quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Guilherme Nervo: o encerramento


Foto: Guilherme Santos

O vigésimo e último dia de encanto


Até mesmo o prefeito, José Fortunati, compareceu à entrega do 5° Prêmio Braskem Em Cena. A participação já havia sido pré-estabelecida, porém não surpreenderia se não houvesse sido, pois a quantidade de pessoas que entraram no Theatro São Pedro era inacreditável. Quando, enfim, todos estavam acomodados, visualizamos em uma tela de fundo a projeção de um vídeo que apresentava as peças locais concorrentes às cinco premiações. Contamos com a ambientação de uma música animadíssima, que remetia ao circo e à Fellini. Os concorrentes foram:


- Dentrofora (teatro)
- Dar carne à memória (dança)
- Elefantilt (teatro)
- Milkshakespeare (teatro)
- My house (dança)
- O avarento (teatro)
- Homem que não vive da glória do passado (teatro)
- O Gordo e o Magro vão para o céu (teatro)
- Play-Beckett (dança e teatro)
- Solos trágicos (teatro)

Após cada mini demonstração das peças, a diretora ou o diretor comentava a respeito do Troféu Braskem e do financiamento dado à realização do Porto Alegre Em Cena pela empresa. O que se viu foi uma idolatria efusiva. Imagem esta confirmada com as diversas referências à empresa e com os holofotes que infestaram o teto do teatro: Braskem, Braskem, Braskem. O fato de uma empresa petroquímica de capital privado investir largamente em cultura é simplesmente bárbaro, entretanto, a postura de subordinado/dependente não deve cair no exagero.

Para quebrar com o clima solene da cerimônia, Luciano Alabarse conduziu a entrega de prêmios com seu típico humor elegante: admitiu não saber como funciona uma média harmônica (por mais que seu amigo Roger Lerina tente explicar), comentou sobre a gafe que lhe foi enviada de São Paulo (o “Porto Alegre em Ação”) e nem quis saber como é dada a formação do polietileno, ao trocar palavras com João Rui Dorneles Freire (diretor de marketing da Braskem), que entregou a primeira premiação da noite. Marco Rodrigues ganhou o prêmio de Melhor Espetáculo pelo Júri Popular por seu espetáculo de dança My house. Segundo o Júri Oficial, estes foram os vencedores:

Melhor Atriz / Bailarina – Fernanda Petit, por Solos trágicos
Melhor Ator / Bailarino – Eduardo Severino, de Dar carne à memória
Melhor Diretor / Coreógrafo – Carlos Ramiro, de Dentrofora
Melhor Espetáculo – Dentrofora

O Melhor Espetáculo ganha, além do troféu, 20 mil reais. O restante, ganha três mil reais. Vale salientar que um festival com 70 atrações apresentadas em 20 dias parece ser coisa de louco, mas a eficiente classe artística deu conta da façanha! O 17º Porto Alegre em Cena foi realizado pela Prefeitura, com a parceria das empresas Petrobrás, Braskem e NET, mais a Caixa, a Multiplan – Barra Shopping Sul e a Cia Zaffari.

Para finalizar, é imprescindível dizer que a premiação foi toda fragmentada, visando encantar o público ansioso com o glamour decadente de Cabarecht, o espetáculo musical de Humberto Vieira. Cida Moreira penetrou o breu em um palco composto por duas mesinhas e um piano de cauda negro, cintilante. Neste sentou e de lá não saiu mais. Trajava um vestido enorme, com uma parte interna em formas geométricas esverdeadas que era um charme. Não só grande mulher, como também grande diretora musical, Cida toca com estilo. Em seguida, entrou Antônio Carlos Brunet, figura que se destacava pela blusa vermelha e pela lindíssima voz, provavelmente de tenor. Inclusive, as vozes masculinas me chamaram mais atenção do que as femininas nesta montagem soturna que revisita os antigos cabarés alemães.

Aqui, explora-se a obra do dramaturgo alemão Bertolt Brecht. É uma reunião de intelectuais a fim de mostrar o seu talento através das audaciosas músicas do compositor Kurt Weill, criadas com o apoio de Brecht. Zé Adão Barbosa entrou com o corpo engajado e refinados trejeitos, compartilhando conosco e com seus parceiros a potencialidade de sua voz de declamador de poesias, contador de histórias. A junção de timbres se deu por completa quando a esvoaçante Sandra Dani chegou ao microfone com pérolas e a energia de uma jovem mulher. Jovem mulher sensual! É a liberdade existente apenas no teatro. Logo mais ela cantou Surabaya Johnny mergulhada em desilusão amorosa, priorizando a interpretação ao invés da melodia, algo que se repetiu até o fim de Cabarecht.

Os homens nos presentearam com uma empolgante versão de A balada da dependência sexual, ao passo que Cida Moreira deu o melhor de si em uma versão extremamente espirituosa de Teresinha. A temática da peça me fez imediatamente reviver os momentos de Quanto vale ou é por quilo?, musical do qual fiz parte no início desse ano. Ernani Poeta conduziu uma linha narrativa voltada ao tráfico de pessoas, com as personagens de Brecht e as músicas de Weill. Esse foi apenas mais um atrativo para assistir à peça em questão.

A maquiagem utilizada no rosto dos atores e atrizes é carregada: uma base de pancake branco com traços negros ressalta os traços e dá a eles um aspecto vampiresco. Também presenciamos Mack The Knife, com a famosa balada revisitada por Chico Buarque em O Malandro. A despedida, não só de Cabarecht como do 17° Porto Alegre Em Cena, foi consumada com o embriagante país dos nossos desejos: Youkali. Pena que a versão francesa cantada pelo quarteto, ainda que bela, nos prive da tradução.

Pois aqui coloco alguns trechos dela:

[...]
Youkali, é o país dos nossos desejos
Youkali é a felicidade, é o prazer...
Youkali é a terra onde esquecemos os nossos cuidados...
é, na nossa noite, como o alvorecer,
a estrela que seguimos é Youkali!

*

Guilherme Nervo é crítico de teatro do site www.poashow.com.br

Zé Adão Barbosa: Sandra Dani


Foto: Mariano Czarnobai / PMPA

A homenageada


Conheci Sandra no início dos anos 80. Fazia uma peça infantil com o Carlos Carvalho, A viagem de um barquinho (eu fazia o barquinho, acreditem) e, através da Araci Esteves, fui apresentado a ela. Ainda tinha na lembrança a imagem dela como Dona Margarida, depois cantando Surabaya Johnny, em Salão Grená, uma imagem que marcou meu início de carreira. Na plateia, ficava extasiado diante daquela mulher no palco, com aqueles olhos verdes faiscantes, aquela voz grave, aquele gestual forte. Logo depois, ela e o Luiz Paulo foram morar nos Estados Unidos e eu não consegui conhecê-la pessoalmente. Quando voltou ao Brasil, eu fazia a peça com o Carlinhos e, em um evento na Biblioteca Pública, vejo Araci Esteves ao lado dela: Sandra Dani. Quando nos apresentamos, eu fiquei de pernas bambas e ela sorria com aquela animação de sempre. Começou ali. (Ela conta que lembra até hoje da roupa que eu usava.)

Acabamos nos falando sempre, com uma simpatia mútua que já prenunciava uma grande amizade. Quando Luiz Paulo Vasconcellos dirigiu A gaivota, do Tchekov, eu fiz o Treplev e, adivinhem? Sandra fazia Arkádina, minha mãe. Foi uma paixão avassaladora, fomos filho e mãe durante toda a temporada. Depois, em Hendenplatz, mais uma vez: mãe e filho. Entrávamos nos últimos 15 minutos do espetáculo, ficávamos no camarim tagarelando até os minutos que antecediam nossa entrada. Aí, começávamos um diálogo improvisado como a mãe e o filho da peça, falando mal dos parentes que nos esperavam pra reunião familiar. No final, quando ela tombava morta sobre os pratos, na frente de toda a família, eu pensava: que privilégio poder ver esta diva atuando na minha frente, com esta loucura que lhe é peculiar, uma louca apaixonada que se entrega com tal voracidade ao personagem.

Ela nos incendeia. É impossível não se contagiar com aquela energia, aquela alegria de viver, aquela gargalhada maravilhosa. Não me lembro da Sandra se queixando do teatro, do cansaço, dos ensaios. Tudo pra ela é sagrado, desde o aquecimento até o momento em que entra em cena. Isso, quando ela não convence o diretor a ficar no palco durante toda a entrada do público gemendo e chorando em cena como em Medeia.

Na verdade, não penso nela como mãe até porque temos quase a mesma idade. Ela é minha amiga, minha irmã, minha confidente, minha grande parceira de cena, com quem ainda vou dividir o palco em dezenas de outros trabalhos.

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Zé Adão Barbosa será homenageado no 18º Porto Alegre em Cena com a edição do livro Gaúchos Em Cena volume 2.

Rodrigo Monteiro #20: Kabul

Foto: Guilherme Santos / PMPA

O corte na academia

Ao falar de dois aspectos apenas, proponho uma análise que, sem a pretensão de abranger o todo de Kabul, a mais nova produção do Grupo Amok Teatro, consiga dar conta do que seja essencial no destaque que esse espetáculo tem na larga programação do 17º Porto Alegre em Cena. São eles: o modo como os atores dizem o texto e a transição das cenas/quadros.

O português é corretíssimo (quase sempre). As palavras são ditas com uma dicção perfeita, ultrapassando quaisquer limites que o sotaque poderia manifestar. Stephane Brodt, que, sendo francês, muito honra os brasileiros pela sua permanência aqui, trabalha seu jeito natural de falar de forma a acrescentar ao personagem afegão que interpreta. Ana Teixeira, a diretora, por seu turno, trabalha as vozes dos demais atores da peça, todos num nível altíssiomo de excelência, a também buscarem a tonalidade afegã, de forma que, importando menos a bagagem do ator, de um modo geral, os tons se aproximem. Todas as frases são ditas pausadamente, como se algo superior à situação fizesse os falantes controlarem-se. Por outro lado, a sensação é de subserviência às regras do dizer, pois não há quem se sinta bom o bastante para quebrar essa norma, nem quem tenha vontade de. O resultado é lentidão, amargura e peso.

Estamos falando em tragédia. Kabul, que trata da vida na cidade de Cabul, capital do Afeganistão, e que começa com a divulgação de algumas leis promulgadas em 1997 (trezes anos atrás apenas), do ponto de vista de suas interpretações, cheira à tragédia, das gregas. Os personagens encaminham suas direções por entre limites muito bem marcados, definidos, superiores a eles e suas vontades/idiossincrasias. Não há o que fazer a não ser aceitar e conviver com as novas determinações políticas. Daí a lentidão que é conseqüência do alto peso de cada vida em jogo no jogo cênico, isso expresso no jeito como cada personagem fala, mas também em como ele se move, como ele se relaciona, como se prepara. O cenário é horizontal: os atores permanecem bastante tempo sentados ou deitados. O nível é baixo como que evidenciando que há um plano superior e ordenador. Quando há um grito, ele dura por frases inteiras e não apenas é uma interjeição. O que de cenário ocupa pontos altos são cortinas que se estendem por além de um metro e não apenas por um único centímetro. A concepção de Teixeira, pela forma coesa que se expressa, faz do Amok, nesse espetáculo, como também em outros, um dos melhores grupos teatrais do país nesse tamanho continental que ele tem.

E, ainda no mesmo aspecto, indo além da encenação e chegando na recepção, o clima instaurado de dor contínua e peso se estende ao público. O espetáculo sufoca. Quem vê se sente preso nesse estado de coisas tolhedor de qualquer liberdade: não podemos nos mexer, não podemos olhar para outro lado, não podemos não ouvir e, principalmente, não nos é permitido não compreender o que está sendo dito. Tudo é claro o bastante para nos obrigar a experimentar. Nessa situação, vemos os personagens como resultado desse meio, sem moral, nem ética, sem culpa, nem intenções. A narrativa nos faz cogitar a hipótese do instinto.

Em Cabul, nenhum tipo de divertimento é permitido. Não se pode cantar ou dançar, ouvir ou produzir música, pintar, escrever, fotografar ou fazer teatro. Um jovem (Marcus Pinna), que casou-se um pouco antes de todas essas normas entrarem em vigor, sente-se amordaçado nessa situação desumana. Um dia, diante do horror do apedrejamento público de uma condenada, pega uma pedra e participa da punição. Seu ato é julgado pela moral, pela ética, por sua própria história e, principalmente, por sua esposa. Por que ele tomou parte disso e manchou suas mãos nesse assassinato cruel? O clima animalesco toma conta da cidade e só a partir disso é possível absolver o jovem, cujos hormônios encontraram no show negro um motivo para explodirem. O realismo naturalista se encontra com o psicológico, ou seja, tentando analisar teoricamente esse trabalho do Amok Teatro, sugiro a hipótese de compreensão do personagem tanto a partir da situação como do seu próprio universo psicológico.

Permanecendo na questão da encenação, adianto sobre a transição dos quadros. Cada troca de cenário é mais terrível que a anterior. O ritmo lento de cada quadro muda repentinamente quando ele termina. Os atores fazem barulho, correm, agem. É um tormento vê-los saírem da situação cênica embora sejam precisos e necessários. Então, reflito sobre o incômodo que se sente e encontro lugar na experiência de que falava parágrafos acima. Kabul faz reviver uma situação política verdadeira em Cabul. O tormento sentido pelo espectador absorto é necessário à peça, ao que se quer, à catarse épica, se é que Aristóteles e Brecht possam conviver. Quanto mais rápidos são os atores na contrarregragem, mais cortante se torna a cena conseqüente. E, me parece, ser esse corte o material que o grupo precisa para fazer acontecer sua proposta: transportar a assistência para aquele contexto e, de lá, fruir a cena.

Quando Jorge Arias diz que Kabul foi um dos melhores espetáculos dessa edição do Festival, ele não só está certo do ponto de vista artístico como também do teórico. Afinal nem só de Lehmann deve viver a academia.


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Texto e Direção: Ana Teixeira e Stephane Brodt / Elenco: Stephane Brodt, Fabianna de Mello e Souza, Kely Brito e Marcus Pina / Figurino: Stephane Brodt / Cenário: Ana Teixeira / Iluminação: Renato Machado Música: Beto Lemos / Produção: Erick Ferraz / Duração: 1h20min / Classificação: 16 anos


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*Rodrigo Monteiro: Licenciado em Letras - Português/Inglês pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos.Bacharel em Comunicação Social - Habilitação Realização Audiovisual pela mesma universidade. E mestrando em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Jurado do Troféu Açorianos de Teatro 2010 e, também, do Troféu Braskem 2010, é autor do blog www.teatropoa.blogspot.com de Crítica Teatral de Porto Alegre.

Rodrigo Monteiro #19: In on it


Foto: Guilherme Santos / PMPA

O não dito

Embora a discussão sobre forma e conteúdo já tenha sido deixada de lado há um bom grupo de décadas, uma vez que já se entendeu que, na forma, também há conteúdo, partir dela é sempre renovador quando pensamos em arte como um processo que começa e termina e que só se estende na sua recepção. O que levou um determinado grupo de pessoas a fazer essa peça desse jeito? E aí a reflexão fica situada o máximo possível (ou seja, num lugar tão pequeno quanto inexistente) naquilo que não é a relação da obra com o público. In on it parece ser mais uma peça em que um grupo de pessoas pensou, primeiro, na forma e esqueceu do conteúdo, como tantas que se vê por aí.

“Eu sou louco para fazer uma peça em que as histórias se misturem... Uma coisa meio Magnólia com aquela chuva de sapos...”

“E duas cadeiras. Só duas cadeiras. Teatro dos bons: ator e texto!”

Cansativo. Histriônico. Frio como uma geladeira vazia. Inútil como um Iphone que não recebe ligações, nem as faz. Com um texto do canadense Daniel MacIvor, Emilio de Mello e Fernando Eiras, em calças, sapatos, camisa e gravata iniciam a peça dizendo, com todas as letras, que querem fazer algo aparentemente inovador, que comece “de repente”, sem que o teatro pareça teatro, sem que haja um ponto inicial bem marcado. Com uma mala cheias de troféus e a fama de ser o espetáculo mais desejado do 17º Porto Alegre em Cena, a trama dirigida por Enrique Diaz parece mais purpurinada do que realmente boa. Os atores, que são excelentes, se sucedem em personagens quase caricatos e a luz é um espetáculo a parte, sendo o cenário, o figurino, a maquiagem e, em alguns momentos, a protagonista desse show.

Então, as histórias vão ganhando corpo e os minutos passando. De um lado, dois atores ensaiam uma peça. De outro, a peça apresentada. No centro, um par de homossexuais discutem a relação. Os homossexuais parecem ser os atores no passado. Um dos atores parece ser um dos personagens da história da peça, o que estava dirigindo um dos carros no dia do acidente fatal que termina a trama dentro da trama. Há ou não há uma ligação entre as três narrativas?

Eis aí que o texto deixa de ser texto e os atores passam a não mais existir. Tem-se um discurso e quem age é personagem do/no contexto. É o Rodrigo que muda de tom quando escreve no blog do festival ou quando está no Ponto de Encontro. É o filho que fala com a mãe de um jeito e com o pai de outro. Mostra carinho quando quer e é frio quando não está nem aí. (Ou o contrário.) In on it fala das roupagens que a comunicação tem e delas se usa para ser comunicação. A peça se constrói em cima de uma forma totalmente cheia de conteúdo, esse a ser usado o mais plenamente possível. E sua história fala de conteúdos sem forma e, por isso, muitas vezes, não ditos. Se um dos atores for mesmo o personagem da história contada e ambos serem os homossexuais que relembram sua própria história, então, estamos falando de algo que não aconteceu. Tudo não passa de uma reflexão sobre o que não ficou dito. Mas poderia...

Não sabemos do quê sofre o homem que está condenado à morte. Ele não sabia que sua mulher estava tendo um caso com outro. O filho não sabe que o padrasto irá embora e sua mãe não tem o que dizer a ninguém que ela não possa simplesmente seduzir. O filho fala do tempo, do emprego, da esposa, mas não fala com o pai sobre si e sobre ele. Ninguém sabe quanto tempo de vida resta ao protagonista. Ninguém diz.

O par de homossexuais relembra como se conheceu e como foi sua relação. Sem saberem muito um sobre o outro, eles se encontraram para organizarem uma coreografia para uma festa. Desentendidos. Desencontros. “Por que você não me disse isso (que não poderia me receber) há vinte minutos (quando você mesmo me convidou para vir aqui na sua casa)?!” As brigas, o casaco, a troca do ingresso, o xampu. “O que era mesmo para comprar?”

Os dois atores têm ideias diferentes quanto ao texto. Um deles é o autor, mas embora a opinião desse seja mais fortemente defendida, nem sempre a do outro é desprestigiada. Nós vemos as duas.

Nós vemos as três. Todas as histórias, em paralelo, são contadas sem a entrada ou a saída de nenhum cenário que não seja a mudança de lugar das cadeiras, a quebra na luz e uma nova corporalidade na dupla de atores: Mello e Eiras. Todas as histórias viram uma só, envolvidas, in on it. E o conteúdo mostra pela forma ser o quão próximos e distantes estamos, tanto que, às vezes, o não-dito se perdoa. Às vezes, não.

De uma forma muito inteligente, o tema banal, mas não vulgar, das relações humanas e do quanto se perde de tempo em não dizer o quanto certas coisas e pessoas são importantes é tratado como conteúdo em In on it. A equipe que criou o projeto trata com a profundidade que o teatro contemporâneo oferece uma questão que só é superficial por ser, muitas vezes, mal discutida. Sempre é tempo de nos unirmos para nos perguntarmos sobre as coisas que não dissemos, sobre o que faltou dizer, sobre o que não adianta mais pensar. MacIvor, ao escrever o texto com a literatura, sugeriu. Mas o mérito é de Diaz e seu grupo pela encenação e do POA EM CENA pelo teatro, pelo encontro do público gaúcho com essa proposta tão rica, emocionante, bem feita e bem vinda.

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*Rodrigo Monteiro: Licenciado em Letras - Português/Inglês pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos.Bacharel em Comunicação Social - Habilitação Realização Audiovisual pela mesma universidade. E mestrando em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Jurado do Troféu Açorianos de Teatro 2010 e, também, do Troféu Braskem 2010, é autor do blog www.teatropoa.blogspot.com de Crítica Teatral de Porto Alegre.

Elisa Lucas: In on it


Foto: Guilherme Santos / PMPA

In on it: completamente envolvida

Assisti ao espetáculo In on it. É sempre um presente ver o trabalho do Enrique Diaz, que conheço do Porto Alegre Em Cena de outros carnavais. Não sei dizer qual foi a primeira vez que sua direção criativa, simples e viva me pegou de jeito. Se foi em A paixão segundo G.H. que me fascinou pela PAIXÃO que tenho por Literatura, se foi em Melodrama ou, talvez, em Ensaio.Hamlet, cuja Ofélia jamais esqueço com suas dezenas de cartas, seu garrafão de vinho azul com o que ela “se afogava” e um Hamlet de All Star vermelho, número 34 (porque pra mim era 34!). Ou, ainda, minha surpresa ao ver o ator Fernando Eiras na plateia do Elis Regina antes de começar a peça comentando assim, que nem um vizinho de porta: "Nossa, que estranho, senti um arrepio... Sabe que eu tenho medo de Fantasma. (Tempo) Pois é, Hamlet é uma peça de fantasma...” Ele falava de um jeito tão cotidiano que eu pensei: “Putz! Ele tem razão! Nunca tinha pensado nisso, não desse jeito!” O fato é que sempre que vejo o nome Henrique Diaz no Festival, garanto o ingresso e, lá no fundo, meu sonho de consumo é ser dirigida por ele quando crescer.

Mas, voltando ao In on it: Duas histórias se constroem no palco, situações propostas, trilha deliciosa de ouvir e com função no espetáculo. E mais a iluminação pontual do Maneco, outra criatura talentosa, cujo trabalho também conheci no Em Cena. Uma feliz combinação de elementos e, ao mesmo tempo, um palco limpo. Theatro São Pedro sem cortinas, outro sonho de consumo.

Dois homens, duas cadeiras e um casaco. A primeira relação: o que não faz um casaco bem usado no teatro? Lembrei imediatamente do espetáculo Le Costume, de Peter Brook, em que uma personagem com o casaco esquecido pelo amante posto em metade do seu corpo interpretava o amante e acariciava a si mesma, de forma poética e quase maliciosa.

Os dois homens contam uma história cujo personagem principal usa o tal casaco, mas os dois homens também têm uma história (isso chama a atenção da plateia, parece inusitado, mas contemporâneo). De repente, os dois brigam porque um está usando o “casaco” do outro. Agora o casaco não é mais personagem, tem dono! Esse é apenas um exemplo da teatralidade do espetáculo que, com poucos recursos bem utilizados na hora e na medida certa, tomam vida e cumprem a função de construir a ficção. Uma chave de carro verdadeira no final e nada mais. Mas antes disso, acontece muita coisa.

O espetáculo me envolveu de tal maneira que, enquanto estava ali me deleitando com o talento, a precisão e a naturalidade dos atores Fernando Eiras (o mesmo ator de Ensaio.Hamlet) e Emílio de Mello foi como se passasse um turbilhão de coisas na minha cabeça, no meu coração e na minha alma. E confesso que me permiti tal turbilhão devido ao próprio título da peça que, segundo nota da tradutora do texto, Daniele Ávila:

“A expressão “in on alguma coisa” quer dizer estar envolvido, estar por dentro, é quase um “ter culpa no cartório”, mas não chega a tanto. Pode ter uma conotação de ilegal ou, pelo menos, suspeito. Indica uma espécie de envolvimento que sugere uma responsabilidade, uma participação. A dramaturgia guarda isso, esse trunfo, até o fim: não se trata apenas de contar uma história que aconteceu com um personagem, mas de perceber o que move o outro personagem a contar essa história: ele está totalmente “in on it”. Assim, “in on it” é quase um estado, um ponto de partida e uma motivação. Difícil achar um título em português que tivesse tanta carga de significado em tão poucas letras”.

Fonte: http://inonit.wordpress.com/2009/04/27/nota-da-tradutora-1/

Sim, eu estou envolvida. Sim, estou motivada e tenho culpa no cartório. Vendo o espetáculo, eu pensava: é esse tipo de teatro que quero fazer, por que não estou fazendo? Ou, ainda, onde foi que eu me perdi, ou por que é tão difícil ser simples? Escutava as palavras do texto, escutava a história, via aquela dramaturgia calcada no jogo dos atores, e queria mais, e tinha mais, uma transcendência, uma coreografia divertida, um telefonema equivocado, um “vamo fudê” e um comentário do tipo: “Será que esse final tá bom?”. Tudo muito preciso, dentro do timing, os atores ali, falando com a plateia, fumando um cigarro que chega nas minhas narinas e ataca minha puta rinite. Vendo o espetáculo, mais relações. Lembrei do Roberto Birindelli me dizendo: “Quando você conta uma história, você se relaciona com ela, ela te provoca alguma coisa. Traga essa história pra perto de você! O que, em você, tem a ver com essa história?” E pensei: “Era isso que ele estava dizendo! Era disso que ele falava”

Lembrei também da Maria Lucia Raymundo que, na aula de interpretação, nos perguntava: ”Qual é o momento em que nos sentimos realmente vivos?” E, de repente, parei tudo e pensei no meu pai que morreu em um acidente de moto e percebi que nunca tinha pensado no que ele sentiu naquele momento. E, naquele momento, tentando imaginar/sentir tal sensação, me senti mais perto dele. O que será que ele sentiu?

Não consigo dizer mais nada, estou completamente envolvida.

IN ON IT

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Elisa Lucas (www.elisalucas.com.br) é Bacharel em Artes Cênicas (UFRGS). Trabalhou com: Camilo de Lélis, Luciano Alabarse, Nestor Monastério, Roberto Birindelli, Roberto Oliveira e Inês Marocco. Desde 2004, apresenta Confesso que Capitu, dirigido por Roberto Birindelli. Assistido por mais de 9.000 espectadores, o espetáculo fez sua estreia internacional em 2010 em Sevilha (Espanha). Em 2009, a atriz estreou Histórias de uma mala só (Prêmio Tibicuera de Melhor Atriz), com direção de Vinicius Petry. Em sua formação, cursos com Philip Goulier, Thomas Leabhart, Miguel Crespi, Antonio Amâncio, Maria Helena Lopes, Luis Carlos Vasconcellos, Ivaldo Bertazzo, e outros.

Felipe Mônaco: In on it


Foto: Guilherme Santos / PMPA

A boa peça e o espetáculo de horror

Desde o início, fica evidente o desejo do diretor Enrique Diaz de realmente dialogar com o público. Esse desejo é expresso pelos atores através das constantes perguntas e afirmações dirigidas à plateia. Não são perguntas retóricas e nem piadinhas simples para animar o público. São perguntas sinceras e afirmações do tipo: “Isso é uma peça, não é um espetáculo”.

E realmente é uma peça. Viva, aberta e caótica. Não há cenário além de duas cadeiras, não há tempo linear e tão pouco há uma história fechada. E essa é a essência do diálogo, pois nela está a possibilidade de cada uma das pessoas na plateia compor a sua versão da peça. O que se vê são dois atores maduros e excelentes transitando entre três realidades distintas. Que se combinam para falar de amor, relacionamentos, tentativas, (inclusive a tentativa de montar uma peça) do acaso, de mudanças e o inevitável fim de tudo.

O trabalho dos atores é impecável. Sua noção de ritmo, a clareza na dicção, a consciência do que é estar em cena sem exageros, o carisma com o público, a agilidade para explorar cada nuance das emoções oferecidas pelo texto, demonstra realmente dois atores experientes e muito bem escolhidos para a proposta. Percebe-se uma engrenagem bem lubrificada funcionando em harmonia, não há excessos no jogo dos atores.

A direção de Henrique Diaz é ágil, simples e eficiente. As mudanças de cena são claras e muito bem marcadas tanto pela atuação dos atores, quanto pelas precisas mudanças de iluminação no trabalho de Maneco Quinderé. É clara também a paixão de Diaz pelo teatro dentro do teatro, uma constante em sua trajetória. Que a cada trabalho da Cia de Atores se intensifica criando mais níveis, mais universos paralelos intrincados. Até o momento incrível em que a vida dos atores se mistura com a vida das personagens.

Mas, infelizmente, o que mais chamou a atenção, principalmente, no início da peça, foi a falta de educação e a histeria de algumas pessoas na plateia. Eu não entendo como, nos dias de hoje, ainda é possível uma pessoa deixar o celular ligado durante uma peça. Isso está além da falta de educação, é puro desdém pelos atores e pelo público. E essa pessoa atenderia o celular pra dizer o que? “Hã... Desculpe, não posso falar agora... Estou no teatro... Me liga mais tarde”.

Por duas ou três vezes, celulares tocaram em menos de 15 minutos de peça. Um desses “gênios” ainda conseguiu sair do camarote pra atender e bateu a porta bem alto. E teve início a ópera do mau gosto: o eterno abrir e fechar de bolsas, o crepitar insuportável dos saquinhos de bala, o brilho debilóide das telas de celular enquanto algumas pessoas mandavam e recebiam suas mensagens irrelevantes: “O q VC vai Fzr Dpois?”. Ou simplesmente viam as horas. Que diferença faz que horas são? As risadas mais altas que a fala dos atores e totalmente fora de hora. Aquele tipo de risada histérica que não é uma expressão de graça, mas, sim, uma mensagem aos outros: “eu sou culto, eu sou pós-alguma coisa, entendo todas as piadas de peça antes mesmo dos atores terminarem de falar...”

São essas as pessoas que acordam às cinco horas da manhã para comprar ingressos? Para quê, pra fazer isso? O que está acontecendo? Onde está a educação, a consciência e o respeito pelo próximo? O mais irônico é que, quando os atores falavam com a plateia, ela ficava muda, atônita, sem reação. Vai entender...

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Felipe Mônaco é ator e recentemente se aventurou como diretor e autor da peça Fora do ar. Formado pelo Tepa em 1999 divide sua carreira igualmente entre o teatro, cinema e tevevisão. Em Porto Alegre, trabalhou ao lado de Jorge Furtado, Mirna Spritzer, Marco Fronchetti, Heinz Limaverde e Patsy Cecato. No Rio de Janeiro participou da Companhia Atores de Laura dirigida por Daniel Herz.

Camilo de Lélis #4: In on it


Foto: Guilherme Santos / PMPA

In on it: Mas… Enfim, é uma boa comédia!

Bem recomendada pela crítica e pelos vários prêmios que recebeu, a peça In on it não decepcionou as expectativas e, com o calor que atores experientes sabem levar ao termômetro de uma casa cheia, tudo funcionou bem. Pode-se, inclusive, fumar no palco e jogar a bituca no tablado do vetusto Theatro São Pedro? Por que não? Enfim... Se faz parte da peça...

Mas vejamos a frio. Dois atores representam dois amantes homossexuais. Um deles é autor de teatro e os dois se revezam para dar vida aos personagens de um melodrama com doenças incuráveis, traições conjugais e meninos que sofrem com a ausência do pai. Nesta peça dentro da peça, o que surge é uma sucessão de estereótipos, não faltando o velho com Parkinson, Alzeimer ou algo assim, com amnésia e língua de fora. O jogo de representar a tal peça é entremeado pelos conflitos amorosos do casal gay que, nesta montagem, são tão superficiais que só servem para criar situações cômicas. E é nisso que In on it funciona bem.

A peça convence pelo terceiro ponto de vista, a comédia interativa, ou seja, a moldura do show. Os atores (os reais), desde o início, deixam clara a convenção de que haverá interação com o público, pois falam diretamente com as pessoas e, na sequência, até descem à plateia. Li comentários elogiosos que falam de uma suposta profundidade de sentimentos no espetáculo quando não há nenhuma, pois sua estrutura fragmentada não permite. A peça é uma comédia que alterna show de auditório com um entrecho de duplo enredo, cheio de gags e de bordões.

Não conheço o texto original do dramaturgo canadense Daniel MacIvor, mas o que aparece na montagem brasileira é um melodrama dentro de um drama que está dentro de uma comédia carioca, o que, para mim, resultou numa gozação em três níveis. A dupla de atores, Emílio de Mello e Fernando Eiras, são intérpretes que dão conta do cômico, equilibrando perfeitamente os dois clowns, o alegre e o depressivo. Eles têm domínio absoluto da brincadeira, e a direção de Enrique Diaz soube valorizá-los, apoiando a encenação em seu carismático desempenho. O público riu bastante e aplaudiu de pé a performance dos atores. Pelo resultado alcançado, a comédia In on it ficará bem dentro da memória do 17º Poa em Cena.

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Texto: Daniel MacIvor / Tradução: Daniele Ávila / Direção: Enrique Diaz / Assistente de direção: Pedro Freire / Direção de cena: Marcos Lesqueves / Coreografia: Mabel Tude / Consultoria de movimento: Marcia Rubin / Técnica Alexander: Valéria Campos / Elenco: Emilio de Mello e Fernando Eiras / Figurino: Luciana Cardoso / Cenário: Domingos de Alcântara / Iluminação: Maneco Quinderé / Trilha sonora: Lucas Marcier / Produção: Enrique Diaz / Duração: 1h20min / Classificação: 16 anos


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Camilo de Lélis, diretor de teatro, entre seus trabalhos destacam-se: O ferreiro e a morte, Macário, o afortunado, O estranho Senhor Paulo, A bota e sua meia e Mehrda, presidentas que foram agraciados com o Troféu Açorianos da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre em várias categorias. Seus trabalhos foram vistos em circulação por quase todo Brasil. No exterior, destacam-se as apresentações de Jacobina e de Mehrda, presidentas em Montevidéu (em 1996 e em 2001, respectivamente) e de O estranho Senhor Paulo em Buenos Aires (1997). A bota e sua meia apresentou-se na Alemanha, em 1998, e em Portugal, em 2003, dentro do Projeto Cena Lusófona. Em 2006, as encenações de Camilo de Lélis foram objeto da monografia Carnaval, encenação e teatro gaúcho, premiada no Concurso Nacional de Monografias Gerd Bornheim. A obra foi publicada em 2007, registrando em livro a contribuição desse encenador para o teatro.