa mistura cultural. Isso pôde ser comprovado pela longa fila que se formou na porta do Teatro Bruno Kiefer. Além disso, após a entrada ser liberada, havia pessoas que ainda queriam comprar ingressos. A expectativa era notável.
A primeira sensação que o espectador tem ao entrar no teatro é a de estar junto a alguma cerimônia ritualística. A atmosfera é de mistério, e esta é acentuada com um cheiro semelhante a incenso e um palco que chama bastante a atenção pela sua variedade de cores e formas. Nele se encontrava um ator vestido completamente de branco e com o rosto coberto por um acessório comprido feito de palha. Também se pôde notar uma grande roda atrás dele, um “lago” e o assento em que está sentado.
Após todos se acomodarem, o ator inicia o texto. Conta-se a história da criação do universo ilustrada por um jogo de luz e gestos entre os atores. Com isso, é possível identificar os personagens da trama: o Ser Místico e mais dois atores que chamam um ao outro de Senhor e Senhora Sapiens. O primeiro realiza variados truques de ilusionismo que entretêm o espectador. Já a “dupla Sapiens”, a partir do humor corporal, auxiliam no tom divertido da peça.
Inicialmente, é possível pensar que se assistirá a algo relacionado à Bíblia. Porém, não é bem isso o que acontece. Ao longo da peça é mostrada a evolução tecnológica humana. Com isso, os atores usam objetos que se transformam em máquinas magníficas que encantam o público. O primeiro deles é uma panela usada para, realmente, cozinhar uma sopa – que é servida, no fim do espetáculo, aos interessados em prová-la. Depois disso, a panela é mesclada com outros objetos até formar um trem à vapor. Nesse momento, há interação com o público – o que é muito frequente durante o espetáculo – em que convidam participantes para serem os passageiros dessa locomotiva.
É notável a beleza dos itens usados em cena e o olhar de surpresa do público para a variedade de objetos que eles podem se transformar. É importante também assinalar que essa maquinaria é feita a partir de utensílios recicláveis (garrafas plásticas), o que resulta numa moral ecológica ao espectador. Isso é reforçado com as músicas cantadas pelos atores. Eis um espetáculo que soube ser pedagógico sem ter elementos “piegas”.
Porém, é uma peça aconselhável para o público infantil. Pelo contrário, aquele que assistirá só se sentirá conectado por causa da dinamicidade do cenário e das máquinas. Aliás, acredito que os atores sejam mais agradáveis a partir da visão do público infantil, pois é usada uma linguagem constituída de piadas leves que dificilmente atrairão os adultos.
Assim, caso queira entreter os seus filhos ou apenas relaxar vendo um cenário dinâmico, essa é a melhor opção. Com certeza, os pequenos voltarão surpreendidos para casa, por causa da estética teatral, e com uma melhor visão ecológica.
* Manuella P. Goulart é estudante do Departamento de Arte Dramática da UFRGS

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Agreste malvarosa por Guilherme Nervo

 Flor arrancada*

Malva-rosa é uma flor de pigmento violeta ou rosa, exibe um porte charmoso e possui poderes de cura. Para mim, a montagem da Cia. Amok de Teatro também exerceu um papel de cura. Eu saí embevecido da Sala Carlos Carvalho, com uma mistura de euforia e admiração. Senti o pólen extasiante da flor do sertão através de um texto recheado de metáforas, uma delicadeza incomparável, uma sonoplastia certeira, uma direção seca e encadeada, e atuações poderosas.
Parece ser impossível ficar indiferente a Agreste malvarosa. Se alguma vez eu tirava os olhos das atrizes Milene Ramalho e Rosana Barros, fazia para escutar também com os olhos a música do instrumentista Beto Lemos, que permaneceu sentado em uma cadeira pobre, executando o acompanhamento essencial no corpo do espetáculo. Sentei em um assento que fazia margem com o palco, portanto eu era banhado pela luz quente, enquanto recebia os olhares penetrantes das atrizes contando uma história de amor. Entretanto, inicialmente ou durante toda a peça, dependendo do espectador, a linguagem de atuação escolhida tem a capacidade de repelir, pois se trabalha com o exagero dos movimentos e da fala, instaurando um ambiente de força poética. Realmente, quando saí do teatro vi a maior parte dos espectadores deixando escapar elogios, mas também tinha gente de cara feia, que admitiu ter tido a vontade de se retirar do teatro. Pergunto-me como ficar desconfortável perante duas atrizes em ebulição? Justamente pela presença transparente da técnica, que não agride ou se sustenta apenas por si, mas que se envolve com o impulso da emoção como numa grande dança entre atriz e personagem.
Tanto a parte narrada quanto a parte dialogada da montagem estão bem entrelaçadas e fluem naturalmente. A direção de Ana Teixeira e Stephane Brodt decide intercalar a narração e o diálogo entre as atrizes, elas repartem o texto a fim de materializar as personagens. Enquanto Milene Ramalho segue o caminho da viúva ingênua, Rosana Barros toma conta do lavrador forte e de pele marcada. O texto do pernambucano Newton Moreno explora a inocência e ignorância das mulheres do interior do sertão nordestino, rechaçadas por um meio social que devora a diversidade com a própria boca. O início é uma celebração à descoberta amorosa, passamos a conhecer o crescimento de uma chama entre dois lavradores separados por uma cerca. Como diz a obra: Eram tímidos como caramujo. Tinha alguma coisa no amor deles que não devia acontecer. Mas aconteceu. O buraco na cerca faz com que a mulher tenha coragem de cruzá-lo e caminhe até o homem. Ouvia-se uma pele rachando na outra. E assim o casal viveu longe de tudo, em um casebre durante vinte e dois anos. Até o momento em que ele morre e as vozes dispersas da sociedade adentram enfurecidas o casebre. Descobriu-se que o marido, de nome Etevaldo, é fêmea.
A encenação não trabalha com a estética naturalista, acredita na linguagem da poesia, na universalidade dos sentimentos e das situações. A diretora Ana Teixeira diz que o intuito é recriar o agreste e não mostrar a realidade do agreste. O sertão nordestino é desterritorializado a partir do momento em que exploramos um sentimento incondicional de amor entre duas mulheres. O contexto social nordestino aparece na obra de Newton Moreno, a partir das expressões tipicamente regionais e da reação ultraconservadora do povoado diante da situação. As atrizes constroem personagens com um forte sotaque nordestino, modelando os corpos de acordo com a troca de personagem. Basta enrolar parte do figurino na cabeça e pronto, surge uma velha. É o ator com ele mesmo, teatro pobre que acaba se desdobrando em uma riqueza descomunal. É o que vemos na construção da personagem do padre, por Rosana Barros. Desesperada, a viúva pede que ele benza Etevaldo para que o espírito dele descanse em paz, mas o padre se recusa devido ao escândalo causado. Ele diz: Pelo menos se tivesse me chamado antes, nós teríamos feito de outro jeito. Já enterrei gente que nem você e ela...Etevaldo. Uma fala que serve como termômetro da hipocrisia da instituição religiosa.
O autor confessou que havia escrito o espetáculo pensando na direção de Ana e Sthephane, o que explica a harmonia entre texto dramático e montagem. Newton aceitou o convite de revisitar sua obra original, Agreste (premiada com o Shell e o APCA), transformando o casal masculino em feminino. E diz também que foi um presente voltar ao ninho de fêmeas, pois é aí que reside a origem do texto: através da conversa com uma amiga que contava, transtornada, o desconhecimento corporal/sexual entre as mulheres do sertão. O que acaba se encaixando com o imaginário sertanejo, no qual a mulher se traveste de homem a fim de espantar futuros males como a submissão.
Agreste malvarosa expõe a força brutal do preconceito. Escancara os limites que uma construção cultural pode alcançar. Numa terra onde mulher deita com homem, não há espaço para descobrir-se mulher com outra mulher. A norma da heterossexualidade é clara e irredutível, o que está representado de forma excelente na figura do Delegado, próximo ao término da peça. Delegado - E tu num sabia que coronel num gosta dessa esfregação de fêmea com fêmea. Amanhã, na cadeia, a senhora vai conhecer macho para nunca mais se confundir.
Esse foi o momento que mais capturou a minha atenção, o trabalho vocal acasala muito bem com o texto, evocando figuras espantosas de autoridade. Mais interessante ainda, é ver a transição a partir do choque corporal entre a figura máscula e indignada do Delegado, com a figura acuada, espantada de Maria. Ela se sentia um prato de comida estragada. Uma carniça. Um penico. Um escarro. Uma doença. Um pus. Um cancro. Uma gota. Suja, suja, imunda.
Essa descrição do estado de humilhação da viúva, não mostra apenas a dimensão da perda do marido, que a coloca num estado de vulnerabilidade, mas também a sensação do indivíduo homossexual perante o preconceito que é capaz de arrasar. A eficiência do último quadro da peça é conquistada através dos méritos do cenário e da iluminação. Uma luz vermelha penetra em cada brecha do casebre de palha e madeira, incendiando o casal de amantes. Mas na crença da viúva, aquilo não era tragédia nenhuma, Deus havia escutado seu canto. Uniria ela com Etevaldo.
Cruel, a natureza é
Dá o sol na desmedida
Dá um corpo na desmedida
Dá o amor na desmedida.
* Guilherme Nervo é estudante do Departamento de Arte Dramática da UFRGS

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Sua Incelença, Ricardo III por Adriane Mottola

 Sua Incelença, Ricardo III*
Duas décadas depois de estontear o teatro brasileiro com o Romeu e Julieta do Grupo Galpão, que resgatava as origens populares de Shakespeare em montagem para a rua, o diretor Gabriel Vilela retorna ao bardo inglês em parceria com o grupo potiguar Clowns de Shakespeare. Diretor inventivo, Vilela cria pontes entre a cultura popular brasileira e o universo elisabetano e imprime em Sua Incelença, Ricardo III as suas marcas mais conhecidas: teatralidade barroca, apelos frequentes ao imaginário brasileiro, figurinos exuberantes e riqueza de detalhes.
O grupo Clowns de Shakespeare de Natal, com 17 anos de trajetória, desenvolve um trabalho de pesquisa teatral com foco na presença cênica do ator, musicalidade da cena e do corpo e no teatro popular. Numa escolha em que encenaria a sua primeira peça não cômica – o drama histórico Ricardo III - o grupo é desafiado por Vilela a trazer o vilão shakespeariano para o universo lúdico do picadeiro do circo, encenando Ricardo III ao ar livre, bem ao gosto do teatro elisabetano, numa montagem que une sarcasmo, humor e ironia.
Ao carnavalizar a ascensão e queda de Ricardo III, em sua trajetória de assassinatos e traições rumo à coroa da Inglaterra, a encenação de Vilela dilui o trágico e ganha em apelo popular (sem cair no popularesco). Para que as 4h da primeira leitura do texto pelo grupo se transformem na 1h15min que dura a montagem, a linguagem cênica complementa a dramaturgia enfatizando a narrativa visual ao “tempero” de uma trilha sonora que mescla as incelenças (cantigas típicas do Nordeste, geralmente ligadas a rituais fúnebres) com citações de bandas como Queen e Supertramp.
O diálogo entre as tramas da Inglaterra elisabetana e a realidade do sertão nordestino perpassa toda a obra: cenografia, figurino e sotaque caracterizam o Nordeste, Ricardo III é retratado como coronel sertanejo, personagens shakespearianos são transformados em cangaceiros e ciganas, numa miscelânea criativa que ainda reserva lugar para uma rainha-mãe cover do Fred Mercury, uma Lady Anne travestida que impede que o espectador acesse a cena através do romantismo e Daydream cantada por um coro de palhaços.
Sua Incelença, Ricardo III tem o mérito de tratar o clássico shakespeariano com liberdade e frescor, atingindo o espectador com tiro certeiro, inebriado pelos requintes da montagem. Shakespeare em estado puro!
* Adriane Mottola é encenadora

Cida Moreira- A dama indigna por Marina Mendo

Cida Moreira, encontro com UMA Dama Indigna*
Segue UM depoimento sobre UM encontro com UMA Dama. Fascínio e espanto a cada vez que a ouço, escrevo assim, sem muitos pudores (coisas que aprendi com ela!).
Este espanto aconteceu pela primeira vez em dois mil e pouco, eu tinha vinte e também poucos anos, e fui a um show seu num domingo à tarde no Theatro São Pedro. Cida Moreira cantaria Tom Waits. Na ocasião eu nunca tinha ouvido Tom Waits e desde então não consegui mais desvincular um do outro. Não consegui mais parar de ouvi-los, descobri-los e de recorrer a eles quando faminta.
A música de Cida Moreira é uma expressão selvagem, muito de tudo aquilo que em nós não pode ser domesticado está ali se agitando sonoramente e neste movimento nos captura em uma experiência musical poderosa, emocionante, da qual não se sai ileso.
Exposta na rica promiscuidade das referências que compõe o repertório de A dama indigna, espetáculo apresentado durante o 18º Porto Alegre em Cena, Cida retira-nos da tagarelice do cotidiano pelos traços inconfundíveis de sua expressão: a singularidade com que se apropria de cada música transformando a matéria sonora em uma extensão de si, um fluxo espetacular que conecta suas mãos, voz, corpo, piano, teatro, nós.
Cida constroi e desconstroi harmonias para seu piano e voz, envolvendo cada música na fumaça de seu cabaret. Assim, são por ela abocanhados artistas que tangenciaram as dimensões arte-vida através de comportamentos performáticos transgressores e criações sensíveis aos blocos de forças que atravessaram (e esburacaram) politica, social e criticamente seus tempos: Jards Macalé ( Hotel das estrelas do primeiro LP do antropofágico músico-poeta 1972 ), David Bowie (Soul love), Caetano Veloso ( Mãe e O ciúme), Du Bose Heyward e George Gershwin em Summertime (minha música preferida, um clássico, atualizando sua eternidade, e também título do primeiro espetáculo e LP de Cida em 1981). Em tempos de espetacularização da morte dos famosos, Cida sai pela tangente exaltando a força musical de Back to black (Amy Winehouse), Gonzaguinha (Palavras), Chico Buarque (Uma canção desnaturada), Youkali-Tango (Roger Fernay e Kurt Weill) e como não poderia faltar Tom Waits ( Lullaby/ Tango ‘Till they’re sore), entre outras maravilhas. O CD A dama indigna produzido por Cida Moreira e Thiago Marques Luiz foi lançado pelo selo Joia Moderna.
Todas as componentes do espetáculo (repertório, desenhos de luz, cenário e figurino) conversam naturalmente sem medir muito as palavras! A direção cênica de Humberto Vieira nos transforma em público de um cabaret, testemunhas dos ímpetos de uma persona teatral (assim definida pela artista) corporificada em ações precisas, atravessadas pela expressão de um conflito íntimo (origem do drama). Em diferentes momentos percebemos a construção de alguma coisa (um charuto se acendendo, uma taça cheia, uma rosa vermelha, o lirismo que introduz algumas canções) que daqui a pouco será decomposta, desfigurada, arremessada em diferentes direções e neste movimento nos atingirá. A direção cria uma zona de convivência orgânica entre música/performance, não presenciamos ali a música em primeiro plano, e um comportamento performático em segundo plano, os planos se atravessam, A dama indigna é híbrida e liberta do início ao fim.
O espetáculo foi iluminado por Cláudia de Bem, em uma impecável criação de estados visuais para cada música. Uma conversa sensível entre cor, luz, sombra e som, construindo um espaço íntimo para a relação entre Cida, sua música e o público. Uma maravilha desta artista da luz (reforçando palavras da própria Cida ao se referir a iluminadora).
Em A dama indigna, está segundo ela mesma, ”o exercício sem pudores de sua dignidade na arte”, onde somos conduzidos pelo seu arquivo vivo de histórias, memórias, referências, reverências, saudades e homenagens. Temos assim, diante dos olhos, um palco povoado de presenças, heranças de uma trajetória marcada pela convivência poética com tantos outros artistas a quem ela generosamente evoca, agradece e pede aplausos.
Escrever sobre Cida Moreira sem me rasgar não é possível, estive diante de uma Dama, que produziu estados que me transportaram, fica aqui certamente um vazio entre a palavra e o acontecimento, um encontro com indefiníveis forças da natureza, um encontro com UMA Dama.
* Marina Mendo é atriz