quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Os vencedores do Prêmio Braskem 2011

Ontem à noite, em cerimônia no Teatro do Bourbon Country, e com o complemento do show Mônicas (das cantoras Mônica Tomasi e Mônica Feijó), foram entregues os cinco troféus Braskem para os escolhidos pela comissão julgadora como os melhores espetáculos locais apresentados na programação do 18º Porto Alegre em Cena. Neste ano, a comissão foi integrada pelos jornalistas Alice Urbim, Fábio Prikladnicki, Michele Rolim, Vera Pinto e Zeca Kiechaloski. Os vencedores foram:

Melhor Espetáculo do Júri Popular: HYBRIS
do Grupo Falos e Stercus, com direção de Marcelo Restori


Melhor Ator: DENIS GOSCH
pelo espetáculo Hotel Fuck: num dia quente a maionese pode te matar
direção de Jezebel de Carli, da Santa Estação Cia. de Teatro


Melhor Atriz: CAROLINA GARCIA
pelo espetáculo A tecelã
dirigido por Paulo Balardim, do grupo A Caixa do Elefante Teatro de Bonecos


Melhor Direção: DANIEL COLIN
pelo espetáculo Wonderland e o que M. Jackson encontrou por lá
do Teatro Sarcáustico



Melhor Espetáculo:
WONDERLAND
E O QUE M. JACKSON ENCONTROU POR LÁ


Luiz Paulo Vasconcellos, o padrinho do Porto Alegre em Cena em 2012

Já está escolhido o nome do padrinho da edição 2012 do Porto Alegre em Cena: será o ator, diretor, professor e escritor Luiz Paulo Vasconcellos, um dos nomes mais importantes da história do teatro gaúcho. Aos 70 anos, Luiz Paulo participou da formação de grande parte dos artistas que hoje estão em atividade em nossos palcos. Apesar de ser carioca, tem vivido a maior parte de sua vida em Porto Alegre (desde 1969), onde desde então trabalha ativamente, seja em empreitadas artísticas, seja em cargos públicos. Casado com a atriz Sandra Dani, forma com ela um dos casais mais queridos e importantes de nossas artes cênicas. Parabéns Luiz Paulo!

Medeia por Jessé Oliveira

Medeia numa montagem intercultural*

Médée, de Burkina Faso, sob a direção de Jean-Louis Martinelli foi, em minha opinião, um dos pontos culminantes do 18º Porto Alegre em Cena. Obviamente que eu tinha uma expectativa em relação a este espetáculo por conta de interesses pessoais, essencialmente pelo trabalho que desenvolvo junto ao Grupo Caixa-Preta. Há uma evidente identidade com o ensemble burquinense.
Para Bernard Dort não dizemos que vamos ver uma peça ou um espetáculo e sim que vamos ao teatro, significando que há muito mais coisas nesta aventura que somente a obra que assistiremos. Esta assertiva é confirmada por Jorge Dubatti que defende a noção de um convívio teatral que estende esta experiência a diversas dimensões para além do momento exclusivo da representação e para falar de Médée é preciso escancarar as portas do presente e do passado.
Fui ao espetáculo com a “tarefa” de extrair algum comentário que pudesse ser compartilhado com outras pessoas que iriam ler na página do festival e isto imprimiu certa preocupação extra com a experiência efêmera que é a representação teatral. Tive o privilégio de adentrar a plateia com aproximadamente uma hora de antecedência ao restante do público, o que me possibilitou presenciar ajustes por parte dos atores e equipe técnica e da própria produção do Em Cena. Inegável observar que se tratava de atores negros e equipe de criação e técnica formada por artistas brancos. No entanto, todos se comunicavam em francês, língua adotada no país desde que era uma possessão francesa. Impossível abstrair esta observação.
No final do século XIX a França chega a esta localidade e a nomeia de Alto Volta, que perduraria até o ano de 1984 quando troca para Burkina Faso. É um país muito pobre com alto índice de analfabetismo e, como toda a África, sofreu com a histórica espoliação colonialista que viveu durante mais de um século sob o domínio francês, tendo alcançado sua independência somente em 1960. Unificado e dividido muitas vezes segundo interesses externos, Burkina Faso, sofre ainda por esta história de violência política. Como parte da África, tem, atualmente, sua maioria religiosa de muçulmanos, mas ainda possui reminiscências de religiões originais que competem ainda com o cristianismo católico e protestante. Os deuses originais vivem no exílio, aqui no Brasil, em Cuba, no Haiti...
Esta situação de permanente acampamento de refugiados em seu próprio país serve de “cenário” para Médée, entretanto, falta à montagem decifrar a origem das lutas étnicas, pois elas foram intensificadas justamente pela delimitação artificial de um território político que não podia comportar a diversidade, fenômeno identificado em quase toda a África e Oriente Médio. Relevante lembrar que os anos 1950-1960 foi um período em que se desenvolveu o conceito de negritude, cunhado por intelectuais africanos e antilhanos francófonos que viveram na França, como Aimé Cesaire, Leopold Senghor, Sheik Anta Diop. A França à época tinha uma efervescência por liberdade, contudo, mantinha colônias na África e Ásia. Liberdade para quem?
Estivéssemos na Grécia Antiga, uma introdução à tragédia seria algo dispensável, uma vez que todos conheciam seus mitos e as histórias contadas nos festivais teatrais, todos queriam saber como seus autores preferidos desenvolviam cada história. Eurípides (480-406 a.C.) foi tragediógrafo da fase decadente de uma Grécia clássica já dominada pelo sofisma. O enredo de Medeia (431 a.C.) é simples e tem seu início na aventura dos Argonautas, liderados por Jasão que tem a tarefa de conquistar o Velocino de Ouro, muito bem protegido no Bosque de Ares, sob o domínio do rei da Cólquida, Eetes, pai de Medeia. Com a promessa de casamento por parte de Jasão ela o ajuda, e na fuga despedaça seu próprio irmão para atrasar os perseguidores. Tem dois filhos com Jasão e eles serão o instrumento de sua vingança. Medeia é sobrinha de Circe, a feiticeira, e neta de Hélio, o Sol, que ao final garante sua fuga no deus ex-máquina, uma inovação na estrutura trágica que de certa forma resolvia o complexo enredamento da narrativa euripidiana. Jasão pretere o amor de Medeia em favor de Creusa, filha do fraco Creonte e ela como vingança envia, através dos filhos, um véu enfeitiçado que ateia fogo na jovem e em seu pai. Ao retornarem os filhos são mortos por Medeia. A peça em questão é uma adaptação de Max Rouquete, que sintetiza muito bem a trama utilizando um dialeto do sul da França em contraponto com cânticos autóctones que muito lembram as cerimônias do povo do asè (Axé) brasileiro.
Aqui no Brasil, qualquer pessoa minimamente iniciada no Candomblé, ou no Batuque, designação da religião de matriz africana no Rio Grande do Sul, não precisaria de informação alguma para compreender os personagens e os signos da liturgia por haver um domínio desta cultura. Entretanto, nós, público médio, desconhecemos os mitos unificadores desta longa tradição perpetuada no país como forma de resistência cultural e política, assim como nos falta o conhecimento do sistema trágico grego. Nos resta analisar a obra a partir dos elementos que dominamos, na sua condição de teatro. E isto basta para compreender a montagem burquinense, estrelada pela magistral atriz Odile Sankara, uma vez que a obra trava aproximação muito grande com o teatro europeu. A Medeia de Odile é inesquecível e impecável assim como toda a montagem.
Já no início da peça chama atenção a pergunta proferida pelo coro: “Que povo que somos? Povo maldito” e que, sob certo aspecto, pode ser compreendida como uma ponte entre o discurso original da peça e o homem contemporâneo vivido pela população burquinense e o elenco de Médée.
Contrariando seus antecessores, da fatalidade cega de Ésquilo ou o lógos da razão socrática de Sófocles, em quem os deuses olímpicos tinham papel fundamental, em Euripides é Eros, a força da paixão que nutre os personagens. Medeia é, segundo Junito Brandão, a tragédia do amor transmutado em ódio mortal e, lembrando uma frase de Brecht: “um homem tem sempre medo de uma mulher que ame muito”. Odile, a atriz burquinense consegue dar esta dimensão da mulher que sofre por amar desmedidamente, mas não se torna submissa ao objeto amado, somente à sua própria paixão.
Além de uma presença cênica estupenda (seja lá o que isto significar) Odile tem uma voz e uma forma tão intensa de dizer o seu texto que comoveria, ainda que se estivesse de olhos fechados. A África tem uma tradição oral tão forte e viva, uma vez que parte do ensino-aprendizagem se dá pela oralidade e a transmissão do conhecimento é muito direta, apreende-se o conhecimento ancestral ouvindo os mais velhos. Gostaria de ter gravado esta mulher dizendo suas falas. Elas tinham imagens interiores.
Sua força contrasta com as figuras masculinas fracas como a do Rei Creonte, muito bem construídas pelo ator que o representou que, já em sua primeira aparição cativou e disse muito com seu silêncio cheio de intensidade. Creonte aparece em cena como um político populista e oportunista que por sua fraqueza intelectual em contraste com a fala apaixonada de Medeia acaba tendo como alternativa somente o uso da força. Contudo, a astúcia dela acaba por dobrá-lo pela falta de argumentos. É, sem dúvida, uma das cenas mais brilhantes desta montagem.
Não poderíamos esquecer a Ama, já presente em cena enquanto o público entra. Seria impossível. Ela tenta manter o fogo de um braseiro aceso e mantemo-nos presos as suas ações mínimas e, logo que começa a peça já indica sua preocupação com as intensões da protagonista. Juntamente com o preceptor dá a devida força para a progressão da peça a fim de manter o espectador atendo ao desenrolar da trama sempre num crescente. Ama e preceptor, uma dupla que joga o jogo do teatro numa simplicidade que comove. Aliados às crianças que foram recrutadas aqui e foram absolutamente magníficas - e olha que não gosto de peça com crianças em cena. O menino menor era de fazer suar os olhos e ao mesmo tempo tirar lindos sorrisos de nossos rostos sisudos, lembrando que existe um futuro...que dura pouco.
A peça segue em termos de espetáculo o rigor da tradição europeia. Pouco da narrativa ou mesmo dos elementos de encenação foge aos modelos conhecidos nos palcos ocidentais e isto não traz prejuízo algum, apenas saliento que não é uma peça construída sob os referenciais culturais africanos, ainda que consigamos ver uma corporalidade que afirma sua africanidade e, neste sentido criam um modo próprio de deglutir a influência de um teatro de inspiração euro-ocidental.
Em contraponto à personagem Medeia, com seu furor intempestivo, temos o cinismo de Jasão oportunista que com sua fala mansa tenta sofisticamente convencer Medeia de que ele tomou a melhor decisão para todos e que o exílio dela faz parte de seu jeito de protegê-la e aos seus filhos.
O cenário, assim como o próprio espaço cênico são reveladores, ora deixando uma tênue luz revelar parte da movimentação em penumbra e ora ao modo brechtiano, revela toda a estrutura do teatro nos chamando a consciência de espectadores. Utilizando potentes refletores fresnel de 5 mil watts, algo somente visto nas grandes produções de fora da cidade, a luz é sempre reveladora e não deixa nada escondido, é quase a presença de Hélio, o Sol que vai proteger Medeia de seus atos e acusar a omissão e a traição de seus inimigos.
Se toda a peça é construída sob um forte domínio de uma teatralidade de matriz europeia, na noite do dia 25 de setembro fomos brindados, ao final da apresentação, com uma pequena demonstração de danças africanas por parte das atrizes, algo provavelmente não ensaiado, fruto da alegria do momento. Uma bela despedida para o Festival. Viva Burkina Faso. Asè.
* Jessé Oliveira é encenador

Mônicas por Marcos Chaves

Intercâmbio*

Para comentar o show musical intitulado Mônicas, eu não poderia deixar de situá-lo onde sua apresentação estava inserida. Dentro do Porto Alegre Em Cena, atração de encerramento e entrega do Prêmio Braskem – que destaca espetáculos gaúchos de artes cênicas – e, por isso, havia na plateia um público diferenciado.
Diferenciado no sentido em que muitas emoções estavam ali presentes, o show, para alguns, fazia parte de uma grande festa, e no passar de sua realização, na medida em que eram revelados os premiados, mistos de alegrias, tristezas, concordes e discordes instauravam-se no ar, também fazendo parte do show, pois o espectador é o sentido do artista “estar no palco”.
Dito isso, é claro que era possível perceber parte do público curtindo o show, e parte do público envolta em outras emoções. E não apenas pelo prêmio Braskem, mas também pela data final do festival, um clima de compensação pelos organizadores do evento que procuraram fazer um bom trabalho, entremeados por discursos de importantes pessoas que fazem e/ou apoiam o festival.
Da premiação, parabenizo todos os artistas destacados pelo júri popular ou júri oficial – que tiveram um difícil trabalho devido a tantos concorrentes apresentando obras artísticas de qualidade.
Situadas em uma apresentação dentro de um evento complexo, Mônica Tomasi (RS) e Mônica Feijó (PE) – por isso o nome Mônicas – tinham outra preocupação com seus músicos: fazer um grande show para o público presente. Luciano Alabarse, coordenador geral do Porto Alegre Em Cena, revelou que há algum tempo queria apresentar a musicista pernambucana ao público gaúcho, esperava apenas o momento certo. Disse também um fato que vivenciamos: a dificuldade de “expandir fronteiras” que os artistas possuem com suas obras. Não é fácil conseguir espaços em outros centros culturais, geralmente os espetáculos percorrem uma trajetória local e/ou regional dentro do próprio estado. Certamente não por opção, e sim por esbarrar em dificuldades diversas.
Unir o grupo gaúcho de Tomasi ao pernambucano de Feijó fora uma grande ideia, desta forma o público apreciou um pouco mais da Mônica “daqui”, e conheceu a Mônica “de lá”. O intercâmbio cultural estava presente, os músicos realmente se divertiram no palco. É fato que as cantoras, sabendo do show marcado há meses atrás, mantinham contato já trocando seus repertórios, criando situações para o evento, dividindo ideias...O que poucos sabem, é que elas apenas se conheceram pessoalmente um dia antes do show. Houve apenas um ensaio. Não é tarefa fácil, e os músicos se saíram muito bem: tanto que o ponto alto do show aconteceu quando todos estavam no palco e ambas as Mônicas cantavam juntas.
Divididos em blocos, o show primeiro nos trouxe Mônica Tomasi acompanhada por dois músicos, Giovani Berti na percussão e Matheus Kleber no acordeon – jovem artista que realço por fazer do instrumento de sopro uma extensão de seu corpo. No segundo bloco, Monica Feijó e quatro instrumentistas, Tom Rocha na bateria, Areia no baixo, Rodrigo Souza na guitarra e Guga Fonseca nos teclados. Desta formação, destaco Fonseca por sua habilidade e sensibilidade aos timbres. A partir do terceiro bloco um presente a nossos olhos e ouvidos: a junção de todos os artistas no palco, superando o pouco entrosamento e descobrindo relações frente ao público. Um ganho ao show.
Nas composições próprias, poesia. Mas o público precisaria de outras oportunidades para melhor conhecer cada Mônica, fica o show como parte de um grande evento, repleto de emoções, e agora – introduzida a cantora de Recife ao público gaúcho e aguçada curiosidade a respeito da cantora de Porto Alegre – temos como procurar um pouco mais sobre cada artista, bem-vinda a tecnologia neste quesito. As Mônicas marcaram o Porto Alegre Em Cena e estarão na memória do festival e do público presente. Uma bela atração para um festival que cresce a cada ano, e atingiu a maioridade – 18 anos de Porto Alegre Em Cena – mostrando que é um dos eventos culturais mais importantes do país, quiçá da América, com reconhecimento intercontinental.
* Marcos Chaves é ator, músico e criador de trilha sonora

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Medeia por Rodrigo Monteiro

Médée*

O espetáculo Médée (Medeia), participante do 18º Porto Alegre em Cena, não é a atualização para teatro do clássico de Eurípedes, mas a versão teatral do texto de Max Rouquette (1908-2005), autor expoente da língua occitana, idioma falado no sul da França. Escrito em 2003, o texto substituiu o projeto inicial do diretor Jean-Louis Martinelli, diretor do Théâtre Nanterre-Amandiers, desde 2002, que era produzir um texto de Heiner Müller, com o elenco Burkina Faso, país do centro-oeste africano. A primeira montagem, de 2003, foi sucedida por mais duas 2008 e 2009. Nela, o espectador se encontra com uma Medeia vista a partir de sua relação com as forças superiores (versão que também pode ser encontrada na Medeia de Pasolini, filme de 1969, cuja protagonista é Maria Callas), sem dúvida, um ponto de vista diferente e interessante de trazer a personagem clássica para os dias de hoje.
O palco é a frente da casa de Medeia. A peça começa quando já faz três dias que Jasão está sumido e ninguém sabe de seu paradeiro. Há uma criada um criado e os dois filhos do casal, esses últimos interpretados, em Porto Alegre, por dois atores mirins alunos da atriz Gabriela Greco. Há, também, o célebre coro de mulheres, que, nessa versão, canta salmos em uma língua africana, cujas legendas não apareceram na sessão a que eu assisti (e não fizeram falta, impressionando positivamente pela sua peculiar sonoridade). Em todas as cenas, é possível encontrar muitas marcas que embasam a tese exposta no parágrafo de abertura: a) a fala inicial, em que a Ama se reporta a Deus; b) os títulos do coro: Salmo do Perdão, Salmo das Crianças, Salmo das Mulheres, Salmo do Pressentimento...; c) a postura curvada dos atores que interpretam servos versus a coluna ereta dos atores que interpretam nobres, além das expressões faciais neutras de todos, o que exibe a submissão ao destino; d) o tom ritualístico com que o Rei é recebido (a acolhida não é espontânea, mas cultural, isto é, o Rei não é recebido daquele jeito porque esse é sentimento, mas porque aquele é o costume); e) o jogo cênico estabelecido na cena entre o Creonte e Medeia, ambos de linhagem real (rei = ungido pelo sagrado); f) a recuperação do passado de “feiticeira” de Medeia; g) o final, em que a protagonista é vista voando pelo espaço; etc. Em várias passagens, a concepção se reafirma, converge, se estrutura enquanto um objeto único, coeso e coerente consigo próprio, tornando a produção bastante valorosa. Um autor, diretor ou/e ator pode ter o ponto de vista que quiser sobre um determinado texto na hora de concretizá-lo cenicamente, mas o ato da encenação precisa ser fundamentado em bases sólidas que, no todo de suas potencialidades, seja o resultado de um projeto pensado esteticamente em cada uma de suas partes. Em Médée, é exatamente isso o que se vê para o deleite da plateia da capital gaúcha.
Odile Sankara, que interpreta Medeia, está excelente em todos os pontos elementares de sua construção. Junto dela, o elenco, de um modo geral, ajuda a construir grandes momentos. Para destacar um instante que poderia parecer um detalhe dispensável, cito a expressão da líder do grupo de mulheres (Corifeu): na cena em que as mulheres tentam demover Medeia do assassinato dos próprios filhos, o rosto da atriz está impassível, forte, concentrado, potente. Tem grande mérito a produção em que, da alta protagonista ao mais coadjuvante dos personagens, todos exibem o resultado de um trabalho de primeiríssima qualidade como é o caso aqui.
Se figurinos, cenário e trilha sonora estão impecáveis, a iluminação apresenta-se como um recurso bastante mal utilizado. A produção está quase durante todo o tempo da encenação iluminada com luz geral, sem focos que favoreçam os diferentes momentos/lugares de sua narração. Luzes atrás do cenário vazam pessimamente para a plateia e, o pior de tudo, um objeto espelhado reflete a forte luz dos refletores nos olhos da audiência que é perturbada por isso.
Termina o Festival com a graça de um elenco de artistas que recebe os aplausos como se celebrasse a sua vida, a sua vinda, o seu talento expresso na peça a que acabou-se de assistir. Um brinde a todos nós.
* Rodrigo Monteiro é crítico teatral

Estrella Morente por Ana Cláudia Munari

¡Wa-llah!*

Assisti ao show de Estrella Morente no Bourbon Country no domingo, no último dia do Porto Alegre em Cena. Maravilloso! Saí de lá naquele estado catártico de quem tem um encontro com a arte, com todos os sentidos acionados e pensando na beleza das coisas. Eu nunca tinha assistido a um show de flamenco naquele estilo, e fiquei refletindo sobre suas origens, os intérpretes, os instrumentos, enfim, cheia de perguntas para fazer ao Google quando chegasse em casa. Havia em mim a sensação de que presenciara algo mais puro do que aquilo que se costuma ver da cultura espanhola nos shows para turistas e na televisão, pela muito perceptível influência árabe no canto e na interjeição de estímulo “wa-llah”, além da forma quase ritualística do início do espetáculo e do uso daquela caixa de madeira, cujo nome só lembrei depois: cajón. Enquanto eu pensava em origem e raízes do flamenco, alguém me disse que se tratava de algo novo, moderno, e que os violeiros tinham influência do rock.
Fiquei surpresa com a minha interpretação tão diferente, mas essa é justamente uma característica da arte: entregar os sentidos para o receptor. Apesar disso, certamente aquele estilo apresentava marcas e influências distinguíveis, que eu desconhecia. No dia seguinte, vi no Facebook o comentário do Hique Gomez (ator, cantor e pai da Clarah Averbuck), dizendo que Estrella magnetizou a plateia, e foi mesmo o que ela fez, chegando ao ápice com sua homenagem ao Brasil, ao final, cantando e dançando um samba e trazendo sambistas e seus pandeiros para o palco – ela é fã de Caetano, Bethânia e Elis Regina. Mas foi a forma como Hique conceituou a música apresentada pelo grupo que me chamou a atenção: “Flamenco puro: passado e futuro”, eis aí uma resposta para o conflito sobre o gênero interpretado por Estrella Morente e seus companheiros de palco.
No website da estrela Estrella, podemos confirmar uma importantíssima informação: ela é filha, sobrinha, neta de cantores, bailarinos, maestros, instrumentistas de flamenco. Ou seja: em sua própria origem, está a cultura do flamenco. Certamente isso tem relação com a primeira parte da expressão usada por Hique: “passado”. Desse passado, Estrella trouxe aquele canto original, que parece um lamento – a melancolia, a soléa, que, como disse Estrella em entrevista, tem influência do fado. Tradicionalmente, o flamenco era isto, o canto andaluz, e foi daí minha sensação de viagem no tempo, para algo primitivo e essencial, que toca, até sem palavras, a alma da gente. Palmas e guitarras vemos muito nas representações contemporâneas, que incluem as castanholas, mas isso também não é algo que possa ser chamado “novo”. Já o conceito de moderno, como foi qualificado o espetáculo, pode definir aquilo que tenha surgido da modernidade, que remonta ao período entre os séculos XVI e XVIII. Assim, o próprio flamenco, como mistura cultural, é moderno!
O fato de se tornar um espetáculo, e não uma reunião de membros de uma comunidade espanhola, por si só já configura essa desconstrução de um gênero “original”, e assim toda uma grande parte da cultura moderna, mesmo as ditas nacionais ou identitárias, perderia seu sentido de pureza ilusória. A quebra da tradição talvez esteja mesmo no fato de que é impossível ao artista manter-se apartado do mundo que o cerca, insensível ao que o toca diante da criação, isento de sua bagagem. Os jovens membros do grupo, incluindo a cantora de 32 anos, trazem consigo o vigor que o próprio flamenco admite seja incorporado. Sejam as tecnologias que permitem a configuração do som ou das luzes – o novo –, até as novas práticas instrumentais, talvez herdadas de outros gêneros e tendências, na linha fragmentada da vida – o futuro –, tudo serve, ali, para a celebração da tradição espanhola. Se os jovens guitarristas flamencos dedilham sob a influência do rock, ou se o folclore brasileiro é matéria de inspiração, nada disso é estranho ao que fizeram os flamencos do passado, afinando as cordas dos violões com a imaginação perpassando por todos os sons do mundo, aqueles que conquistavam territórios, atravessavam fronteiras, criavam outras nações.
O que eu ouvi foi a originalidade do flamenco, distinguível no canto, nas guitarras, nas palmas, no baile: passado e futuro, tradição e modernidade, herança e renovação. E talento, essencial para a arte. Mais: a alegria do pertencimento a uma cultura que se ama, respeita e cultiva, que é o elemento contagiante, a chama que desperta o reconhecimento do público como algo vivo, humano, essencial. Como a cultura...¡Olé!
* Ana Cláudia Munari é Doutora em Letras

Ninguém falou que seria fácil por Carolina Garcia

Ninguém falou que seria fácil*
Olhando as postagens deste blog, resolvi escrever minhas impressões sobre Ninguém falou que seria fácil para abrir uma conversa virtual...Vamos lá!
Ao entrar na sala de espetáculos, vibra a sensação de que o teatro é o ambiente do encontro original entre o espectador e o ator. Um espaço autêntico está à disposição de nossos olhos. Já de início, cortinas abertas e palco composto por objetos cuidadosamente selecionados para nos lançar à ficção teatral, sem perder de vista as referências cotidianas, apresentam um funcional casamento entre a criação de iluminação (Tomás Ribas) e a composição da cenografia (Aurora dos Campos). Na cena, um homem, assim como nós, estabelece sua primeira conexão com as pessoas que estão chegando, na expectativa de que algo aconteça. Rompendo as conversas da plateia, aparece uma mulher que principia uma discussão de casal absurda e convincente. Finalmente, surge o último componente de nossa tríade e, então, ocorre uma vertiginosa sequência de desconstrução fluida das personalidades. Entre diálogos e narrativas de construção do ambiente imaginário, são abordadas questões familiares e relativas à própria comunicação .
Desta forma, com uma dramaturgia contemporânea autoral e inteligente, Felipe Rocha estabelece um jogo de relações humanas e sobreposição de papéis do cotidiano, que leva a plateia à cumplicidade e identificação com os atores, os quais conduzem o texto de forma dinâmica e musical. Stella Rabello, Renato Linhares e o próprio autor, Felipe Rocha, num tom despojado, compartilham uma brincadeira de convenções teatrais, envolvente, divertida e com uma sensualidade que vai além da discussão de gênero e idade.
Percebo, na direção de Alex Cassal, uma escuta generosa. Ele sabe unificar as forças criativas ao mesmo tempo em que permite a liberdade de sua eficiente equipe.
A ação teatral contempla uma hora e meia de duração, a qual, talvez, pudesse prescindir de quinze minutos para mantermos a sensação de ter perdido alguma coisa ao invés da sensação de ter visto coisas a mais.
Mesmo assim, fico com a boa impressão de que esta obra permaneceu comigo ao longo do festival para além do teatro, e foi responsável por encontros e surpresas memoráveis.
Prestem atenção nesta turma: Individual ou coletivamente, eles ainda vão produzir outras boas e instigantes obras artísticas!
* Carolina Garcia é atriz

A última gravação de Krapp por Rodrigo Monteiro

A última gravação de Krapp*
O problema maior das produções dirigidas por Bob Wilson, diretor americano cuja fama alcança vários pontos diferentes do planeta ao longo dos últimos quarenta anos, é o fato de que ele aparece demais. Em outras palavras, suas marcas são tão fortes, tão vivas, tão exuberantes que torna possível pensar que todo o resto, e, nesse caso, o resto é Samuel Beckett, é apenas um motivo, uma desculpa, algo dispensável. O resultado é que cristaliza-se a certeza: viu uma peça de Bob Wilson, viu todas.
Krapp’s last tape ou A última gravação de Krapp, escrita em 1957, é considerada a peça mais autobiográfica do dramaturgo irlandês, autor de Happy days, espetáculo participante do 17º Porto Alegre em Cena, também dirigido por Bob Wilson. Nesse texto, como nos outros, o tom trágico também pode ser visto. O diferencial é que não se tratam de personagens presos ao próprio destino (Fim de partida), ao próprio tempo (Esperando Godot) ou presos à própria condição (Dias felizes). Aqui o personagem está preso ao próprio presente e sem a possibilidade de mudar nada no seu passado. A palavra last (última) no título tem dois sentidos: a última gravação pode informar que é a gravação mais recente, mas também pode afirmar que não haverá outras. Krapp, o personagem protagonista e o único que se vê em cena, talvez diante da morte, ou não, tem o costume de, no dia do seu aniversário, fazer uma gravação em que se narra os acontecimentos daquele ano. Na peça, está-se no aniversário de sessenta e nove anos de Krapp. E, mais uma vez, ele vai em busca de si próprio nas antigas recordações gravadas em velhos rolos (spools).
(Para os interessados no texto, é possível fazer relação entre esse personagem e o seu homônimo em Eleutéria, primeiro texto de Beckett, escrito nos anos 40).
Bob Wilson mantém o tom intimista do texto quando cria uma chuva muito forte a cair do lado de fora do escritório. O som é altíssimo e o jogo de luzes está excelentemente posto, de forma, que o clima realista, embora com significantes bastante distantes do real, está plenamente estabelecido. O cenário, no entanto, é bastante impessoal: deixa de ser uma única mesa em que o personagem se encontra com várias versões de si próprio, em especial aquela em que ele completa trinta e nove anos, e passa a ser uma espécie de repartição pública com várias mesas, uma grande prateleira, muitas luminárias. O tragicomicidade clownesca da máscara branca e do nariz roxo, rubrica do texto, dá lugar a um personagem estilizado e que parece ser a própria máscara, ou seja, a sua inexistência. Os movimentos elípticos tomam o lugar de várias passagens do texto que não aparecem na versão de Bob Wilson que, nessa montagem, também é o ator. Para quem não conhece o texto, fica difícil estabelecer relações entre as memórias gravadas na fita ouvida e aquele que a ouve. Considerando que a encenação dura pouco mais de setenta e cinco minutos, boa parte deles, empregados na exploração da iluminação e do recurso do som de chuva, o interessante encontro em Krapp de sessenta e nove anos com os antigos Krapp não acontece. Em substituição, está um homem ouvindo uma gravação de si mesmo há muitos anos e nada muito mais além.
Krapp’s last tape, espetáculo participante do 18º Porto Alegre em Cena, é uma maquiagem que deixa ver muito pouco do rosto ao invés de embelezá-lo, realçá-lo, abrilhantá-lo. Pela sua importância, Bob Wilson é bem vindo à capital gaúcha, mas vale dizer que Beckett também o seria.
* Rodrigo Monteiro é crítico teatral

A última gravação de Krapp por Marcelo Adams

 Bob não é bobo*

Bob Wilson, este brilhante encenador norte-americano que, felizmente, continua em plena atividade, dirigindo espetáculos inesquecíveis e provocadores ao redor do mundo, sabe que nossos tempos encontram perfeita representação na obra teatral de Samuel Beckett. Afora as peças longas (mais conhecidas) de Beckett, como Dias felizes e A última gravação de Krapp, sonho em ver encenados por Wilson textos mais curtos e de ainda maior complexidade, como Words and music, Cascando, Not I, Footfalls (a lista se estenderia por vários outros títulos). Já que, por enquanto, isso é matéria de sonho, nos deleitemos com este A última gravação de Krapp, apresentado no 18º Porto Alegre em Cena.
É possível ser purista ainda em nossos dias, defendendo esta ou aquela maneira de encenar um texto? A resposta é tão óbvia que não merece réplica. O único compromisso que uma encenação deve ter é com sua coerência interna e, naturalmente, com sua efetiva comunicação. Quando escrevo comunicação (obviamente que nos casos em que ela é buscada), quero me referir à possibilidade que a encenação tem de apresentar um discurso relevante, impactante, esteticamente marcante. É o caso de A última gravação de Krapp. Esqueça aquela estética cinzenta, encardida, que se costuma associar a Beckett. Bob Wilson nos apresenta o aço, o plástico. Esqueça o catarro, Bob nos entrega a assepsia. Krapp faz 69 anos e ouve velhas fitas onde, 30 anos antes, gravara suas impressões sobre acontecimentos envolvendo uma mulher. 30 anos se passaram, Krapp não é mais o mesmo, todas as suas células se renovaram, ele é outro ser, inteiramente distinto daquele do passado. A única coisa que identifica esses dois Krapps, distantes tantas décadas no tempo, é um nome: Krapp (e note-se a ironia de Beckett, crap, em inglês, é merda).
Bob Wilson como ator vive uma figura desumanizada, quase um robô-velho que surpreende-se com sua rendição, no passado, ao amor. De antíteses a encenação se serve: o visual clean, contemporâneo, da cenografia, opõe-se à ultrapassada tecnologia do gravador de rolo. Imagens evocativas do afresco A criação de Adão, de Michelangelo, colocam Krapp como o primeiro (e último dos homens), em conflito com o Grande Criador. Deus expressa-se com trovões ensurdecedores, relâmpagos e chuva abundante. Só resta a memória, e é a ela que Krapp recorre para fazer passar o tempo. Em síntese, a dramaturgia de Beckett tem um tema recorrente, que é o da espera e, em sua obra tardia, a memória e a impossibilidade de preservá-la.
Visualmente, o espetáculo é arrebatador, perfeito no uso do manancial técnico. Não se enganem os desavisados: o perfeccionismo estético de Bob Wilson encobre uma profunda e genial reflexão sobre o Homem. Bob Wilson não é bobo.
* Marcelo Adams é ator, diretor teatral e dramaturgo, professor do curso de Teatro: Licenciatura da UERGS

A última gravação de Krapp por Clóvis Massa

A última banda sonora*

Em sua biografia sobre Samuel Beckett, com quem conviveu por mais de vinte anos, o escritor James Knowlson identifica nos acontecimentos pessoais do dramaturgo, ocorridos no início de 1958, a gênese criadora de A última gravação. De todos, o principal teria sido a doença de Ethna MacCarthy, o amor de juventude de Beckett, diagnosticada com câncer de garganta, a quem ele passa a escrever longas cartas, cheias de sentimento, para demonstrar o afeto profundo que nunca deixara de sentir. As lembranças de Ethna, a quem amou jovem e cheia de vida, se justapõem, como afirma Knowlson, à certeza terrível dela estar doente e condenada à morte.
Ainda que não se procure compreender qualquer criação artística pela vida do autor, e, no teatro, que seja necessário partir do texto dramático para examinar o espetáculo, a maneira como se alternam o claro e o escuro, o desejo e a perda, a nostalgia ou as lembranças, a ambição e o fracasso fazem da montagem de Krapp´s last tape, de Robert Wilson, uma espécie de exumação. O velhaco Krapp, aos 69 anos, ouve a gravação que fizera há trinta anos e traz à tona um tempo em que “tudo estava lá”, tal qual o olhar da mulher que o fascinava na época. O estranhamento do vocabulário que havia empregado no passado, o escárnio em relação a quem ele foi, tudo faz com que se desvende um Krapp de 39 anos, que, por sua vez, acabara de ouvir uma gravação de quando tinha 27 anos, criando não a exumação de um cadáver, efetivamente, mas das situações de sua vida sintetizadas em momentos, em instantes durados, vistos através da moldura das bandas sonoras.
A última gravação, em sua origem, era uma peça radiofônica sobre o passado, mas a intensidade da montagem teatral de Bob Wilson capta os sentidos do espectador, direcionando-os para o aqui-e-agora da representação. Houve quem espiasse em direção ao urdimento do teatro, para ver de onde vinha tanta água. Se choveu e alternadamente se fez silêncio no palco do Theatro São Pedro, é porque cada elemento da rigorosa composição cênica do diretor estava fundado na plenitude da retratação daquela situação. O que mais admiro nos seus trabalhos é um tratamento de estilo, a maneira como ele desnaturaliza os gestos mais cotidianos, excluindo a forma mais costumeira da retratação psicológica sem, no entanto, romper com os princípios comportamentais da realidade. É claro que assistimos à exumação do passado de Krapp, mas o mais importante parece ser a forma como ele articula como linguagem o que representa para o velhaco o retorno ao passado: como se fosse sempre a última respiração de um velho pulmão, prestes a não mais funcionar, o som metálico da banda sonora era como o afiar da foice antecipando a chegada da morte. Seria esse o verdadeiro realismo?
* Clóvis Massa é ator e professor do Departamento de Arte Dramática da UFRGS

Ninguém falou que seria fácil por Jezebel de Carli

Talvez um dia difícil!*

Quando Marcelo Adams me perguntou se eu gostaria de escrever as minhas impressões sobre algum espetáculo do Em Cena, lembro que respondi sim, mas pedi a ele que fosse “algo” bacana, um trabalho a ver com minhas inquietações, vontades, estéticas e linguagens. Por que? Sempre acho delicado tecer considerações sobre o trabalho dos colegas e como não sou “crítica de teatro”, é sempre mais agradável falar de “algo” que provoca paixão, onde queremos estar ou que gostaríamos de realizar ou ainda, estando como espectadores, sermos provocados seja através do sensível, do humor, do sarcasmo do poético, enfim. Ok, disse Marcelo e me indicou o espetáculo Ninguém falou que seria fácil da companhia carioca Foguetes Maravilha, com direção de Alex Cassal e texto e co-direção de Felipe Rocha. Bárbaro, pensei, será tranquilo. Serei espectadora, as imagens e palavras ocuparão os espaços da memória e, como na edição anterior, ao escrever sobre O idiota, as impressões sairão escorrendo e deliciosamente as palavras preencherão os territórios devidos. Não aconteceu. Tenho dificuldade em escrever, pois tive extrema dificuldade de entrar no espetáculo. Bem, deixaram evidente no título: não será fácil!!!! Mas tinha tudo de que gosto, que droga, o que aconteceu!? Desconstrução, brincadeiras, teatralidade, humor, trocas de personagens, bons atores, certa improvisação, episódios autônomos que se entrelaçam, diálogos curtos, vazios a serem preenchidos pelo público, uma certa “anarquia, sujeira e contaminação”. Me pergunto, por que? Infelizmente não saberei precisamente responder, mas não fui capturada e não fui capturada como espectadora. Algumas questões se organizam. Talvez pelo tempo excessivo, onde já entendemos o jogo e os desdobramentos das figuras apresentadas, mas o demasiado, nesse caso, aborrece e nos leva para outros lugares e espaços e fugimos do instante proposto na cena. Talvez pelo excessivo estar à vontade dos atores e estes a forjarem, de certa maneira, o não estarem em cena, pois sim, é teatro e por mais que queiram me fazer crer no acontecimento como momento presente e improvisacional, é da ordem da ficção, articulado e detalhadamente organizado. Talvez a temática das relações familiares já esteja extremamente desgastada e só tenham sentido pra mim quando vem com a força de provocação, a acidez e o constrangimento de textos como de Nicky Silver (referência à dramaturgia apresentada nessa edição). Ou ainda porque quando se percebe que a trama está se resolvendo, há novos desdobramentos e se retoma a história da menina (Marina), agora adulta, perdida no início da peça e aí já estamos cansados de tantos jogos e inversões, recurso fartamente utilizado ao longo da narrativa. Também porque, o espetáculo, segundo críticas, foi concebido em espaço de arena, no qual, provavelmente, a relação de cumplicidade entre atores e público encharcaria a cena e a experiência de fato se potencializaria.
Passados alguns dias, encontrei um amigo que, ao comentar sobre o espetáculo, me disse que um dos atores havia afirmado que às vezes o espetáculo acontece e às vezes não e que no festival o melhor dia havia sido o segundo e “putz”, pensei eu, vi no terceiro dia. Enfim, sabemos nós, o quanto o teatro é escorregadio, líquido, mutável, frágil e que inúmeros aspectos interferem na performance. Um dia aconteceu, no outro foi péssimo, naquele foi demais, em outro foi técnico e por aí vai. Nota-se ao longo da encenação um esvaziamento de interesse do público, na medida em que os aplausos se fizeram comedidos e pouco entusiasmados, manifestação nada comum nos espetáculo do Em Cena, visto que, na sua grande maioria são ovacionados e aplaudidos entusiasticamente. Em determinado momento um dos atores afirma ao outro, referindo-se a nós, público, algo mais ou menos assim: "essas pessoas estão aqui para verem alguma coisa interessante". Infelizmente, a sensação ao sair do teatro é de que havia “algo” muito mais interessante e potente, mas que não havia acontecido ali, naquela noite com aquelas pessoas e em última instância, a mim não contaminou.
O Em Cena é bacana por isso: diversidade, exposição, subjetividades, divergência de opiniões, apaixonamentos, debates, dissonâncias, mas acima de tudo é maravilhoso, porque vamos ao teatro e vemos público em abundância. A esperança é que um dia, espero que não tão longe, caso contrário, não estarei aqui para presenciar, as temporadas locais também estejam com suas lotações esgotadas.
* Jezebel de Carli é professora, atriz e diretora de teatro

domingo, 25 de setembro de 2011

O padrinho, o coordenador, o blogueiro e a atriz

A brincadeira que o título deste post faz com o nome de um dos mais conhecidos filmes do cineasta inglês Peter Greenaway vem a propósito com esta 18ª edição do Porto Alegre em Cena. A foto acima foi clicada em Montevidéu, em fevereiro de 2011, na casa do padrinho do Em Cena deste ano, o jornalista uruguaio e crítico teatral Jorge Árias. Junto de Jorge (ou Papá, como é conhecido por aqui), estão Luciano Alabarse (como todos sabem, o Coordenador-geral do festival), este que vos escreve (Marcelo Adams, o responsável por este blog) e minha mulher, a atriz Margarida Leoni Peixoto. Todos os quatro envolvidos e engajados com o festival, seja como espectadores, seja como parte da equipe que, a cada ano, põe de pé este que é o maior festival de teatro do Brasil, e um dos maiores da América Latina. Em tempo: quem clicou esta foto foi Irene Bouzada, a esposa de Jorge Árias. Quem frequenta o festival já deve tê-la visto, com seu contagiante entusiasmo pelo teatro, acompanhando Jorge em dezenas (!) de espetáculos a cada edição do Porto Alegre em Cena.
O festival caminha para sua reta final, e a equipe liderada por Luciano já começa a produção do 19º Porto Alegre em Cena desde já. Que seja inesquecível como este que termina na próxima terça-feira, com o show Mônicas e a entrega dos Prêmios Braskem!

sábado, 24 de setembro de 2011

Bethânia e as palavras por Vera Mello

Infinito delírio chamado desejo (de educar)*

Justo na semana em que um menino de 10 anos leva uma arma de fogo para escola e atira em sua professora e na sequência se mata com um tiro na cabeça, chega a Porto Alegre Maria Bethânia com sua linda voz e nos acalanta com uma homenagem. Lembrando aos professores de todo o planeta: “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem, de repente aprende”.
Eu, de uma geração em que esta mulher era hyppie e com talento virou ídolo. Gostando ou não do estilo, letra e música, reconheço que ela passou a ser uma referência, um clássico. Numa época em que o sertanejo universitário é destaque nas paradas embora tenha ouvido alguém lançar uma piadinha que eu particularmente acho engraçada: “Espero o dia que o sertanejo universitário se forme e se mande!” Me perguntei, saindo de casa ontem, para assistir o espetáculo: o que terá de inovador e o que me leva a essa cantora célebre, que já fez sua história? Eu não digo que me surpreendi com a plateia lotada, mesmo que não tenha encontrado ninguém das minhas relações. Fiquei com a impressão que aquele momento não tinha sido por acaso. Maria Bethânia se rebatizou Maricotinha e com longos cabelos brancos citou o irmão Caetano Veloso, seu contemporâneo de escola e compartilhou conosco época em que estudante de escola pública recebia com entusiasmo suas primeiras lições e aprendia pra sempre o prazer de brincar com as palavras. Voltando à tragédia que tanto nos entristeceu essa semana e contrapõe-se ao sucesso da noite de ontem. Estivemos ali com uma mensageira, resgatando valores essenciais do homem, através de cânticos imortais. Um momento de enorme cumplicidade entre artista e plateia. Tantos aplausos que em alguns momentos perdemos o começo de poesias. Não me pareceu tietagem mas, um encontro de almas que se reconhecem, uma declamação sem limite de idade, apenas um discurso bem dito. Digna de ser reverenciada e assim o foi. Humilde e elegante, recebendo as honras, ela confessou: o que quero da vida é a realizar meus sonhos. Teatro lindo, recepção articulada. Parabéns aos organizadores do Porto Alegre em Cena. Obrigada por nos proporcionar esse espetáculo que nos devolve o eixo. Ficou claro o papel de um artista na sociedade. Maria Bethânia é um clássico, aquele que perdura o tempo de toda a história da humanidade e não envelhece nunca.
* Vera Mello é professora de francês e arte-educadora

Well-wishing Binari por Álvaro RosaCosta

Dulsori...Sons da Natureza...e muito mais*
Realmente é difícil achar um título que traduza o que vivenciamos na noite de 22 de Setembro no teatro do SESI. Luz de serviço e sons vêm do fundo da plateia...2 homens e 3 mulheres!!!??? Pensei: Puxa!! Só isso!! Esperava uma orquestra!!
Primeiro engano.
Os cinco encaminham-se para o palco e continuam com variações rítmicas e coreográficas! Esqueça inicio meio e fim! A ansiedade pelas palmas é domada, embora seja notório a necessidade, quase doentia, de se achar um buraco para enfiá-las!! Impossível! Certamente não conduziremos o espetáculo...Basta ficar atento aos novos sons, que irão nos embalar por muito tempo.
De repente surgem os tambores, tocado às vezes por duplas! Num primeiro momento prejudicado pelo "sistema de som", logo, porém, sentimos no peito os golpes tão esperados! Tons diferentes, afinações e maravilhosas melodias! Para mim o momento mais impactante, foi o tema executado por duas musicistas sob uma luz violeta!! Uma fazendo a harmonia em um instrumento que Mateus Mapa descreve como sendo uma "harpa" (me pareceu um piano com menos cordas, sendo pinçadas pelos dedos) e a outra menina num instrumento, segundo Rene Goya, chamado "cheng" que assemelha-se a uma gaita de fole pequena e de um som encantador! Só por esta música já valeria a pena ter saído da cama (gripado) para me deslocar até o SESI! Em muitos momentos notamos uma certa preocupação com a participação do público, o que acho desnecessário, mas que se configura e resulta numa energia inacreditável no foyer do teatro ao final do espetáculo! Aliás, o que ocorreu na despedida do público mostra a força de uma cultura que realmente vem do modo de pensar e agir de um povo. Os músicos, incansáveis, ficaram por cerca de 20min tocando, dançando, comungando e se despedindo de cada um dos que ficaram com eles. Para nós ao final do espetáculo o sentimento era de aflição por não encontrarmos pessoas que deveriam, por vários motivos, estar na plateia deste show mágico e inesquecível!! Aos cinco intrumentistas ainda juntaram-se uma cantora e um artista que parecia ser o mais velho de todos e nos trouxe dois momentos de muita delicadeza, com gestuais e movimentos corporeos precisos.
Parabéns ao Poa em Cena por ter nos proporcionado este encontro e um agradecimento especial ao Marcelo Adams por ter me convidado para assistir este belíssimo espetáculo.
(As imagens abaixo foram captadas por Álvaro RosaCosta na apresentação do dia 22 de setembro, no Teatro do SESI em Porto Alegre)

* Álvaro RosaCosta é músico e ator

Pequeno inventário de impropriedades por Rodrigo Monteiro

Pequeno inventário de impropriedades*

A literatura contemporânea tem duas marcas que podem ser consideradas definitivas: a hipertextualidade e a polissemia. Pequeno inventário de impropriedades, texto escrito por Max Reinart, sob orientação de Roberto Alvim, durante a Oficina do Núcleo Regular de Dramaturgia do Paraná, em 2009, parece redescobrir a poesia modernista, com versos livres e estrutura solta, e, ao investir no traço polissêmico, acaba fornecendo um material bastante nobre para o teatro pós-dramático ou contemporâneo. Dirigido por Denise da Luz, o espetáculo resulta numa grata surpresa desse final de programação do 18º Porto Alegre em Cena. Reinart, em 45 minutos, leva a cabo o espetáculo de uma forma bastante rica em possibilidades, essa uma característica fundamental para o gênero na qual a produção se insere.
Chão vermelho. Uma cama ao fundo, uma cadeira à frente. O ator inicia o espetáculo a partir do texto. Há um personagem e o público é convidado a conhecê-lo de um jeito pouco esclarecedor: algumas pistas são dadas, mas não o suficiente para nos sentirmos confortáveis como estaríamos num bom e velho drama. Vale aqui a indecisão, a busca, a incerteza, o pântano. Reinart investe, como autor e como ator, em múltiplas possibilidades, fornecendo significantes com várias possibilidades de significados. Um pai de família afinal, um trabalhador, alguém comum que teve a sua vida modificada por um acontecimento fatal. Ou não? No fim do texto, o espectador segue livre para interpretar as coisas de outro jeito, embora todos nós tenhamos partido do mesmo ponto. Se as informações a respeito de suas relações familiares e profissionais fazem a percepção tomar uma direção, o tom de voz e o ritmo de pronúncia do discurso – irregular e, por vezes, gritado – permitem outras conclusões. Nesse caso, é difícil avaliar se o ator interpreta bem ou mal o personagem uma vez que a análise não consegue se decidir sobre qual personagem é esse. No entanto, no que diz respeito à interpretação, avalia-se a produção como cheia de bons valores.
Os elementos que fazem par com o ator na cena também são sinais que acrescentam positivamente ao resultado final de Pequeno inventário de impropriedades. No espetáculo, a luz, o cenário e a trilha sonora, no que diz respeito a sua significação, mas também ao modo como a peça se viabiliza, são aspectos em grande sintonia. Em outras palavras, o extremo cuidado com que cada detalhe se integra à narrativa salta aos olhos do público que se sente valorizado. As projeções, vício desse tipo de produção, aqui foi utilizada de forma rica, principalmente por haver, cenicamente, um objeto/parte do figurino (uma cabeça de cavalo) e uma ação (deitar na cama aos pés dos cavalos) que relacionam a imagem da tela com a imagem teatral. A possibilidade de comunicação entre todos esses elementos garante ao todo a qualidade que um festival como o Porto Alegre em Cena merece e, nesse convidado catarinense, tem.
* Rodrigo Monteiro é crítico teatral

Os credores por Rodrigo Monteiro

Os credores*

Em um determinado momento, na fileira atrás de mim, observei dois espectadores dormindo. Na minha fila, mais dois. Na plateia da frente (a encenação se organiza em galeria, isto é, a audiência se organiza em dois lados com a cena acontecendo no meio. O espectador vê a cena, mas também vê, além dela, a outra plateia), três pessoas de olhos fechados deitadas sobre os próprios ombros ou sobre o corpo da pessoa ao lado. O espetáculo Os credores, cujo texto foi escrito pelo dramaturgo sueco August Strindberg (1849-1912) em 1888, participante do 18º Porto Alegre em Cena, deixa a seguinte dúvida: por que as pessoas dormiram ou ficaram sonolentas na apresentação a que eu assisti? A hipótese de que Strindberg não diz nada para o público de hoje é refutável por qualquer um que entenda um pouco de arte. Logo, o tédio do espetáculo só tem um responsável: o Grupo TAPA, dirigido por Eduardo Tolentino. De que forma é possível atribuir-lhe a culpa, promovendo uma análise do objeto estético teatral em questão? Indo às fontes. Aqui algumas hipóteses.
Strindberg é considerado o pai do teatro expressionista, sendo algumas de suas obras lidas a partir do gênero realista naturalista e outras mais tardias via simbolismo. Os credores está bem no meio dessa encruzilhada. Seu cenário é realista, seus personagens são naturalistas, mas a situação, disposta na forma tragicômica, é expressionista. Algumas marcas importantes: três personagens se encontram no hotel: o ex, o atual marido e a esposa. O que pode parecer um simples vaudeville se torna retrato das relações humanas que, talvez, só o bom teatro realista pode fornecer. Na abertura, o atual marido, Adolf, não sabe que Gustav é o ex de Tekla, sua esposa. Na sequência, Tekla não sabe que Gustav está no quarto ao lado ouvindo a conversa entre ela e o marido. No final, Tekla não sabe que Adolf está no quarto ao lado ouvindo a conversa entre ela e o ex-marido. Nos dois últimos pequenos atos, há uma peça dentro da peça e o mais importante desse jogo é que a parte principal, Tekla, desconhece isso. Esse, na verdade, é um recado da obra aos futuros realizadores: no teatro realista, a quarta parede precisa ser mantida. O expressionismo está na situação e não na realização.
Eduardo Tolentino, quando adapta Os credores para uma situação de galeria e organiza os atores para que eles, em vários momentos, busquem no público um certo contato visual, inibe qualquer chance de catarse, diminui as forças do texto, deixa a situação por demais previsível e, assim, muito entediante. O português extremamente correto dos personagens não foi adaptado para a nova situação. O figurino permanece bastante realista também. A situação de prisão vivida pelos personagens é marca naturalista mantida igualmente. O problema está no jogo entre os personagens e na relação com o público, esses sinais de que estamos diante de um novo ponto de vista sobre a obra.
Sergio Mastropasqua interpreta Gustavo, o ex-marido. Dos três atores, é quem sustenta a construção menos interessante justamente porque é quem mais joga (ou tenta jogar) com o público. Suas falas são ditas de forma irônica em várias ocasiões, a retórica se apresenta com pouca variação de tom, os gestos são enrijecidos, marcados, negativamente “teatrais”, nada naturais e, por tudo isso, bastante inverossímeis. O ator se movimenta no palco de forma muito precisa deixando ainda mais falsa sua performance. José Roberto Jardim (Adolf, o atual marido) e Sandra Corveloni (Tekla, a esposa), aparentemente mais concentrados no interior das quatro paredes, têm melhores resultados, embora sustentem marcas rígidas e pausas pouco críveis, sinais de que todos esses elementos concretizam uma concepção da direção. Bastante rica é a participação de Conrado Sardinha. Sem nenhuma fala e com atos a princípio bastante inexpressivos, o ator eleva a qualidade da peça nas poucas oportunidades que tem: seus olhares manifestam um personagem real, seu movimento tende ao natural e o modo como ele olha as cenas não traz nenhum registro de que estamos ali a observar-lhe.
Novos pontos de vista sobre obras são bem vindos sempre que estruturados em todos ou em vários aspectos necessários a sua viabilização. O contrário disso é desequilíbrio e insucesso. Nesse caso, monotonia.
* Rodrigo Monteiro é crítico teatral

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Ella por Aline Castaman

Linear intensidade*

Ao toque da campainha, o apagar das luzes, o silêncio. Expectativas que desejam não mais serem expectativas. Portanto, realizações, êxito. A arte do efêmero dedica-se ao entusiasmo, ao brilho no olho, ao jogo, a um acontecimento. O espetáculo uruguayo Ella traz a história de dois homens que não coincidentemente encontram-se numa sauna e travam diálogos e discussões sobre a mulher com a qual possuem um relacionamento. Ao longo da peça vamos descobrindo um pouco mais sobre essa personagem cuja presença é reconhecida e manifestada pelas descrições traçadas pelos amantes. A intensidade supostamente esperada para que o acontecimento teatral se realize não é bem sucedida. Não pude ignorar o fato dos experientes atores por vezes me encantarem com diálogos vivos e enérgicos os quais realmente me seduziram a ponto de me envolver completamente no universo das personagens. Mas estes instantes, eram instantes. Pela falta de resoluções mais criativas ou interessantes, as ações previsíveis se repetiam despropositadamente entediando por diversas vezes. Gesticulações vazias que se prendiam no exagero. Uma trilha sonora que não contribui para as cenas. Ao contrário, perturba. Um texto transposto que me faz perguntar o porquê de escolhas literais e pouco surpreendentes. E o teatral? A zona de risco? Por mais interessante que fosse ouvi-los, suas vozes agradáveis e a língua marcante por sua beleza em si, era desanimador dar-se conta de assistir algo que parecia estar sendo feito sem ardor. Remetia ao confortável e ao esperado. Quando afirmo “ao confortável e ao esperado” me dirijo ao fato dos atores anteciparem os momentos, momentos que acabam passando sem serem propriamente desenvolvidos. Ações que eram apenas esboçadas e que por fim não se concretizavam. Ações que apenas se ensaiavam e não se transformavam de uma coisa a outra criando ou gerando finalizações no mínimo admiráveis. Repetições insatisfatórias. Ações que claramente não possuíam intenções. Linear. Uma ode à não surpresa. No entanto, seria um tanto descortês e insensível não pontuar os momentos felizes que o ator Sergio Pereira sustenta, ilumina e proporciona ao espetáculo. Sua performance é encantadora quando realmente absorto pelo aqui e agora do teatro. Foi o brilho no olho dele que me fez acreditar estar assistindo Teatro. Um ator generoso que se esforça para driblar o óbvio, porém, solitário. A ausência de cumplicidade é desconcertadamente revertida em risadas nervosas que se repetem incansavelmente pelo ator Álvaro Pozzolo. Percebo o desamparo de Sergio Pereira. Enfim, uma dramaturgia descomplicada e desajustada pelos pontos finais de uma direção deveras frágil. Talvez tenha havido um encontro ou encontros, instantes, momentos, mas o acontecimento teatral, aquele, não se sucedeu por lá...
* Aline Castaman é diretora teatral

Pterodátilos por Guilherme Nervo

Vidas esburacadas*

Ao final de duas peças do Porto Alegre Em Cena, uma reflexão ficou ressoando dentro do meu corpo, suprimindo toda e qualquer outra sensação. Era mais ou menos assim: “Então é isso o que somos? O ser humano pode chegar a esse ponto? Somos essa podridão?”A imagem de ser humano passada por Histórias de amor líquido, de Paulo José, e Pterodátilos, de Felipe Hirsch, não é nenhum pouco positiva. Estas peças comprovam o peso que a comédia é capaz de carregar, rompendo com a ideia formada de que comédias são feitas para relaxar o público. Leveza é a última coisa que esses espetáculos apresentam. Só fui me dar conta da verdadeira dimensão que elas têm, depois de um ou dois dias. Enquanto ria, no teatro, não me dava conta (ou não queria me dar conta) de que estava rindo de minha própria condição, de minha grosseria, egoísmo, superficialidade e estupidez. Ria, como todos os outros, das minhas falhas e neuroses. Ninguém está imune delas, são companheiras de vida.
Pterodátilos já se apresenta instigante no próprio nome. Um dinossauro voador do período jurássico. Por quê? Mais tarde o cenário e o texto acabam revelando os motivos. O segundo elemento que capta a atenção do espectador é o cenário de Daniela Thomas, um escândalo de funcionalidade e estética. Comunica muito bem o estado de degradação que a família retratada alcança. As relações esburacadas terminam como o cenário: um campo de guerra no qual os personagens ficam literalmente e simbolicamente sem chão. A inclinação da plataforma é outro recurso bem utilizado, como se o núcleo familiar estivesse em constante desequilíbrio. Debaixo da casa existe um cemitério, dentre as folhas secas, fósseis de um dinossauro. Os pterodátilos eram conhecidos por seu tamanho e peso, assim como por seus hábitos canibais. O que deixa clara a relação com essa família: de destruição.
Grace, uma mãe (Mariana Lima) que tem muito tempo livre, preenchido por álcool e tratamentos de beleza, uma eterna bêbada que diz o que pensa, esquece o nome da filha e é tarada pelo filho. Artur (Marco Nanini), um pai ausente e adúltero, que é expulso de casa por ter sido demitido do cargo de presidente no emprego. Ema (Marco Nanini em duplo papel), uma filha que está sempre em estado histérico, engoliu um sapato e está prestes a casar com um homem (Felipe Abib) vestido de empregada. Então, o noivo admite estar apaixonado pelo irmão dela, o filho homossexual (Álamo Facó) que acaba de voltar para a família com o vírus do HIV. Talvez porque esteja apodrecendo com mais rapidez, seja ele o personagem que tira as tábuas do cenário, que prepara as covas dos familiares. É possível acreditar nessa história? Garanto que o texto do norte-americano Nicky Silver é ainda mais sem sentido do que isso, por isso os personagens possuem um tom farsesco. É possível inclusive duvidar da condição de seres humanos, afinal eles não apresentam um passado. O presente é uma desgraça. O que se espera do futuro? Para mim essa é uma família de fantasmas, o que de forma nenhuma a torna distante de nós. As semelhanças não são poucas, inclusive.
O texto está repleto de piadas rápidas, de humor barato e instantâneo. Essa é a pior característica da peça, o que ameaça a qualidade de Pterodátilos, mas a não a popularidade. O que ficou muito explícito pelo ruído incessante das gargalhadas que ecoavam no Salão de Atos da UFRGS, que parecia a ponto de explodir de público. Diante de tanto riso, houve espaço para a perturbação? Não senti a violência ou a contração nervosa na recepção do público de domingo, dia 18 de setembro. Bastava Marco Nanini abrir a boca ou sacolejar o corpo para o público cair da cadeira de tanto rir. Não estou questionando o trabalho do ator, que incomoda somente quando produz uma voz muito forçada, quase trancada e inaudível, mas antes problematizando a calorosa recepção. Marco Nanini constrói a filha com esmero, acreditava em cada palavra que ele dizia, enxergava uma garota desesperada sem que ele precisasse apelar ou afeminar suas características. Quanto a Mariana Lima, posso dizer que ela encarna a personagem com muita vontade, ela se entrega àquela mãe desnaturada, podre, que regurgita as falas como uma legítima bêbada. Nanini e Lima proporcionam uma aula de atuação.
Existe uma cena em que Artur deseja conversar com o filho de forma íntima. Então o filho responde: “Fodi com homens. Por quê? Porque é bom”. Ele detalha suas relações sexuais com um linguajar baixo, admitindo ter ciência de que isso não era seguro, mas alguma coisa o impelia a essa atitude. O pai levanta e diz: “Me sinto muito melhor depois de termos conversado”. Ele adota a mesma postura que a mulher, de negação. Ela diz que a homossexualidade do filho ficou no passado. Isso, quando ele está se envolvendo com o noivo da própria filha! A filha nega o fim do noivado, decide se tornar lésbica e dá um tiro na cabeça. Volta para o palco feliz, dizendo que a morte deu certo para ela. A notícia não abala ninguém, assim como não o faz o suicídio do noivo. A família escuta apenas o que quer escutar, estão todos escravizados na tentativa de saciar os desejos violentos de uma existência medíocre. E enquanto isso, o chão abre suas valas, a iluminação é pálida, o cenário é negro e metálico e a trilha sonora é assombrosa.
* Guilherme Nervo é estudante de Teatro no Departamento de Arte Dramática da UFRGS

Cabaré do Ivo por Newton Silva

Do texto ao roteiro: um processo de construção dramatúrgica*

Assisti ao espetáculo Cabaré do Ivo, dirigido por Maurício Guzinski, do Grupo Experimental de Teatro (GET), durante a Semana Ivo Bender, que ocorreu em maio deste ano. O evento, promovido pela Secretaria Municipal da Cultura, comemorou os 75 anos de vida e 50 de carreira do nosso querido dramaturgo e escritor Ivo Bender, mestre que eu tive a honra de ter como professor durante minha formação teatral no Departamento de Arte Dramática da UFRGS. Agora que o espetáculo foi exibido novamente no Porto Alegre em Cena e sabendo que a montagem ganhará nova temporada, em outubro, na Casa de Cultura Mario Quintana, aproveito este espaço para fazer algumas considerações sobre um tema que se conecta diretamente a Bender: a construção do texto para a cena.
O assunto esteve, recentemente, na pauta de discussão do projeto Sessão da Classe, reunindo na Sala Álvaro Moreyra o próprio Ivo Bender, a encenadora Jezebel de Carli e o dramaturgo Diones Camargo, com mediação do jornalista e pesquisador Renato Mendonça. Em especial, como sugere o título deste texto, farei considerações rápidas sobre a dramaturgia construída para a cena tendo como referência textos literários e a literatura dramática. A reflexão surgiu a partir do trabalho do diretor Maurício Guzinski, uma trajetória que acompanho, pessoalmente, primeiro como ator de seu grupo e, depois, como amigo e jornalista que cobre a área cultural. Além disso, Guzinski coordena, desde sua primeira edição, o Concurso de Dramaturgia Carlos Carvalho que está em sua oitava edição.
Desde o início dos anos 1980, quando criou o Grupo Pés na Terra, em Porto Alegre, o ator e diretor Maurício Guzinski preocupa-se com a construção de uma dramaturgia própria. Não se trata aqui de pensar em uma dramaturgia da cena, conceito que também grita em seus espetáculos imagéticos-textuais. Mas, sim, de analisar outro aspecto primordial de sua pulsão criativa: o uso da literatura (e da literatura dramática) como ponto de partida para a construção de uma nova dramaturgia.
Em Dona Possança (1982), primeiro espetáculo do Grupo Pés na Terra, Guzinski inspirou-se na tese do sociólogo José Vicente Tavares dos Santos, Colonos do vinho – sobre os difíceis caminhos da imigração italiana no Rio Grande do Sul. Ele e seus atores, através de improvisações na sala de ensaio, transformaram a tese em um espetáculo teatral. A peça foi recebida com entusiasmo pela crítica e, em 1988, o roteiro do espetáculo foi publicado na coleção Teatro: Textos & Roteiros do Instituto Estadual do Livro.
O segundo trabalho do Grupo Pés na Terra, o espetáculo Antônio Chimango, recebeu o Prêmio Açorianos Especial de 1985. O roteiro da montagem foi criado a partir do famoso poemeto-campestre de Amaro Juvenal (pseudônimo de Ramiro Barcelos). O texto original estava praticamente, na íntegra, no palco, com o acréscimo de diversos outros textos criados em improvisações, pelo grupo, a partir da matriz literária.
Depois, Guzinski se aventurou em Shakespeare através de Macbeth (1989). Neste caso, a tragédia do dramaturgo inglês foi levada à cena com tradução assinada pelo grupo. No entanto, o diretor inseriu na peça uma nova cena, na qual misturou diálogos criados por Shakespeare para conferir ao espetáculo o ritmo que necessitava. Com esta experiência, Guzinski começou a experimentar um novo caminho para a produção textual de seus espetáculos. Se, antes, o diretor se valia de textos literários para criar sua dramaturgia, a partir de Macbeth, o processo ganha outra dinâmica.
É o que acontece em Amores e facadas (1991), último espetáculo do Grupo Pés na Terra. Guzinski reuniu fragmentos de cinco peças urbanas de João Simões Lopes Neto que ganharam novo significado a partir do roteiro proposto na encenação. Estava inaugurado, na carreira do diretor, o processo de produção dramatúrgica que viria a lhe acompanhar depois, em 2008, quando ele idealiza e dirige o Grupo Experimental de Teatro (GET), vinculado à Coordenação de Artes Cênicas da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre.
O primeiro resultado cênico do GET, que investiga o uso da palavra em cena, foi o espetáculo Para dentro do labirinto, apresentado no primeiro semestre de 2009. Com trechos de três peças de Jorge Andrade – Pedreira das almas, Vereda da salvação e As confrarias – a montagem mistura personagens e situações de várias obras do dramaturgo paulista, acrescentando trechos da biografia escrita pelo autor, com o título Labirinto. No segundo semestre do mesmo ano, o diretor orientou a montagem Nelson mítico, exercício cênico a partir de fragmentos das peças míticas de Nelson Rodrigues: Álbum de família, Anjo negro, Doroteia e Senhora dos afogados. Os dois espetáculos prosseguiram em cartaz, durante 2010, com apresentações em eventos e seminários especiais.
Em 2011, o terceiro módulo do GET teve como autor homenageado o dramaturgo gaúcho Ivo Bender. A montagem Cabaré do Ivo reuniu fragmentos de sete peças do dramaturgo: A ronda do lobo/1826, As cartas marcadas ou Os assassinos, O cabaré de Maria Elefante, Mulheres Mix, Quem roubou meu anabela?, Surpresa de verão e Sexta-feira das paixões. Com direção musical de Marcelo Delacroix e direção de atores de Laura Backes , o espetáculo é fiel ao objetivo principal da investigação: ter o texto como protagonista da cena. No entanto, como é tradicional no trabalho de Guzinski, este caminho é percorrido com imagens potentes em significados. Apesar de a cenografia ser simples e com poucos elementos (cadeiras e alguns adereços), o diretor busca a teatralidade no conjunto de corpos em cena, em sua movimentação e coreografias (assinadas por Carlota Albuquerque).
A base do roteiro é a peça O cabaré de Maria Elefante. Em cena durante todo o espetáculo, os oito atores apresentam esquetes curtos pinçados da dramaturgia de Bender, tendo como referência a estética do teatro de revista brasileiro. Assim, desfilam no palco vampiros, travestis ou um juiz de direito, em meio a canções e números de dança. O tragicômico das situações é sublinhado por um figurino em que predomina a cor preta e pelas maquiagens inspiradas no teatro oriental.
Ao embaralhar situações, personagens e diálogos, Guzinski borra as fronteiras de outra questão da arte e teatro contemporâneos: a autoria. Uma inédita dramaturgia surge de seu processo. Os fragmentos originais dos textos estão lá, mas organizados em outra ordem, na qual ganham nova potência. Deste mix, surgem outros Ivos, outros Nelsons, outros Jorges, outros Simões, outros Williams, já totalmente contagiados pela cena guzinskiana: um labirinto de palavras, de memórias, de corpos mortos que tratam da vida, de tragédias que falam de carne e sangue, de sombra e luz, em ritos teatrais de imagens e sons.
* Newton Silva é jornalista e apresentador na TVE RS

Bethânia e as palavras por Shirley Rosário

Maricotinha ilumina a noite no 18º Porto Alegre em Cena*

Com a simplicidade de um sarau, Maria Bethânia encantou com sua presença, poesias e canções a platéia que lotou o Teatro do CIEE na noite de ontem. Acompanhada por dois músicos, o percussionista Carlos Cesar, com um bombo e outros poucos objetos e o maestro Jaime Além nas cordas de viola e violões, ela intercalou poesias de seus poetas preferidos e músicas já conhecidas do seu repertório, num casamento perfeito. Vestindo um figurino simples, mas impecável, que brilhava como ela, Bethânia parecia uma lua cheia de poesia e delicadeza. Os pés nus, emoldurados por delicadas correntes, organizavam equilíbrios curiosos, geralmente com a perna esquerda passeando para os lados e para trás, criando uma dança em harmonia com os braços, que muitas vezes se abriam, oferecendo o corpo em abraço de entrega. Diversas vezes, quando ia cantar, tirava os óculos de ler e fechava os olhos para estar inteira conosco, doce capricho seu, pois ela esteve inteira o tempo todo. Com esse gestual espontâneo e belo, Bethânia era a pura poesia que ela tanto ama.
Contou que o embrião deste trabalho nasceu em Belo Horizonte quando foi convidada a participar de uma leitura de textos na Universidade Federal de Minas Gerais e após, respeitando sua história de sempre recitar poemas nos shows, resolveu inverter essa ordem e criar um trabalho com ênfase na poesia e algumas interferências de canções. Revelou que seu amor pela palavra vem desde cedo, do tempo que estudava numa escola pública de Santo Amaro, onde aprendeu com seu professor Nestor Oliveira, a gostar de poemas. Chegou a cantar uma canção que é um poema desse mestre, musicado por Caetano. Pelo seu exemplo nos fez reverenciar o ensino público de qualidade, o talento dos professores devotados, a necessidade do reconhecimento dos artistas populares: um Brasil rico e amado.
A plateia atenta parecia suspender a respiração, tal o silêncio, para degustar a voz doce e forte que por mais de uma hora desfilou poemas que estudei nas aulas de português: Manoel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Lupicínio Rodrigues, Castro Alves e o ídolo da estrela, Fernando Pessoa, entre outros. Recitou também um tocante trecho de Guimarães Rosa, uma declaração de amor de Riobaldo por Diadorim da obra Grande Sertão: Veredas.
Na escolha dos poemas e canções, foram apresentados temas que nos aproximam de uma realidade que não vivemos aqui no sul, como a seca, o louvor ao rio São Francisco, a força e a beleza do homem do sertão e sua identidade nordestina, tudo isso mesclado ao amor e à religiosidade; assim ela compartilhou sua fé e exaltou Nossa Senhora.
Entre as canções, fomos brindados com trechos de Estranha forma de vida de Amália Rodrigues, Dança da solidão de Paulinho da Viola, Romaria de Renato Teixeira, ABC do sertão de Luiz Gonzaga, Último pau-de-arara de J. Guimarães/Venâncio/Corumbá, Marinheiro só de domínio público e Felicidade, de Lupicínio, que ela homenageou especialmente e contou que ele a recebeu no aeroporto quando ela veio pela primeira vez a Porto Alegre e que a levou para conhecer o centro da cidade.
No final, único momento em que leva o microfone para o meio do palco, a imagem de uma lua cheia foi projetada na rotunda e inscrita na lua, surgiu uma foto de Dona Canô, a quem Bethânia dedica o espetáculo. Fãs entusiasmados cobriram o palco de pétalas de rosas. A estrela saiu sob aplausos calorosos e pedidos de bis. Após alguns instantes os músicos voltaram. Bethânia explicou que leitura não tem bis, não é como um show, mas mesmo assim, generosa, entusiasmada e feliz atendeu às expectativas e de improviso nos brindou cantando “quando o carteiro chegou e meu nome gritou com uma carta na mão...”.
Na saída do teatro, percebi em muitas pessoas sorrisos, o enxugar de lágrimas, gestos expressivos como a mão no peito, tudo a demonstrar a intensa emoção que o espetáculo causou. Lindo, lindo, lindo!
* Shirley Rosário é diretora teatral e iluminadora

Cordel do amor sem fim por Guilherme Nervo

Teatro feito à mão*
O que olhar primeiro no exuberante cenário de Cordel do amor sem fim? Qual som escutar com mais atenção? Por qual cor se deixar influenciar? A qual personagem dedicar mais atenção? Essas perguntas começaram a borbulhar em mim quando entrei na Sala Álvaro Moreyra. Logo entendi o porquê da escolha da sala ao invés do Teatro Renascença, a aproximação entre ator e público é fundamental, trata-se de um teatro de vivência. Não por acaso o grupo de Recife chama-se O Poste: Soluções Luminosas, a iluminação conversa com todos os outros elementos, formando e destruindo atmosferas como em um passe de mágica. É como se o grupo houvesse adicionado três personagens ao texto de Claudia Barral: a luz, a sonoplastia e a percussão. Elas estão suficientemente presentes e entrelaçadas com o enredo a ponto de adquirirem um caráter de “personagem”. As luminárias com envolto de palha em formato circular estão penduradas no fundo do palco, cobertas por redes de pesca. Ou são teias de aranha? Talvez apenas fumaça, tecido ou ilusão de ótica. De uma forma ou de outra, o campo de significação é expandido e cada um faz a sua viagem. Isso é riqueza.
Às margens do rio São Francisco, no sertão baiano, moram três irmãs completamente diferentes - a velha grosseira e encurvada Madalena, a instigante e colorida Carminha e a sonhadora aérea Tereza, a mais jovem. José é o noivo de Tereza e traz consigo um amor agressivo por ela, revelando uma personalidade animalesca. A primeira imagem da peça é formada pelos quatro tocando um tipo de instrumento e repetindo um movimento próprio ao personagem. A sensação é que eles estão debaixo do mar: a luz geral é azulada e conchas luminosas formam um caminho no solo. A corneta de som grave e arrepiante, os chocalhos frenéticos, a batida cheia de suspense do tambor e tantos outros instrumentos artesanais capazes de imitar ruídos da natureza e do homem, parecem nunca sair de cena, como se os quatro personagens trouxessem consigo um ritmo. Ritmo que ao decorrer da peça sofre algumas alterações, agita, acalma, explode, emudece. Funciona como um fragmento de alma.
Cada personagem tem um tipo bem definido de falar, andar e se posicionar. O que fica claro quando eles distanciam-se do personagem para narrar algum momento da peça. A linguagem de atuação escolhida é um dos elementos mais gritantes, é como se assistíssemos a um teatro de rua introduzido no palco. As feições são exageradas, a maquiagem transborda no rosto, o texto é dito de forma arrastada e abusando da articulação, tudo é propositalmente grande, colorido e voraz. No princípio essa encenação me incomodou, não consegui olhar com generosidade para a caricatura do ser humano como uma tipificação da commedia dell’arte. Depois, essa sensação foi diminuindo, me permiti um mergulho profundo nesse universo rico e poético, de uma cultura tão singular. Não me questiono quanto à explícita competência do trabalho de atuação, os personagens apresentam pinceladas bem trabalhadas, porém o nu de Tereza parece agir com um único objetivo: alcançar o sucesso da forma. E alcança, pois a cena em que ela se esgueira sobre as velas com os seios nus, dizendo: E o terceiro foi aquele que a Tereza deu a mão; e a outra, em que ela caminha sobre gelo seco e luz verde, coberta apenas por uma rede de pesca; são cenas estonteantes, repletas de onirismo. Entretanto precisam desse apelo? A beleza física e a sexualidade de Tereza foram bem exploradas com o vestido curto e com seus trejeitos, o nu sublinha isso de maneira excessiva e destoa com agudeza do restante da peça.
Se Deus levantou o céu com uma frase, com uma frase o céu pode desabar.
E foi essa frase, dita por Tereza, que desabou José. Com muita relutância aceitou esperar o homem que havia atravessado o peito da menina de desejo, o tal Antônio. Semanas e meses passaram, até que quatro anos completaram-se sem a aparição do homem. Para José, todas as prostitutas da cidade tinham a feição de Tereza, ele estava enlouquecido por ela. Enfim esbarrou com Antônio pela cidade, fazendo questão de assassiná-lo em um mato. Tereza espera por tanto tempo seu amor que acaba se transformando em pedra às margens do rio São Francisco.
É possível gargalhar, emocionar-se, ficar vidrado e mesmo achar tudo muito exótico em Cordel do amor sem fim. As canções estão presentes em diversos momentos, além de contar a história, reforçam o universo folclórico do nordeste brasileiro. Inclusive, existe um resgate de cultura, um estudo antropológico. O elenco demonstra performances muito boas, somente a voz de Tereza (Eliz Galvão) parece destoar perante as outras. O músico canta apenas um verso: Mas toda a verdade está nos olhos de Antônio, suficiente para que a plateia volte surpreendida em direção a ele, sua voz é marcante, carrega uma tristeza encantadora.
As soluções cênicas da peça revelam uma criatividade pensada em conjunto: desde à porta que é carregada pelos personagens e capaz de se desmanchar em quatro superfícies, até à utilização de objetos que intensifiquem o nível de tensão ou distensão da cena, explorando sons inusitados, surpreendentemente musicais e ritmados. É uma grande conquista alcançar tamanha carga poética e beleza plástica a partir de recursos simples e artesanais, sem a utilização de máquinas. Por isso considero adequada a expressão “teatro feito à mão”, é delicado e poderoso.
* Guilherme Nervo é estudante de Teatro do Departamento de Arte Dramática da UFRGS

SESSÃO DE HOJE, DIA 23, DE "A ÚLTIMA GRAVAÇÃO DE KRAPP" FOI TRANSFERIDA

COMUNICADO PORTO ALEGRE EM CENA

Por questões alfandegárias na liberação da carga cenográfica, e o consequente atraso de sua chegada em Porto Alegre, em comum acordo, a direção do "Porto Alegre em Cena" e a equipe do espetáculo Krapp’s last tape, dirigido por Robert Wilson, com o sentido de preservar a qualidade artística da apresentação, a pedido do célebre diretor , transfere a primeira sessão do espetáculo, que ocorreria sexta-feira, dia 23, para uma sessão extra:

domingo dia 25, às 20h30min, no Theatro São Pedro

As outras duas funções:
Dia 24, sábado às 21h
Dia 25, domingo às 18h, permanecem inalteradas.

O público que adquiriu ingresso para a sessão transferida tem acesso exclusivamente à sessão extra do domingo, sem nenhuma necessidade de remarcação de ingresso. Não será possível remarcar para as outras sessões, porque as mesmas têm suas lotações esgotadas. Em caso de impossibilidade, o valor do ingresso será restituído aos que assim o desejarem.
Agradecemos a compreensão e desejamos a todos um ótimo espetáculo.
PORTO ALEGRE EM CENA