domingo, 27 de novembro de 2011

Os náufragos da louca esperança: venda de ingressos


 Dia 28 de novembro, segunda-feira às 9h, abre a bilheteria para as apresentações do espetáculo Les Naufragés du Fol Espoir, mais recente produção do grandioso grupo francês Théâtre du Soleil, dirigido por Ariane Mnouchkine. As apresentações acontecerão no Parque Eduardo Gomes na cidade de Canoas, de 6 a 11 de dezembro, às 20h.

Apresentações do espetáculo:
De 6 a 11 de dezembro, 20h - Parque Eduardo Gomes – Canoas
Av. Guilherme Schell, 3.600
Via Trensurb – Estação Fátima
Estacionamento no local

Os ingressos custam R$ 100,00 e serão respeitados todos os descontos oferecidos pelo 18º Porto Alegre em Cena.

Pontos de venda nas lojas My Ticket:
Rua dos Andradas, 1425 - loja 69 - Centro - Porto Alegre
Rua Padre Chagas, 327 – loja 06 - Moinhos de Vento - Porto Alegre
Canoas Shopping - Av. Guilherme Schell, 6750 - Centro - Canoas
Serviço de venda pela internet: www.ingressorapido.com.br

Limite de 04 ingressos por pessoa - 24h, a partir das 9h do dia 28 de novembro
Call Center: 4003-1212

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Viva Nora Bastos!

A pedido do Coordenador-geral do Porto Alegre em Cena, Luciano Alabarse, revelo um dos "mistérios" mais divertidos do 18º Porto Alegre em Cena: a tufônica Nora Bastos, autora de uma das postagens mais visitadas de toda a história deste blog
(http://poaemcena.blogspot.com/2011/10/pterodatilos-por-nora-bastos.html), é o pseudônimo (ou seria melhor dizer heterônimo?) do dramaturgo gaúcho Diones Camargo (que ilustra a imagem acima; importante dizer: Diones é o moço sem chifres, o de chifres você pode tentar adivinhar também a identidade secreta).
A Nora Bastos fez tanto sucesso com sua língua viperina, que certamente terá espaço garantido neste blog para futuras opiniões. Parabéns Diones, pelo bom humor e pela maneira inusitada de defender a liberdade de criação artística, que é exaltada por muitos apenas da boca para fora.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Pterodátilos por Matheus Melchionna Diello

Nicky Silver?*

No dia 18 de setembro, estava marcada a sessão que eu iria assistir de Pterodátilos. A peça, dirigida por Felipe Hirsch, era uma das principais atrações do 18º POA Em Cena, todo mundo estava ansiosíssimo para assistir a montagem do diretor para o texto de Nicky Silver, dramaturgo contemporâneo americano. E pode-se dizer que o que menos se viu na encenação foi o texto original, mesmo que o texto adaptado pelo diretor seja a melhor coisa da peça.
Não que eu esteja desmerecendo o fabulo cenário de Daniela Thomas, muito menos a luz muito bem feita por Beto Bruel – dos quais já falo –, mas enquanto assistia à peça, as palavras que eram ditas me vinham com um peso, uma acidez incomodativa. A peça retrata a história de uma família que entra em crise após o filho voltar para casa depois de anos longe, revelando que está com AIDS. Nessa família, existe uma mãe alcoólatra, um pai distante, uma irmã louca e o seu noivo, que também é a empregada. As relações se mostram distorcidas, os diálogos são ágeis e por muitas vezes cheio de ironia e humor negro, onde mora o erro da montagem. O diretor optou por transformar o texto em uma comédia fácil, abusando das expressões “engraçadas”, e também em uma peça onde um ator teria mais destaque que os outros: Marco Nanini.
Ele fazia dois personagens – o pai e a irmã – e por causa disso, vários momentos de interação desses personagens foram cortados, o que também enfraqueceu o texto. E por fazer um personagem feminino, só de entrar em cena, já garantia a gargalhada do público, que estava extremamente risonho no dia - era até um pouco constrangedor que em momentos mais pesados houvesse risadas em diversos pontos da platéia. Talvez por causa disso, o outro personagem que Nanini fazia sempre que entrava parecia apagado, sem vida. Faltava alguma coisa ali.
Os outros atores estavam bem, principalmente Marina Lima, que cada vez mais se destaca como uma das melhores atrizes de sua geração. A sutileza com que ela constrói a mãe que não se preocupa com seus filhos, alcoólatra e extremamente viciada nas aparências é impressionante. Os que menos se destacavam era o noivo, que não aparecia muito, e ironicamente, o filho, que no texto seria o protagonista. Ele cumpre a sua função muito bem, mas parecia que faltava algum entrosamento das suas ações com o resto, principalmente na hora de tirar o chão do cenário. A metáfora do título do texto – pterodátilo, um dinossauro extinto, e a família – perde-se completamente, pois os ossos que estão escondidos debaixo das folhas secas da plataforma não são mostrados completamente e parecem apenas decoração.
Essa plataforma, junto com os sofás em cima da mesma, eram o cenário. Ela tinha uma função interessante: se inclinar durante toda a peça, desequilibrando os atores. Como efeito estético, é muito bonito ver isso em cena, o problema é que logo na sua primeira inclinação, ela começava paralela ao solo, já tinha alcançado toda a sua possibilidade de inclinação, ou seja, não iria mais trazer surpresa ao público. E mesmo a sua inclinação era pouca, ainda trazendo comodidade ao atores caminhando em cena, que se fosse para realmente mexer com as estruturas dessa família, seria preferível a inclinação ir aumentando aos poucos até um grau onde seria realmente impossível de caminhar.
Tanto a plataforma, quanto os sofás, também o piso e a parede atrás de tudo isso, tem um tom metalizado, industrial. Os figurinos também seguem essa linha sóbria, cheio de preto, branco e cinza – as únicas cores são a saia roxa da filha e o figurino do filho, todo marrom. A luz, que tem uma montagem interessante, de troca de focos, é essencialmente branca, trazendo mais desse clima para o espectador. Tudo converge para um mesmo símbolo, o que pode ser interessante, depende de quem está assistindo. A única exceção é quando a filha, já morta, volta para falar com o público e aí se utiliza o refletor sem o difusor, deixando a sua luz amarelada em cima da mesma, trazendo então mesmo a sensação que estamos a falar com o passado, pois acostumado com a luz branca, essa luz amarela modifica a percepção e tudo parece enevoado.
No fim da peça, há um monólogo do filho, enquanto sua mãe bebe e o noivo é mostrado morto, com uma luz fluorescente piscante e nesse clima sombrio, acaba por ser introduzida a mensagem da peça, um pouco tardiamente. Nesse momento, o teatro é silêncio, nada se escuta a não ser o ator e o barulho do ar-condicionado - parece que finalmente é percebida a natureza ácida do texto.
Infelizmente, Felipe Hirsch parece ter errado a mão ao transformar a peça em nada mais que entretenimento barato, sem mostrar essa família realmente se destruindo, tudo conseqüência dos seus cortes no texto e inserção de outros textos do mesmo dramaturgo, mas mesmo com tudo isso, o que mais chama em sua montagem é o texto e as suas tiradas satíricas de humor negro.
* Matheus Melchionna Diello é estudante do Departamento de Arte Dramática da UFRGS

Uma flauta mágica por Manoela Wilhelms Wolff

“A” flauta mágica*

Uma flauta mágica, espetáculo trazido a Porto Alegre pelo encenador e diretor Peter Brook, baseado na ópera homônima de Mozart, e livremente adaptado por Brook, juntamente com Marie-Hélène Estienne e Franck Krawczyk, com certeza além de trazer uma flauta em cena, trouxe também muita magia.
A história da ópera - no libreto original com cerca de três horas de duração, no de Brook, com uma hora e meia - é uma história de amor. Tamino, um jovem príncipe, se apaixona por Pamina, a filha da Rainha da Noite, que está, no momento, mantida em cárcere por Sarastro. Tamino conhece na floresta Papageno, um atrapalhado caçador de pássaros que vai auxiliar Tamino a salvar Pamina de Sarastro. Nesse momento é que entram os dois atores (espíritos da floresta) de Peter Brook que entregam aos dois uma flauta e um triângulo, que são objetos que os protegerão durante sua jornada. Diferentemente do roteiro original, Uma flauta mágica de Brook, é cantada e dialogada. A narrativa é feita especialmente nos diálogos, enquanto as mais célebres árias da ópera foram mantidas. No elenco, que possui dois grupos completos que se apresentam alternadamente, existem sete cantores líricos e dois atores. Aqui em Porto Alegre, um grupo de cantores/atores se apresentou na quarta e na sexta-feira, e o outro na quinta-feira.
Com os atores de pés descalços, a atmosfera é onírica e intimista. As luzes da plateia ficaram o tempo todo levemente acesas e o cenário já estava à mostra quando entrava-se na sala de espetáculos do Bourbon Country. Alguns bambus no palco, com uma iluminação azul ao fundo, mas com foco amarelo nos bambus permaneceu assim por quase todo o espetáculo, exceto nos momento do ritual de iniciação de Tamino e Papageno. Além dos bambus, que durante o espetáculo eram manejados pelos atores e transformados tanto em castelo, como túneis, como prisão e floresta, utilizava-se, na cena com Papageno e Papagena, um caixote com rodinhas (aparentemente de transporte aéreo), um manto vermelho, uma garrafa de vinho e um jantar. Como acessórios, visualizamos a flauta mágica e o triângulo mágico. Afora isso, eram só os cantores/atores.
A respeito dos cantores/atores também deve ser feito um comentário. Com certeza, a parte musical estava excelente, principalmente pela vanguarda de Brook: ao invés de uma orquestra completa, apenas um pianista, que em alguns espetáculos era o próprio Franck Krawczyk e em outros Matan Porat. Os sete cantores, fizeram muito mais do que é o papel de um cantor lírico: eles mostraram organicidade e energia, retiraram o ar conhecido da ópera (de algo muito mais realista e “pomposo”) para algo simples. Além disso, renderam (principalmente os Papagenos) momentos de risadas enfáticas. As músicas eram cantadas em alemão e os diálogos em francês, e, conforme pessoas que sabem francês e alemão, percebia-se o sotaque em ambos, apesar disso não ser o suficiente para atrapalhar o entendimento (além de legendas, para aqueles que não compreendem nenhuma das duas línguas). Os dois personagens que eram feitos propriamente por atores (os espíritos da floresta), com certeza representavam o antropológico de Brook: movimentos precisos e energéticos, um deles nada fala, comunicando-se apenas visualmente, enquanto o outro até mesmo arrisca palavras em português. Seus figurinos e penteados excêntricos, com certeza atraem o foco dos olhares.
Mas além dessas questões bastante práticas de como funcionou o espetáculo, é necessário acrescentar que foi com grande espera que Peter Brook voltou ao Brasil. Não foi somente em Porto Alegre que os ingressos se esgotaram rapidamente, mas São Paulo e Rio de Janeiro tiveram sessões extras. E não somente em âmbito nacional, América do Norte e Europa também aclamaram o espetáculo. Mas o que será que chamou mais atenção dos espectadores, o nome de Peter Brook, o de Mozart, ou a busca por uma ópera mais leve?
Aqui, muitas pessoas na saída do teatro disseram que o que Brook e sua equipe produziram não foi uma ópera. Em contraposição a isso, faço minhas as palavras de André Toso, que criticou o espetáculo para a Revista Bravo!:
“De uma maneira geral, no entanto, a aproximação entre a ópera e o teatro de vanguarda é um casamento apropriado. Afinal, a ópera foi inventada na Florença do século 17 justamente para ser a primeira forma de arte multimídia. A ideia era misturar talentos de várias áreas artísticas e deixá-los criar livremente (...) Nesse sentido, os encenadores – especialmente os mais criativos – são extremamente bem-vindos ao mundo da ópera, uma forma de arte que já nasceu de vanguarda.” (Bravo! Setembro, 2011)
Acredito que avaliamos provavelmente mal a ópera de Brook, porque temos pouquíssimo contato com o gênero no nosso país. Não sabemos direito nem bem como ele é originalmente, imagine óperas vanguardistas. Mas, para pessoas que se deixam envolver no espetáculo e o admiram sem conceitos pré-estabelecidos o encantamento é o mesmo, porque a mensagem é comunicada. Peter Brook, em uma de suas falas a respeito do espetáculo por ele dirigido, ressalta ainda mais o que acontece longe do Brasil, mas que na Europa e Estados Unidos está em “voga”:
“nos últimos trinta anos, vi muitas encenações de A flauta mágica. E pude constatar que a primeira dificuldade para o encenador e o cenógrafo é o conjunto de imagens que considero demasiado imponente: no caso de Carmen, é um pouco como se a imagem que se projeta e que se espera tivesse um peso excessivo em relação ao restante. A ideia é chegar a que os cantores – jovens cantores – avancem de modo natural, vivo, amável, no desenrolar da intriga sem se impor projeções, construções, vídeos ou cenários giratórios…”.
Não se leva mais tanto em consideração (seja no teatro, seja na ópera – ou seria a mesma coisa?) a imponência de um cenário, de um figurino, ou de uma figura “estrela” do elenco: se leva o todo, o que o todo comunica. Tanto que, pouco nos importa o nome dos atores de Uma flauta mágica, apesar de que o nome de Brook chame público. Mas este é um fardo unicamente dele que cometeu a terrível falha de ser inovador na arte da encenação.
Uma flauta mágica, para mim, é A flauta mágica. Foi minha primeira ópera e meu primeiro espetáculo de Peter Brook. Mas acima de tudo, me deu uma nova visão, me trouxe coisas que eu não conhecia, perspectivas sobre um gênero que até então só via em livros. O espetáculo Uma flauta mágica foi com certeza simples, mas não simplista.
* Manoela Wilhelms Wolff é estudante no Departamento de Arte Dramática da UFRGS

sábado, 22 de outubro de 2011

A vida como ela é por Eriam Schoenardie

A vida como ela não é*

Devo admitir que, ao me incorporar à plateia do espetáculo A vida como ela é, já tinha algumas perspectivas quanto ao estilo de representação escolhido pelo diretor Luiz Arthur Nunes para a peça que estava por vir. Para transformar em ação dramática cinco contos escritos por Nelson Rodrigues para uma coluna de jornal homônima na década de 1950, são empregadas técnicas do teatro épico desenvolvido por Brecht que visam o distanciamento do espectador perante as situações narradas. Nesse sentido, a obtenção da não-identificação do público se dá com êxito, exemplificada pelas risadas nervosas dos espectadores até em momentos de carga dramática mais densa. Ao optar por esse estilo de trabalho, o diretor acerta com a sua vontade de usar de diferentes meios cênicos para contar histórias, porém acaba por se perder em meio a excessos e superficialidades.
Basicamente, parecem questionáveis algumas escolhas da montagem. O primeiro conto mostrado, por exemplo, enfraquece o começo do espetáculo ao recorrer a quadros vivos compostos por dois atores, que ilustram fielmente a história relatada pelos demais. A novidade da proposta se esgota rapidamente, dando lugar a uma monotonia intimamente ligada ao caráter estático que circunda não só os referidos quadros, mas também a montagem como um todo. Por isso, vibramos ao ver uma maior movimentação corporal, como é o caso do “coro” de quatro personagens do terceiro conto, brincando com o uso de leques (desgastado, mas que funciona) e com uma dinâmica estrutural acelerada que encaminha o conto para um desenlace belamente contrastante ao da atmosfera instituída. É, sem dúvida, uma encenação que priva por uma marcação exata dos atores, característica que às vezes parece suprimir o trabalho destes e que instaura a questão: “Aquilo não poderia ter sido explorado mais a fundo?”.
O segundo conto se desenrola não menos estático, porém esteticamente mais interessante. A manipulação de atores que tem a sua face substituída por uma máscara de feições neutras é, sem dúvida, a escolha de maior beleza de toda a peça. Os usuários destes adereços se entregam nas mãos de outros colegas de elenco, para serem manobrados como se fossem marionetes de carne e osso, seja na questão dos movimentos ou até mesmo das falas (o quarto conto também se aproveita dessa ferramenta de ventriloquia, diferenciando-se ao excluir as máscaras e agora dar voz aos bonecos vivos).
Os elementos visuais, na sua maioria, são vibrantes e extravagantes. O figurino remete à época dos contos, com característicos vestidos de bolinhas em diferentes cores para cada uma das atrizes e ternos impecáveis para os homens. O cenário se resume a estruturas com design de páginas de jornal, reforçando a origem dos textos, que ao final de cada conto se iluminam e revelam uma imagem que ressalta a construída em palco. Essa última característica é desnecessária e ameaça inclusive ofuscar as imagens criadas ao final de cada quadro, já bastante significativas e por vezes muito bonitas (como é o caso dos contos dois e três).
A luz de palco é uma constante de iluminação geral para meia luz de troca de contos, sendo explorada sem muita elaboração cênica, exceto pela ajuda na criação de efeitos em algumas imagens finais. Em contrapartida, a sonoplastia tem um papel muito mais presente, sendo um recurso por vezes invocado desnecessariamente. O repertório vai de músicas populares de reconstituição histórica brasileira até músicas clássicas que sublinham a suposta tensão do enredo. Esse misto dá um clima brega a toda a trilha que, se assumida como proposta, poderia ser interessante e condizente com a forma de interpretação exagerada. Porém, esse ideal de encenação parece não se impor e o que se sucede é uma série de intervenções musicais que chegam a beirar um melodrama que se envergonha de ser melodramático.
A adaptação do texto, também feita por Luiz Arthur Nunes, acerta ao preservar grande parte da estrutura narrativa original, dando aos atores a figura de narrador em terceira pessoa ao mesmo tempo em que outros se encarregam dos diálogos. Em suas tramas, Nelson Rodrigues retratava as patologias psicológicas do subúrbio carioca usando de um caráter de depravação sexual e morbidez criminal que rodeou toda sua obra, mas que aqui é apresentado de forma muito atenuada. Assim, a encenação acaba por tomar uma válida posição de comicidade sobre tais temáticas, uma vez que o distanciamento proposto pela montagem se associa à uma análise feita por um espectador “distante” daquela época posta em palco. A exposição do texto revela outro aspecto positivo que vem como uma redenção para a falta de ações físicas mais complexas: a oralidade do elenco, que se caracteriza por uma ótima gesticulação e projeção vocal, a última talvez beneficiada pela acústica do espaço teatral.
Ao fechar das cortinas, o resultado de tudo que se vê é claro narrativamente, porém confuso teatralmente. A impressão que paira é de que as diferentes estéticas de representação dramática exploradas se tornam avulsas quanto à encenação vista em sua totalidade, uma vez que não estão amarradas entre si. Fica a dúvida, por fim, se a clássica regra do “menos é mais” não se aplicaria aqui com perfeição, optando somente pelos melhores mecanismos que preservassem a proposta geral, que em minha opinião se apoia na união de elementos de determinada época para discernir psicologismos atemporais. Infelizmente, tais signos históricos se sobressaem perante o argumento que visa a análise do “interior negro” humano, afastando demais o espectador da encenação e dando a irônica impressão de que o que contemplamos é o ser humano como ele não é, a vida como ela não é.
* Eriam Schoenardie é estudante do Departamento de Arte Dramática da UFRGS

Agreste malvarosa por Elvio Antonio Rossi

AGRESTE MALVAROSA: TEATRO NA MEDIDA*

Cruel, a natureza é
Dá o sol na desmedida
Dá um corpo na desmedida
Dá o amor na desmedida.
Este poema inicia e fecha o espetáculo teatral Agreste malvarosa, do Amok Teatro, apresentado na última edição do Porto Alegre em Cena. Através destas frases é possível já no início, criar uma expectativa do que vai acontecer no palco; no final, vemos que a citação se encaixa perfeitamente com o que foi apresentado.
O texto, escrito por Newton Moreno, foi dirigido por Ana Teixeira e Stephane Brodt (também diretores do Amok Teatro), a convite das duas atrizes da peça, Milene Ramalho e Rita Elmor. O nome da peça remete à malva rosa, uma planta considerada com poderes de cura para os males femininos. A história que se passa no sertão nordestino, trata do amor incondicional entre um casal de lavradores. Resgatando a tradição oral de culturas como a do agreste brasileiro, a história é contada pelas atrizes, que são as narradoras, mas também, por vezes, desempenham papeis de personagens da história. A encenação conta ainda com a presença do músico Beto Lemos, que executa a trilha sonora ao vivo, tocando diversos instrumentos e pontuando a dramaticidade da trama, como elemento integrador da ação.
Entramos no teatro e uma das atrizes está sentada numa cadeira, enquanto a outra caminha em círculos, com uma trouxa de lenha nas costas. Num dos cantos da frente do palco, o músico executa a trilha sonora em um ritmo nordestino, que juntamente com a luz forte sobre o palco e o calor que fazia na sala (por falha no sistema de ar condicionado ou, quem sabe, intencionalmente), nos remetem ao âmago do sertão; a um clima árido, de sol forte, de corpos marcados pela seca.
O cenário é simples, mas com os elementos essenciais para caracterizar o interior de uma casa com paredes de palha trançada, onde há uma cruz de metal ao fundo e uma capelinha com um santo em um dos lados; num dos cantos um cesto sobre uma mesa; no centro, duas cadeiras.
A primeira parte da peça é narrada pelas atrizes, numa perfeita sincronia e com uma emoção que transborda as palavras e nos invade, fazendo com que nos transportemos integralmente para dentro do texto e para sua ação. Temos a nítida impressão de que estamos vendo as cenas que estão sendo descritas. A história conta como acontece o encontro entre o casal, inicialmente separado por uma cerca; obstáculo superado através da descoberta de um buraco, que permite aos dois fugirem juntos. Na fuga, são acolhidos por uma comunidade e lá permanecem felizes, vivendo como marido e mulher por vinte e dois anos, porém, sem ter filhos e se tocando sempre por sob o lençol e com o candeeiro apagado.
Com uma pequena pausa para ajuste do cenário, marcada pela música, inicia a segunda parte do espetáculo, onde o lavrador está morto e é representado por peças de roupa tiradas do cesto, deitado sobre uma mesa montada por dois bancos. A partir disso, a peça vai se desenvolvendo, até chegar ao surpreendente final, com as atrizes se revezando entre a narração e a representação de personagens (femininos e masculinos), numa transição que espanta pela precisão, pelo rigor e pela técnica. O corpo das atrizes literalmente se transforma em apenas alguns segundos, na sua totalidade, dando identidades diferentes aos personagens, sem exagero ou caricatura.
Aqui é possível perceber a marca do Amok Teatro, que desde a sua fundação em 1998, tem pesquisado sobre o trabalho do ator e as possibilidades de encenação. Colocando o ator e a linguagem física no centro do ato teatral, o grupo apoia a sua pesquisa em dois eixos: Antonin Artaud e Etienne Decroux, de quem utilizam a técnica da mímica corporal dramática. Desta forma, como é possível comprovar nesta peça, o corpo do ator se afirma como sendo o lugar em que o teatro verdadeiramente acontece.
O corpo, aliás, parece ser o centro gravitacional do espetáculo, até mesmo em seu desfecho, quando a identidade sexual do lavrador Etevaldo é revelada e a forma como isso é interpretado pela sociedade, nos levando a refletir sobre questões contemporâneas como o preconceito, ou os tabus que envolvem a sexualidade feminina, por exemplo. O corpo é, portanto, o elemento de ligação entre o texto e a encenação. Expor o corpo do ator como o “local do teatro”, num momento onde os variados e mirabolantes elementos cênicos, muitas vezes sepultam o trabalho do ator (e o próprio texto), é um desafio. Porém, o Amok Teatro demonstra que isso ainda é possível, e o resultado pode ser o que tivemos a oportunidade de assistir em Agreste malvarosa. Não há “desmedida”, tudo funciona perfeitamente, na exata medida, apenas com os poucos (porém, bem selecionados) recursos cênicos e contando com o excelente trabalho das atrizes. Em Agreste malvarosa, podemos dizer que o recado foi dado, a mensagem foi transmitida, o papel do teatro foi cumprido, e a recepção do público presente ao espetáculo pareceu comprovar isso.
* Elvio Antônio Rossi é aluno de graduação em História da arte da UFRGS

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Pterodátilos por Nora Bastos

RI MELHOR...QUEM RI NA HORA CERTA! – Uma mensagem tardia da Sra. Nora Bastos sobre a polêmica a respeito da peça Pterodátilos*
Não sou crítica teatral. Aliás, não gosto de me envolver com nada relacionado a esse povo do Teatro pois acho-os todos uns arrogantes funcionais. Porém, uma vez mais me vejo forçada a sair do conforto do meu lar...digo, do conforto da minha posição como mulher da sociedade, para levantar a voz contra a maledicência e o escárnio que imperam nesse meio tão depravado.
Pra quem não sabe quem sou, me apresento: Nora Bastos – cidadã, mulher, devota. No fatídico ano de 2005 me envolvi numa polêmica vulgar que, infelizmente, mudou minha vida para sempre: naquela época eu havia ameaçado processar João Ricardo (hoje João De Ricardo) um diretorzinho desconhecido (hoje considerado um mártir do teatro gaúcho – e sabem por quê?! Pelo que pude notar nas redes sociais e blogues por aí, só virou mártir porque a pecinha que ele montou láááááááá na pré-história, Extinção – A Impossibilidade Física de dizer esse título inteiro e ainda assim continuar Vivo, foi apresentada por aqui novamente, na última edição do festival Porto Alegre Em Cena, porém dessa vez com elenco global e um diretor incensado nas páginas de publicações culturais. Pois bem, voltando: na época eu me impus contra o tal embusteiro que nada mais fazia do que aliar-se ao seu grupo (Cia Espaço em BRANCO, se bem me lembro...) para manchar o meu nome e de minha família em troca de alguma atenção (que ironicamente só veio a adquirir agora, e por motivos igualmente duvidosos). Pra quem tem memória de peixe – o que significa, a classe teatral inteira! –, aqui vai o link para tamanha indignidade:
http://www.orkut.com/CommMsgs?tid=11594402&cmm=48273&hl=pt-BR
Um parêntese: tempos depois fiquei sabendo através de fontes confiáveis que ele e sua trupe de mambembes criaram uma verdadeira afronta ao Bom Teatro, baseando-se na vida de uma tal Teresa e jogando-a num grande aquário pra ser devorada por piranhas assassinas, alguma coisa grotesca assim; e depois ainda, apresentaram ao público outra aberração teatral que, de tão ofensiva à moral e aos bons costumes, levou um “famoso” crítico local a afirmar que o espetáculo “não merece a gentileza de um aplauso”. É desse tipo de gente que estou falando...se é que vocês me entendem.
Voltando ao foco desta mensagem: agora, anos após eu ter sido atirada à cova dos leões da intelligensia portoalegrense, minha batalha se torna ainda mais árdua e perigosa: escrevo estas linhas para pedir (pedir não, recrutar!), a(os) católicos e pessoas de bem, tementes ao Nosso Senhor Agonizante na Cruz, para que juntos boicotemos essa peça maligna intitulada Pterodátilos, encabeçada pelo demoníaco Marco Nanini, que nela interpreta dois personagens: um pai pedófilo e sua filha (grávida!) de 15 anos, de forma que mostra assim seu enorme talento em incorporar dois lados da mesma doença, porém sem nunca abandonar a máscara sedutora de ator famoso – Plim! Plim! – ainda que sabidamente um ator corrompido pelo que há de mais pútrido na face desse mundo regido por códigos estéticos incompreensíveis a nós, meros leigos; e a pedir (pedir não, implorar!) para que combatam esse maléfico presente do inferno por onde quer que ele passe, pois ele, digo, ela (a peça), não merece nem deve ser presenciada, visto que é uma obra típica daqueles que têm intimidade com Belzebu.
E um AVISO: saibam que qualquer um que gargalhar com esta peça, está fazendo – sem que o perceba conscientemente – um pacto com o demônio, já que é IMPOSSÍVEL gargalhar com tamanha baixeza (como se estivessem assistindo a um sitcom transmitido do inferno), e PRINCIPALMENTE, se a risada for fora de hora – o que acho inadmissível no teatro, pois sou de opinião de que as pessoas até podem comer balinhas ou atender celulares** (nunca se sabe quando a sorte vai nos ligar, não é mesmo?!), mas ainda assim, tenho claro pra mim que numa sala de espetáculos todas as pessoas devem rir juntas, todas ao mesmo tempo, e nos momentos adequados, mantendo desse modo os códigos de comportamento mesmo quando estão no escuro...(sobre esse tópico ainda teria muito o que comentar, mas é melhor calar).
Sei que falando assim – quase um mês após o término desse reconhecido festival de teatro (e mais de 6 anos desde que aquela galinha preta pousou em minha cabeça) – pareço anacrônica. Mas garanto-lhes que não sou, não. João de Ricardo, como hoje se auto intitula esse vermezinho, corrompeu os valores da minha família naquela época, levando a minha filha mais velha à prática de contato lésbico e o meu filho mais jovem ao álcool, ao uso de substâncias tóxicas, e às peças homossexuais de Miguel Falabella. Já Felipe Hirsch, hoje FELIPE HIRSCH, faz o mesmo que De Ricardo fez comigo e minha família, porém dessa vez, devido ao prestígio dos envolvidos e ao alcance da mídia (muuuuuuuito diferente da situação anterior) este mal se estende a todas as famílias cristãs do nosso país, valendo-se do talento diabólico da luxuriosa Mariana Lima e de seu comparsa satânico, Marco Nanini, em mais essa empreitada do Tirano. Não vamos, bons irmãos, deixar que isso aconteça com a família de vocês! Abram os olhos!
Vejam, por exemplo, o que vem acontecendo nas últimas semanas, no mundo todo: devido à união desses anarquistas desocupados que se apresentam inocentemente como ANONYMOUS, o mundo está a beira de um colapso financeiro. E isso porque esses baderneiros não aceitam de jeito nenhum a decisão superior promulgada em lei para tornar obrigatório o desconto de 50% para jovens dos 15 aos 29 anos nos eventos que estes arruaceiros promovem (se não me engano, é isso... i algo sobre o assunto na Globo News). Gente, isso é um absurdo!!! Todas as lojas do MUNDO dão desconto!!! E mais: em épocas de mudança de estação esses descontos chegam a 60, 70% do valor total de cada peça! Então por que esses desocupados não aceitam fazer a sua (mínima) parte na construção de uma democracia mundial? Simples: porque eles se consideram melhores que os outros. Pra vocês terem ideia, até em Madri já tem pessoas protestando! Tenho amigos que moraram lá e que afirmam que este é o primeiro sinal do fim dos tempos; é como o poste...desculpe o termo que irei utilizar...urinando no cachorro. Como dizem esses mesmos amigos ex-madrilenhos, entre uma taça e outra, uma gargalhada mordaz aqui e um antidepressivo ali, é “a chinelagem ganhando cada vez mais espaço”.
Por isso, vamos nos unir, irmãos! Escrevam, abaixo, seus depoimentos; Peço encarecidamente àqueles que presenciaram essa...promiscuidade teatral (em qualquer das versões acima apresentadas), que relatem sobre o que se trata essa obra tão impura e revoltante. Façam isso, bom irmãos, eu vos peço! Não apenas para que retornemos logo aos áureos tempos em que as obras de arte refletiam a nobreza dos homens de bem e inflamavam em seus corações sentimentos puros e belos, como também para termos finalmente um Brasil laico absolutamente cristão, sem que essa cambada de mascarados, empoleirados em obeliscos nas praças públicas, venham a denegrir a nossa visão otimista de mundo. E mais do que isso: sem gargalhadas indevidas, seja no teatro ou em qualquer outro ambiente social que nós, cidadãos de bem e bem nascidos (e sem culpa por sermos assim!), frequentamos.
Obrigada pela atenção. E que Cristo esteja com vocês.
PS: Concordo com todos os que escreveram a respeito desse despacho intitulado Pterodátilos: analisando estruturalmente, Todd é o Protagonista, e não as facetas demoníacas de Nanini (apesar do merecido Shell de Melhor Ator).
**Sim, sou complacente com os espectadores que conversam durante uma peça, pois sei que pessoas como nós, meros mortais, precisamos nos comunicar e de alguma forma expressar o mais imediatamente possível a nossa opinião sobre os absurdos que presenciamos sobre o palco. Se você não é, então fique em casa!
* Nora Bastos é presidenta da Associação Porto-Alegrense pela Ordem, Família, Moral e Bons Costumes Para mais informações sobre as polêmicas declarações de Nora Bastos, visite o blog  http://www.norabastos.blogspot.com/

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Devolução industrial por Manuella P. Goulart

Devolução industrial*
Dirigido por Leo Sykes, Devolução industrial apresenta um espetáculo que mescla circo, clown, música e, é claro, teatro. Já sabendo desses artifícios, o público começa a se interessar para conferir o que resultará essa mistura cultural. Isso pôde ser comprovado pela longa fila que se formou na porta do Teatro Bruno Kiefer. Além disso, após a entrada ser liberada, havia pessoas que ainda queriam comprar ingressos. A expectativa era notável.
A primeira sensação que o espectador tem ao entrar no teatro é a de estar junto a alguma cerimônia ritualística. A atmosfera é de mistério, e esta é acentuada com um cheiro semelhante a incenso e um palco que chama bastante a atenção pela sua variedade de cores e formas. Nele se encontrava um ator vestido completamente de branco e com o rosto coberto por um acessório comprido feito de palha. Também se pôde notar uma grande roda atrás dele, um “lago” e o assento em que está sentado.
Após todos se acomodarem, o ator inicia o texto. Conta-se a história da criação do universo ilustrada por um jogo de luz e gestos entre os atores. Com isso, é possível identificar os personagens da trama: o Ser Místico e mais dois atores que chamam um ao outro de Senhor e Senhora Sapiens. O primeiro realiza variados truques de ilusionismo que entretêm o espectador. Já a “dupla Sapiens”, a partir do humor corporal, auxiliam no tom divertido da peça.
Inicialmente, é possível pensar que se assistirá a algo relacionado à Bíblia. Porém, não é bem isso o que acontece. Ao longo da peça é mostrada a evolução tecnológica humana. Com isso, os atores usam objetos que se transformam em máquinas magníficas que encantam o público. O primeiro deles é uma panela usada para, realmente, cozinhar uma sopa – que é servida, no fim do espetáculo, aos interessados em prová-la. Depois disso, a panela é mesclada com outros objetos até formar um trem à vapor. Nesse momento, há interação com o público – o que é muito frequente durante o espetáculo – em que convidam participantes para serem os passageiros dessa locomotiva.
É notável a beleza dos itens usados em cena e o olhar de surpresa do público para a variedade de objetos que eles podem se transformar. É importante também assinalar que essa maquinaria é feita a partir de utensílios recicláveis (garrafas plásticas), o que resulta numa moral ecológica ao espectador. Isso é reforçado com as músicas cantadas pelos atores. Eis um espetáculo que soube ser pedagógico sem ter elementos “piegas”.
Porém, é uma peça aconselhável para o público infantil. Pelo contrário, aquele que assistirá só se sentirá conectado por causa da dinamicidade do cenário e das máquinas. Aliás, acredito que os atores sejam mais agradáveis a partir da visão do público infantil, pois é usada uma linguagem constituída de piadas leves que dificilmente atrairão os adultos.
Assim, caso queira entreter os seus filhos ou apenas relaxar vendo um cenário dinâmico, essa é a melhor opção. Com certeza, os pequenos voltarão surpreendidos para casa, por causa da estética teatral, e com uma melhor visão ecológica.
* Manuella P. Goulart é estudante do Departamento de Arte Dramática da UFRGS

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Agreste malvarosa por Guilherme Nervo

 Flor arrancada*

Malva-rosa é uma flor de pigmento violeta ou rosa, exibe um porte charmoso e possui poderes de cura. Para mim, a montagem da Cia. Amok de Teatro também exerceu um papel de cura. Eu saí embevecido da Sala Carlos Carvalho, com uma mistura de euforia e admiração. Senti o pólen extasiante da flor do sertão através de um texto recheado de metáforas, uma delicadeza incomparável, uma sonoplastia certeira, uma direção seca e encadeada, e atuações poderosas.
Parece ser impossível ficar indiferente a Agreste malvarosa. Se alguma vez eu tirava os olhos das atrizes Milene Ramalho e Rosana Barros, fazia para escutar também com os olhos a música do instrumentista Beto Lemos, que permaneceu sentado em uma cadeira pobre, executando o acompanhamento essencial no corpo do espetáculo. Sentei em um assento que fazia margem com o palco, portanto eu era banhado pela luz quente, enquanto recebia os olhares penetrantes das atrizes contando uma história de amor. Entretanto, inicialmente ou durante toda a peça, dependendo do espectador, a linguagem de atuação escolhida tem a capacidade de repelir, pois se trabalha com o exagero dos movimentos e da fala, instaurando um ambiente de força poética. Realmente, quando saí do teatro vi a maior parte dos espectadores deixando escapar elogios, mas também tinha gente de cara feia, que admitiu ter tido a vontade de se retirar do teatro. Pergunto-me como ficar desconfortável perante duas atrizes em ebulição? Justamente pela presença transparente da técnica, que não agride ou se sustenta apenas por si, mas que se envolve com o impulso da emoção como numa grande dança entre atriz e personagem.
Tanto a parte narrada quanto a parte dialogada da montagem estão bem entrelaçadas e fluem naturalmente. A direção de Ana Teixeira e Stephane Brodt decide intercalar a narração e o diálogo entre as atrizes, elas repartem o texto a fim de materializar as personagens. Enquanto Milene Ramalho segue o caminho da viúva ingênua, Rosana Barros toma conta do lavrador forte e de pele marcada. O texto do pernambucano Newton Moreno explora a inocência e ignorância das mulheres do interior do sertão nordestino, rechaçadas por um meio social que devora a diversidade com a própria boca. O início é uma celebração à descoberta amorosa, passamos a conhecer o crescimento de uma chama entre dois lavradores separados por uma cerca. Como diz a obra: Eram tímidos como caramujo. Tinha alguma coisa no amor deles que não devia acontecer. Mas aconteceu. O buraco na cerca faz com que a mulher tenha coragem de cruzá-lo e caminhe até o homem. Ouvia-se uma pele rachando na outra. E assim o casal viveu longe de tudo, em um casebre durante vinte e dois anos. Até o momento em que ele morre e as vozes dispersas da sociedade adentram enfurecidas o casebre. Descobriu-se que o marido, de nome Etevaldo, é fêmea.
A encenação não trabalha com a estética naturalista, acredita na linguagem da poesia, na universalidade dos sentimentos e das situações. A diretora Ana Teixeira diz que o intuito é recriar o agreste e não mostrar a realidade do agreste. O sertão nordestino é desterritorializado a partir do momento em que exploramos um sentimento incondicional de amor entre duas mulheres. O contexto social nordestino aparece na obra de Newton Moreno, a partir das expressões tipicamente regionais e da reação ultraconservadora do povoado diante da situação. As atrizes constroem personagens com um forte sotaque nordestino, modelando os corpos de acordo com a troca de personagem. Basta enrolar parte do figurino na cabeça e pronto, surge uma velha. É o ator com ele mesmo, teatro pobre que acaba se desdobrando em uma riqueza descomunal. É o que vemos na construção da personagem do padre, por Rosana Barros. Desesperada, a viúva pede que ele benza Etevaldo para que o espírito dele descanse em paz, mas o padre se recusa devido ao escândalo causado. Ele diz: Pelo menos se tivesse me chamado antes, nós teríamos feito de outro jeito. Já enterrei gente que nem você e ela...Etevaldo. Uma fala que serve como termômetro da hipocrisia da instituição religiosa.
O autor confessou que havia escrito o espetáculo pensando na direção de Ana e Sthephane, o que explica a harmonia entre texto dramático e montagem. Newton aceitou o convite de revisitar sua obra original, Agreste (premiada com o Shell e o APCA), transformando o casal masculino em feminino. E diz também que foi um presente voltar ao ninho de fêmeas, pois é aí que reside a origem do texto: através da conversa com uma amiga que contava, transtornada, o desconhecimento corporal/sexual entre as mulheres do sertão. O que acaba se encaixando com o imaginário sertanejo, no qual a mulher se traveste de homem a fim de espantar futuros males como a submissão.
Agreste malvarosa expõe a força brutal do preconceito. Escancara os limites que uma construção cultural pode alcançar. Numa terra onde mulher deita com homem, não há espaço para descobrir-se mulher com outra mulher. A norma da heterossexualidade é clara e irredutível, o que está representado de forma excelente na figura do Delegado, próximo ao término da peça. Delegado - E tu num sabia que coronel num gosta dessa esfregação de fêmea com fêmea. Amanhã, na cadeia, a senhora vai conhecer macho para nunca mais se confundir.
Esse foi o momento que mais capturou a minha atenção, o trabalho vocal acasala muito bem com o texto, evocando figuras espantosas de autoridade. Mais interessante ainda, é ver a transição a partir do choque corporal entre a figura máscula e indignada do Delegado, com a figura acuada, espantada de Maria. Ela se sentia um prato de comida estragada. Uma carniça. Um penico. Um escarro. Uma doença. Um pus. Um cancro. Uma gota. Suja, suja, imunda.
Essa descrição do estado de humilhação da viúva, não mostra apenas a dimensão da perda do marido, que a coloca num estado de vulnerabilidade, mas também a sensação do indivíduo homossexual perante o preconceito que é capaz de arrasar. A eficiência do último quadro da peça é conquistada através dos méritos do cenário e da iluminação. Uma luz vermelha penetra em cada brecha do casebre de palha e madeira, incendiando o casal de amantes. Mas na crença da viúva, aquilo não era tragédia nenhuma, Deus havia escutado seu canto. Uniria ela com Etevaldo.
Cruel, a natureza é
Dá o sol na desmedida
Dá um corpo na desmedida
Dá o amor na desmedida.
* Guilherme Nervo é estudante do Departamento de Arte Dramática da UFRGS

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Sua Incelença, Ricardo III por Adriane Mottola

 Sua Incelença, Ricardo III*
Duas décadas depois de estontear o teatro brasileiro com o Romeu e Julieta do Grupo Galpão, que resgatava as origens populares de Shakespeare em montagem para a rua, o diretor Gabriel Vilela retorna ao bardo inglês em parceria com o grupo potiguar Clowns de Shakespeare. Diretor inventivo, Vilela cria pontes entre a cultura popular brasileira e o universo elisabetano e imprime em Sua Incelença, Ricardo III as suas marcas mais conhecidas: teatralidade barroca, apelos frequentes ao imaginário brasileiro, figurinos exuberantes e riqueza de detalhes.
O grupo Clowns de Shakespeare de Natal, com 17 anos de trajetória, desenvolve um trabalho de pesquisa teatral com foco na presença cênica do ator, musicalidade da cena e do corpo e no teatro popular. Numa escolha em que encenaria a sua primeira peça não cômica – o drama histórico Ricardo III - o grupo é desafiado por Vilela a trazer o vilão shakespeariano para o universo lúdico do picadeiro do circo, encenando Ricardo III ao ar livre, bem ao gosto do teatro elisabetano, numa montagem que une sarcasmo, humor e ironia.
Ao carnavalizar a ascensão e queda de Ricardo III, em sua trajetória de assassinatos e traições rumo à coroa da Inglaterra, a encenação de Vilela dilui o trágico e ganha em apelo popular (sem cair no popularesco). Para que as 4h da primeira leitura do texto pelo grupo se transformem na 1h15min que dura a montagem, a linguagem cênica complementa a dramaturgia enfatizando a narrativa visual ao “tempero” de uma trilha sonora que mescla as incelenças (cantigas típicas do Nordeste, geralmente ligadas a rituais fúnebres) com citações de bandas como Queen e Supertramp.
O diálogo entre as tramas da Inglaterra elisabetana e a realidade do sertão nordestino perpassa toda a obra: cenografia, figurino e sotaque caracterizam o Nordeste, Ricardo III é retratado como coronel sertanejo, personagens shakespearianos são transformados em cangaceiros e ciganas, numa miscelânea criativa que ainda reserva lugar para uma rainha-mãe cover do Fred Mercury, uma Lady Anne travestida que impede que o espectador acesse a cena através do romantismo e Daydream cantada por um coro de palhaços.
Sua Incelença, Ricardo III tem o mérito de tratar o clássico shakespeariano com liberdade e frescor, atingindo o espectador com tiro certeiro, inebriado pelos requintes da montagem. Shakespeare em estado puro!
* Adriane Mottola é encenadora

Cida Moreira- A dama indigna por Marina Mendo

Cida Moreira, encontro com UMA Dama Indigna*
Segue UM depoimento sobre UM encontro com UMA Dama. Fascínio e espanto a cada vez que a ouço, escrevo assim, sem muitos pudores (coisas que aprendi com ela!).
Este espanto aconteceu pela primeira vez em dois mil e pouco, eu tinha vinte e também poucos anos, e fui a um show seu num domingo à tarde no Theatro São Pedro. Cida Moreira cantaria Tom Waits. Na ocasião eu nunca tinha ouvido Tom Waits e desde então não consegui mais desvincular um do outro. Não consegui mais parar de ouvi-los, descobri-los e de recorrer a eles quando faminta.
A música de Cida Moreira é uma expressão selvagem, muito de tudo aquilo que em nós não pode ser domesticado está ali se agitando sonoramente e neste movimento nos captura em uma experiência musical poderosa, emocionante, da qual não se sai ileso.
Exposta na rica promiscuidade das referências que compõe o repertório de A dama indigna, espetáculo apresentado durante o 18º Porto Alegre em Cena, Cida retira-nos da tagarelice do cotidiano pelos traços inconfundíveis de sua expressão: a singularidade com que se apropria de cada música transformando a matéria sonora em uma extensão de si, um fluxo espetacular que conecta suas mãos, voz, corpo, piano, teatro, nós.
Cida constroi e desconstroi harmonias para seu piano e voz, envolvendo cada música na fumaça de seu cabaret. Assim, são por ela abocanhados artistas que tangenciaram as dimensões arte-vida através de comportamentos performáticos transgressores e criações sensíveis aos blocos de forças que atravessaram (e esburacaram) politica, social e criticamente seus tempos: Jards Macalé ( Hotel das estrelas do primeiro LP do antropofágico músico-poeta 1972 ), David Bowie (Soul love), Caetano Veloso ( Mãe e O ciúme), Du Bose Heyward e George Gershwin em Summertime (minha música preferida, um clássico, atualizando sua eternidade, e também título do primeiro espetáculo e LP de Cida em 1981). Em tempos de espetacularização da morte dos famosos, Cida sai pela tangente exaltando a força musical de Back to black (Amy Winehouse), Gonzaguinha (Palavras), Chico Buarque (Uma canção desnaturada), Youkali-Tango (Roger Fernay e Kurt Weill) e como não poderia faltar Tom Waits ( Lullaby/ Tango ‘Till they’re sore), entre outras maravilhas. O CD A dama indigna produzido por Cida Moreira e Thiago Marques Luiz foi lançado pelo selo Joia Moderna.
Todas as componentes do espetáculo (repertório, desenhos de luz, cenário e figurino) conversam naturalmente sem medir muito as palavras! A direção cênica de Humberto Vieira nos transforma em público de um cabaret, testemunhas dos ímpetos de uma persona teatral (assim definida pela artista) corporificada em ações precisas, atravessadas pela expressão de um conflito íntimo (origem do drama). Em diferentes momentos percebemos a construção de alguma coisa (um charuto se acendendo, uma taça cheia, uma rosa vermelha, o lirismo que introduz algumas canções) que daqui a pouco será decomposta, desfigurada, arremessada em diferentes direções e neste movimento nos atingirá. A direção cria uma zona de convivência orgânica entre música/performance, não presenciamos ali a música em primeiro plano, e um comportamento performático em segundo plano, os planos se atravessam, A dama indigna é híbrida e liberta do início ao fim.
O espetáculo foi iluminado por Cláudia de Bem, em uma impecável criação de estados visuais para cada música. Uma conversa sensível entre cor, luz, sombra e som, construindo um espaço íntimo para a relação entre Cida, sua música e o público. Uma maravilha desta artista da luz (reforçando palavras da própria Cida ao se referir a iluminadora).
Em A dama indigna, está segundo ela mesma, ”o exercício sem pudores de sua dignidade na arte”, onde somos conduzidos pelo seu arquivo vivo de histórias, memórias, referências, reverências, saudades e homenagens. Temos assim, diante dos olhos, um palco povoado de presenças, heranças de uma trajetória marcada pela convivência poética com tantos outros artistas a quem ela generosamente evoca, agradece e pede aplausos.
Escrever sobre Cida Moreira sem me rasgar não é possível, estive diante de uma Dama, que produziu estados que me transportaram, fica aqui certamente um vazio entre a palavra e o acontecimento, um encontro com indefiníveis forças da natureza, um encontro com UMA Dama.
* Marina Mendo é atriz

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Os vencedores do Prêmio Braskem 2011

Ontem à noite, em cerimônia no Teatro do Bourbon Country, e com o complemento do show Mônicas (das cantoras Mônica Tomasi e Mônica Feijó), foram entregues os cinco troféus Braskem para os escolhidos pela comissão julgadora como os melhores espetáculos locais apresentados na programação do 18º Porto Alegre em Cena. Neste ano, a comissão foi integrada pelos jornalistas Alice Urbim, Fábio Prikladnicki, Michele Rolim, Vera Pinto e Zeca Kiechaloski. Os vencedores foram:

Melhor Espetáculo do Júri Popular: HYBRIS
do Grupo Falos e Stercus, com direção de Marcelo Restori


Melhor Ator: DENIS GOSCH
pelo espetáculo Hotel Fuck: num dia quente a maionese pode te matar
direção de Jezebel de Carli, da Santa Estação Cia. de Teatro


Melhor Atriz: CAROLINA GARCIA
pelo espetáculo A tecelã
dirigido por Paulo Balardim, do grupo A Caixa do Elefante Teatro de Bonecos


Melhor Direção: DANIEL COLIN
pelo espetáculo Wonderland e o que M. Jackson encontrou por lá
do Teatro Sarcáustico



Melhor Espetáculo:
WONDERLAND
E O QUE M. JACKSON ENCONTROU POR LÁ


Luiz Paulo Vasconcellos, o padrinho do Porto Alegre em Cena em 2012

Já está escolhido o nome do padrinho da edição 2012 do Porto Alegre em Cena: será o ator, diretor, professor e escritor Luiz Paulo Vasconcellos, um dos nomes mais importantes da história do teatro gaúcho. Aos 70 anos, Luiz Paulo participou da formação de grande parte dos artistas que hoje estão em atividade em nossos palcos. Apesar de ser carioca, tem vivido a maior parte de sua vida em Porto Alegre (desde 1969), onde desde então trabalha ativamente, seja em empreitadas artísticas, seja em cargos públicos. Casado com a atriz Sandra Dani, forma com ela um dos casais mais queridos e importantes de nossas artes cênicas. Parabéns Luiz Paulo!

Medeia por Jessé Oliveira

Medeia numa montagem intercultural*

Médée, de Burkina Faso, sob a direção de Jean-Louis Martinelli foi, em minha opinião, um dos pontos culminantes do 18º Porto Alegre em Cena. Obviamente que eu tinha uma expectativa em relação a este espetáculo por conta de interesses pessoais, essencialmente pelo trabalho que desenvolvo junto ao Grupo Caixa-Preta. Há uma evidente identidade com o ensemble burquinense.
Para Bernard Dort não dizemos que vamos ver uma peça ou um espetáculo e sim que vamos ao teatro, significando que há muito mais coisas nesta aventura que somente a obra que assistiremos. Esta assertiva é confirmada por Jorge Dubatti que defende a noção de um convívio teatral que estende esta experiência a diversas dimensões para além do momento exclusivo da representação e para falar de Médée é preciso escancarar as portas do presente e do passado.
Fui ao espetáculo com a “tarefa” de extrair algum comentário que pudesse ser compartilhado com outras pessoas que iriam ler na página do festival e isto imprimiu certa preocupação extra com a experiência efêmera que é a representação teatral. Tive o privilégio de adentrar a plateia com aproximadamente uma hora de antecedência ao restante do público, o que me possibilitou presenciar ajustes por parte dos atores e equipe técnica e da própria produção do Em Cena. Inegável observar que se tratava de atores negros e equipe de criação e técnica formada por artistas brancos. No entanto, todos se comunicavam em francês, língua adotada no país desde que era uma possessão francesa. Impossível abstrair esta observação.
No final do século XIX a França chega a esta localidade e a nomeia de Alto Volta, que perduraria até o ano de 1984 quando troca para Burkina Faso. É um país muito pobre com alto índice de analfabetismo e, como toda a África, sofreu com a histórica espoliação colonialista que viveu durante mais de um século sob o domínio francês, tendo alcançado sua independência somente em 1960. Unificado e dividido muitas vezes segundo interesses externos, Burkina Faso, sofre ainda por esta história de violência política. Como parte da África, tem, atualmente, sua maioria religiosa de muçulmanos, mas ainda possui reminiscências de religiões originais que competem ainda com o cristianismo católico e protestante. Os deuses originais vivem no exílio, aqui no Brasil, em Cuba, no Haiti...
Esta situação de permanente acampamento de refugiados em seu próprio país serve de “cenário” para Médée, entretanto, falta à montagem decifrar a origem das lutas étnicas, pois elas foram intensificadas justamente pela delimitação artificial de um território político que não podia comportar a diversidade, fenômeno identificado em quase toda a África e Oriente Médio. Relevante lembrar que os anos 1950-1960 foi um período em que se desenvolveu o conceito de negritude, cunhado por intelectuais africanos e antilhanos francófonos que viveram na França, como Aimé Cesaire, Leopold Senghor, Sheik Anta Diop. A França à época tinha uma efervescência por liberdade, contudo, mantinha colônias na África e Ásia. Liberdade para quem?
Estivéssemos na Grécia Antiga, uma introdução à tragédia seria algo dispensável, uma vez que todos conheciam seus mitos e as histórias contadas nos festivais teatrais, todos queriam saber como seus autores preferidos desenvolviam cada história. Eurípides (480-406 a.C.) foi tragediógrafo da fase decadente de uma Grécia clássica já dominada pelo sofisma. O enredo de Medeia (431 a.C.) é simples e tem seu início na aventura dos Argonautas, liderados por Jasão que tem a tarefa de conquistar o Velocino de Ouro, muito bem protegido no Bosque de Ares, sob o domínio do rei da Cólquida, Eetes, pai de Medeia. Com a promessa de casamento por parte de Jasão ela o ajuda, e na fuga despedaça seu próprio irmão para atrasar os perseguidores. Tem dois filhos com Jasão e eles serão o instrumento de sua vingança. Medeia é sobrinha de Circe, a feiticeira, e neta de Hélio, o Sol, que ao final garante sua fuga no deus ex-máquina, uma inovação na estrutura trágica que de certa forma resolvia o complexo enredamento da narrativa euripidiana. Jasão pretere o amor de Medeia em favor de Creusa, filha do fraco Creonte e ela como vingança envia, através dos filhos, um véu enfeitiçado que ateia fogo na jovem e em seu pai. Ao retornarem os filhos são mortos por Medeia. A peça em questão é uma adaptação de Max Rouquete, que sintetiza muito bem a trama utilizando um dialeto do sul da França em contraponto com cânticos autóctones que muito lembram as cerimônias do povo do asè (Axé) brasileiro.
Aqui no Brasil, qualquer pessoa minimamente iniciada no Candomblé, ou no Batuque, designação da religião de matriz africana no Rio Grande do Sul, não precisaria de informação alguma para compreender os personagens e os signos da liturgia por haver um domínio desta cultura. Entretanto, nós, público médio, desconhecemos os mitos unificadores desta longa tradição perpetuada no país como forma de resistência cultural e política, assim como nos falta o conhecimento do sistema trágico grego. Nos resta analisar a obra a partir dos elementos que dominamos, na sua condição de teatro. E isto basta para compreender a montagem burquinense, estrelada pela magistral atriz Odile Sankara, uma vez que a obra trava aproximação muito grande com o teatro europeu. A Medeia de Odile é inesquecível e impecável assim como toda a montagem.
Já no início da peça chama atenção a pergunta proferida pelo coro: “Que povo que somos? Povo maldito” e que, sob certo aspecto, pode ser compreendida como uma ponte entre o discurso original da peça e o homem contemporâneo vivido pela população burquinense e o elenco de Médée.
Contrariando seus antecessores, da fatalidade cega de Ésquilo ou o lógos da razão socrática de Sófocles, em quem os deuses olímpicos tinham papel fundamental, em Euripides é Eros, a força da paixão que nutre os personagens. Medeia é, segundo Junito Brandão, a tragédia do amor transmutado em ódio mortal e, lembrando uma frase de Brecht: “um homem tem sempre medo de uma mulher que ame muito”. Odile, a atriz burquinense consegue dar esta dimensão da mulher que sofre por amar desmedidamente, mas não se torna submissa ao objeto amado, somente à sua própria paixão.
Além de uma presença cênica estupenda (seja lá o que isto significar) Odile tem uma voz e uma forma tão intensa de dizer o seu texto que comoveria, ainda que se estivesse de olhos fechados. A África tem uma tradição oral tão forte e viva, uma vez que parte do ensino-aprendizagem se dá pela oralidade e a transmissão do conhecimento é muito direta, apreende-se o conhecimento ancestral ouvindo os mais velhos. Gostaria de ter gravado esta mulher dizendo suas falas. Elas tinham imagens interiores.
Sua força contrasta com as figuras masculinas fracas como a do Rei Creonte, muito bem construídas pelo ator que o representou que, já em sua primeira aparição cativou e disse muito com seu silêncio cheio de intensidade. Creonte aparece em cena como um político populista e oportunista que por sua fraqueza intelectual em contraste com a fala apaixonada de Medeia acaba tendo como alternativa somente o uso da força. Contudo, a astúcia dela acaba por dobrá-lo pela falta de argumentos. É, sem dúvida, uma das cenas mais brilhantes desta montagem.
Não poderíamos esquecer a Ama, já presente em cena enquanto o público entra. Seria impossível. Ela tenta manter o fogo de um braseiro aceso e mantemo-nos presos as suas ações mínimas e, logo que começa a peça já indica sua preocupação com as intensões da protagonista. Juntamente com o preceptor dá a devida força para a progressão da peça a fim de manter o espectador atendo ao desenrolar da trama sempre num crescente. Ama e preceptor, uma dupla que joga o jogo do teatro numa simplicidade que comove. Aliados às crianças que foram recrutadas aqui e foram absolutamente magníficas - e olha que não gosto de peça com crianças em cena. O menino menor era de fazer suar os olhos e ao mesmo tempo tirar lindos sorrisos de nossos rostos sisudos, lembrando que existe um futuro...que dura pouco.
A peça segue em termos de espetáculo o rigor da tradição europeia. Pouco da narrativa ou mesmo dos elementos de encenação foge aos modelos conhecidos nos palcos ocidentais e isto não traz prejuízo algum, apenas saliento que não é uma peça construída sob os referenciais culturais africanos, ainda que consigamos ver uma corporalidade que afirma sua africanidade e, neste sentido criam um modo próprio de deglutir a influência de um teatro de inspiração euro-ocidental.
Em contraponto à personagem Medeia, com seu furor intempestivo, temos o cinismo de Jasão oportunista que com sua fala mansa tenta sofisticamente convencer Medeia de que ele tomou a melhor decisão para todos e que o exílio dela faz parte de seu jeito de protegê-la e aos seus filhos.
O cenário, assim como o próprio espaço cênico são reveladores, ora deixando uma tênue luz revelar parte da movimentação em penumbra e ora ao modo brechtiano, revela toda a estrutura do teatro nos chamando a consciência de espectadores. Utilizando potentes refletores fresnel de 5 mil watts, algo somente visto nas grandes produções de fora da cidade, a luz é sempre reveladora e não deixa nada escondido, é quase a presença de Hélio, o Sol que vai proteger Medeia de seus atos e acusar a omissão e a traição de seus inimigos.
Se toda a peça é construída sob um forte domínio de uma teatralidade de matriz europeia, na noite do dia 25 de setembro fomos brindados, ao final da apresentação, com uma pequena demonstração de danças africanas por parte das atrizes, algo provavelmente não ensaiado, fruto da alegria do momento. Uma bela despedida para o Festival. Viva Burkina Faso. Asè.
* Jessé Oliveira é encenador

Mônicas por Marcos Chaves

Intercâmbio*

Para comentar o show musical intitulado Mônicas, eu não poderia deixar de situá-lo onde sua apresentação estava inserida. Dentro do Porto Alegre Em Cena, atração de encerramento e entrega do Prêmio Braskem – que destaca espetáculos gaúchos de artes cênicas – e, por isso, havia na plateia um público diferenciado.
Diferenciado no sentido em que muitas emoções estavam ali presentes, o show, para alguns, fazia parte de uma grande festa, e no passar de sua realização, na medida em que eram revelados os premiados, mistos de alegrias, tristezas, concordes e discordes instauravam-se no ar, também fazendo parte do show, pois o espectador é o sentido do artista “estar no palco”.
Dito isso, é claro que era possível perceber parte do público curtindo o show, e parte do público envolta em outras emoções. E não apenas pelo prêmio Braskem, mas também pela data final do festival, um clima de compensação pelos organizadores do evento que procuraram fazer um bom trabalho, entremeados por discursos de importantes pessoas que fazem e/ou apoiam o festival.
Da premiação, parabenizo todos os artistas destacados pelo júri popular ou júri oficial – que tiveram um difícil trabalho devido a tantos concorrentes apresentando obras artísticas de qualidade.
Situadas em uma apresentação dentro de um evento complexo, Mônica Tomasi (RS) e Mônica Feijó (PE) – por isso o nome Mônicas – tinham outra preocupação com seus músicos: fazer um grande show para o público presente. Luciano Alabarse, coordenador geral do Porto Alegre Em Cena, revelou que há algum tempo queria apresentar a musicista pernambucana ao público gaúcho, esperava apenas o momento certo. Disse também um fato que vivenciamos: a dificuldade de “expandir fronteiras” que os artistas possuem com suas obras. Não é fácil conseguir espaços em outros centros culturais, geralmente os espetáculos percorrem uma trajetória local e/ou regional dentro do próprio estado. Certamente não por opção, e sim por esbarrar em dificuldades diversas.
Unir o grupo gaúcho de Tomasi ao pernambucano de Feijó fora uma grande ideia, desta forma o público apreciou um pouco mais da Mônica “daqui”, e conheceu a Mônica “de lá”. O intercâmbio cultural estava presente, os músicos realmente se divertiram no palco. É fato que as cantoras, sabendo do show marcado há meses atrás, mantinham contato já trocando seus repertórios, criando situações para o evento, dividindo ideias...O que poucos sabem, é que elas apenas se conheceram pessoalmente um dia antes do show. Houve apenas um ensaio. Não é tarefa fácil, e os músicos se saíram muito bem: tanto que o ponto alto do show aconteceu quando todos estavam no palco e ambas as Mônicas cantavam juntas.
Divididos em blocos, o show primeiro nos trouxe Mônica Tomasi acompanhada por dois músicos, Giovani Berti na percussão e Matheus Kleber no acordeon – jovem artista que realço por fazer do instrumento de sopro uma extensão de seu corpo. No segundo bloco, Monica Feijó e quatro instrumentistas, Tom Rocha na bateria, Areia no baixo, Rodrigo Souza na guitarra e Guga Fonseca nos teclados. Desta formação, destaco Fonseca por sua habilidade e sensibilidade aos timbres. A partir do terceiro bloco um presente a nossos olhos e ouvidos: a junção de todos os artistas no palco, superando o pouco entrosamento e descobrindo relações frente ao público. Um ganho ao show.
Nas composições próprias, poesia. Mas o público precisaria de outras oportunidades para melhor conhecer cada Mônica, fica o show como parte de um grande evento, repleto de emoções, e agora – introduzida a cantora de Recife ao público gaúcho e aguçada curiosidade a respeito da cantora de Porto Alegre – temos como procurar um pouco mais sobre cada artista, bem-vinda a tecnologia neste quesito. As Mônicas marcaram o Porto Alegre Em Cena e estarão na memória do festival e do público presente. Uma bela atração para um festival que cresce a cada ano, e atingiu a maioridade – 18 anos de Porto Alegre Em Cena – mostrando que é um dos eventos culturais mais importantes do país, quiçá da América, com reconhecimento intercontinental.
* Marcos Chaves é ator, músico e criador de trilha sonora

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Medeia por Rodrigo Monteiro

Médée*

O espetáculo Médée (Medeia), participante do 18º Porto Alegre em Cena, não é a atualização para teatro do clássico de Eurípedes, mas a versão teatral do texto de Max Rouquette (1908-2005), autor expoente da língua occitana, idioma falado no sul da França. Escrito em 2003, o texto substituiu o projeto inicial do diretor Jean-Louis Martinelli, diretor do Théâtre Nanterre-Amandiers, desde 2002, que era produzir um texto de Heiner Müller, com o elenco Burkina Faso, país do centro-oeste africano. A primeira montagem, de 2003, foi sucedida por mais duas 2008 e 2009. Nela, o espectador se encontra com uma Medeia vista a partir de sua relação com as forças superiores (versão que também pode ser encontrada na Medeia de Pasolini, filme de 1969, cuja protagonista é Maria Callas), sem dúvida, um ponto de vista diferente e interessante de trazer a personagem clássica para os dias de hoje.
O palco é a frente da casa de Medeia. A peça começa quando já faz três dias que Jasão está sumido e ninguém sabe de seu paradeiro. Há uma criada um criado e os dois filhos do casal, esses últimos interpretados, em Porto Alegre, por dois atores mirins alunos da atriz Gabriela Greco. Há, também, o célebre coro de mulheres, que, nessa versão, canta salmos em uma língua africana, cujas legendas não apareceram na sessão a que eu assisti (e não fizeram falta, impressionando positivamente pela sua peculiar sonoridade). Em todas as cenas, é possível encontrar muitas marcas que embasam a tese exposta no parágrafo de abertura: a) a fala inicial, em que a Ama se reporta a Deus; b) os títulos do coro: Salmo do Perdão, Salmo das Crianças, Salmo das Mulheres, Salmo do Pressentimento...; c) a postura curvada dos atores que interpretam servos versus a coluna ereta dos atores que interpretam nobres, além das expressões faciais neutras de todos, o que exibe a submissão ao destino; d) o tom ritualístico com que o Rei é recebido (a acolhida não é espontânea, mas cultural, isto é, o Rei não é recebido daquele jeito porque esse é sentimento, mas porque aquele é o costume); e) o jogo cênico estabelecido na cena entre o Creonte e Medeia, ambos de linhagem real (rei = ungido pelo sagrado); f) a recuperação do passado de “feiticeira” de Medeia; g) o final, em que a protagonista é vista voando pelo espaço; etc. Em várias passagens, a concepção se reafirma, converge, se estrutura enquanto um objeto único, coeso e coerente consigo próprio, tornando a produção bastante valorosa. Um autor, diretor ou/e ator pode ter o ponto de vista que quiser sobre um determinado texto na hora de concretizá-lo cenicamente, mas o ato da encenação precisa ser fundamentado em bases sólidas que, no todo de suas potencialidades, seja o resultado de um projeto pensado esteticamente em cada uma de suas partes. Em Médée, é exatamente isso o que se vê para o deleite da plateia da capital gaúcha.
Odile Sankara, que interpreta Medeia, está excelente em todos os pontos elementares de sua construção. Junto dela, o elenco, de um modo geral, ajuda a construir grandes momentos. Para destacar um instante que poderia parecer um detalhe dispensável, cito a expressão da líder do grupo de mulheres (Corifeu): na cena em que as mulheres tentam demover Medeia do assassinato dos próprios filhos, o rosto da atriz está impassível, forte, concentrado, potente. Tem grande mérito a produção em que, da alta protagonista ao mais coadjuvante dos personagens, todos exibem o resultado de um trabalho de primeiríssima qualidade como é o caso aqui.
Se figurinos, cenário e trilha sonora estão impecáveis, a iluminação apresenta-se como um recurso bastante mal utilizado. A produção está quase durante todo o tempo da encenação iluminada com luz geral, sem focos que favoreçam os diferentes momentos/lugares de sua narração. Luzes atrás do cenário vazam pessimamente para a plateia e, o pior de tudo, um objeto espelhado reflete a forte luz dos refletores nos olhos da audiência que é perturbada por isso.
Termina o Festival com a graça de um elenco de artistas que recebe os aplausos como se celebrasse a sua vida, a sua vinda, o seu talento expresso na peça a que acabou-se de assistir. Um brinde a todos nós.
* Rodrigo Monteiro é crítico teatral

Estrella Morente por Ana Cláudia Munari

¡Wa-llah!*

Assisti ao show de Estrella Morente no Bourbon Country no domingo, no último dia do Porto Alegre em Cena. Maravilloso! Saí de lá naquele estado catártico de quem tem um encontro com a arte, com todos os sentidos acionados e pensando na beleza das coisas. Eu nunca tinha assistido a um show de flamenco naquele estilo, e fiquei refletindo sobre suas origens, os intérpretes, os instrumentos, enfim, cheia de perguntas para fazer ao Google quando chegasse em casa. Havia em mim a sensação de que presenciara algo mais puro do que aquilo que se costuma ver da cultura espanhola nos shows para turistas e na televisão, pela muito perceptível influência árabe no canto e na interjeição de estímulo “wa-llah”, além da forma quase ritualística do início do espetáculo e do uso daquela caixa de madeira, cujo nome só lembrei depois: cajón. Enquanto eu pensava em origem e raízes do flamenco, alguém me disse que se tratava de algo novo, moderno, e que os violeiros tinham influência do rock.
Fiquei surpresa com a minha interpretação tão diferente, mas essa é justamente uma característica da arte: entregar os sentidos para o receptor. Apesar disso, certamente aquele estilo apresentava marcas e influências distinguíveis, que eu desconhecia. No dia seguinte, vi no Facebook o comentário do Hique Gomez (ator, cantor e pai da Clarah Averbuck), dizendo que Estrella magnetizou a plateia, e foi mesmo o que ela fez, chegando ao ápice com sua homenagem ao Brasil, ao final, cantando e dançando um samba e trazendo sambistas e seus pandeiros para o palco – ela é fã de Caetano, Bethânia e Elis Regina. Mas foi a forma como Hique conceituou a música apresentada pelo grupo que me chamou a atenção: “Flamenco puro: passado e futuro”, eis aí uma resposta para o conflito sobre o gênero interpretado por Estrella Morente e seus companheiros de palco.
No website da estrela Estrella, podemos confirmar uma importantíssima informação: ela é filha, sobrinha, neta de cantores, bailarinos, maestros, instrumentistas de flamenco. Ou seja: em sua própria origem, está a cultura do flamenco. Certamente isso tem relação com a primeira parte da expressão usada por Hique: “passado”. Desse passado, Estrella trouxe aquele canto original, que parece um lamento – a melancolia, a soléa, que, como disse Estrella em entrevista, tem influência do fado. Tradicionalmente, o flamenco era isto, o canto andaluz, e foi daí minha sensação de viagem no tempo, para algo primitivo e essencial, que toca, até sem palavras, a alma da gente. Palmas e guitarras vemos muito nas representações contemporâneas, que incluem as castanholas, mas isso também não é algo que possa ser chamado “novo”. Já o conceito de moderno, como foi qualificado o espetáculo, pode definir aquilo que tenha surgido da modernidade, que remonta ao período entre os séculos XVI e XVIII. Assim, o próprio flamenco, como mistura cultural, é moderno!
O fato de se tornar um espetáculo, e não uma reunião de membros de uma comunidade espanhola, por si só já configura essa desconstrução de um gênero “original”, e assim toda uma grande parte da cultura moderna, mesmo as ditas nacionais ou identitárias, perderia seu sentido de pureza ilusória. A quebra da tradição talvez esteja mesmo no fato de que é impossível ao artista manter-se apartado do mundo que o cerca, insensível ao que o toca diante da criação, isento de sua bagagem. Os jovens membros do grupo, incluindo a cantora de 32 anos, trazem consigo o vigor que o próprio flamenco admite seja incorporado. Sejam as tecnologias que permitem a configuração do som ou das luzes – o novo –, até as novas práticas instrumentais, talvez herdadas de outros gêneros e tendências, na linha fragmentada da vida – o futuro –, tudo serve, ali, para a celebração da tradição espanhola. Se os jovens guitarristas flamencos dedilham sob a influência do rock, ou se o folclore brasileiro é matéria de inspiração, nada disso é estranho ao que fizeram os flamencos do passado, afinando as cordas dos violões com a imaginação perpassando por todos os sons do mundo, aqueles que conquistavam territórios, atravessavam fronteiras, criavam outras nações.
O que eu ouvi foi a originalidade do flamenco, distinguível no canto, nas guitarras, nas palmas, no baile: passado e futuro, tradição e modernidade, herança e renovação. E talento, essencial para a arte. Mais: a alegria do pertencimento a uma cultura que se ama, respeita e cultiva, que é o elemento contagiante, a chama que desperta o reconhecimento do público como algo vivo, humano, essencial. Como a cultura...¡Olé!
* Ana Cláudia Munari é Doutora em Letras

Ninguém falou que seria fácil por Carolina Garcia

Ninguém falou que seria fácil*
Olhando as postagens deste blog, resolvi escrever minhas impressões sobre Ninguém falou que seria fácil para abrir uma conversa virtual...Vamos lá!
Ao entrar na sala de espetáculos, vibra a sensação de que o teatro é o ambiente do encontro original entre o espectador e o ator. Um espaço autêntico está à disposição de nossos olhos. Já de início, cortinas abertas e palco composto por objetos cuidadosamente selecionados para nos lançar à ficção teatral, sem perder de vista as referências cotidianas, apresentam um funcional casamento entre a criação de iluminação (Tomás Ribas) e a composição da cenografia (Aurora dos Campos). Na cena, um homem, assim como nós, estabelece sua primeira conexão com as pessoas que estão chegando, na expectativa de que algo aconteça. Rompendo as conversas da plateia, aparece uma mulher que principia uma discussão de casal absurda e convincente. Finalmente, surge o último componente de nossa tríade e, então, ocorre uma vertiginosa sequência de desconstrução fluida das personalidades. Entre diálogos e narrativas de construção do ambiente imaginário, são abordadas questões familiares e relativas à própria comunicação .
Desta forma, com uma dramaturgia contemporânea autoral e inteligente, Felipe Rocha estabelece um jogo de relações humanas e sobreposição de papéis do cotidiano, que leva a plateia à cumplicidade e identificação com os atores, os quais conduzem o texto de forma dinâmica e musical. Stella Rabello, Renato Linhares e o próprio autor, Felipe Rocha, num tom despojado, compartilham uma brincadeira de convenções teatrais, envolvente, divertida e com uma sensualidade que vai além da discussão de gênero e idade.
Percebo, na direção de Alex Cassal, uma escuta generosa. Ele sabe unificar as forças criativas ao mesmo tempo em que permite a liberdade de sua eficiente equipe.
A ação teatral contempla uma hora e meia de duração, a qual, talvez, pudesse prescindir de quinze minutos para mantermos a sensação de ter perdido alguma coisa ao invés da sensação de ter visto coisas a mais.
Mesmo assim, fico com a boa impressão de que esta obra permaneceu comigo ao longo do festival para além do teatro, e foi responsável por encontros e surpresas memoráveis.
Prestem atenção nesta turma: Individual ou coletivamente, eles ainda vão produzir outras boas e instigantes obras artísticas!
* Carolina Garcia é atriz

A última gravação de Krapp por Rodrigo Monteiro

A última gravação de Krapp*
O problema maior das produções dirigidas por Bob Wilson, diretor americano cuja fama alcança vários pontos diferentes do planeta ao longo dos últimos quarenta anos, é o fato de que ele aparece demais. Em outras palavras, suas marcas são tão fortes, tão vivas, tão exuberantes que torna possível pensar que todo o resto, e, nesse caso, o resto é Samuel Beckett, é apenas um motivo, uma desculpa, algo dispensável. O resultado é que cristaliza-se a certeza: viu uma peça de Bob Wilson, viu todas.
Krapp’s last tape ou A última gravação de Krapp, escrita em 1957, é considerada a peça mais autobiográfica do dramaturgo irlandês, autor de Happy days, espetáculo participante do 17º Porto Alegre em Cena, também dirigido por Bob Wilson. Nesse texto, como nos outros, o tom trágico também pode ser visto. O diferencial é que não se tratam de personagens presos ao próprio destino (Fim de partida), ao próprio tempo (Esperando Godot) ou presos à própria condição (Dias felizes). Aqui o personagem está preso ao próprio presente e sem a possibilidade de mudar nada no seu passado. A palavra last (última) no título tem dois sentidos: a última gravação pode informar que é a gravação mais recente, mas também pode afirmar que não haverá outras. Krapp, o personagem protagonista e o único que se vê em cena, talvez diante da morte, ou não, tem o costume de, no dia do seu aniversário, fazer uma gravação em que se narra os acontecimentos daquele ano. Na peça, está-se no aniversário de sessenta e nove anos de Krapp. E, mais uma vez, ele vai em busca de si próprio nas antigas recordações gravadas em velhos rolos (spools).
(Para os interessados no texto, é possível fazer relação entre esse personagem e o seu homônimo em Eleutéria, primeiro texto de Beckett, escrito nos anos 40).
Bob Wilson mantém o tom intimista do texto quando cria uma chuva muito forte a cair do lado de fora do escritório. O som é altíssimo e o jogo de luzes está excelentemente posto, de forma, que o clima realista, embora com significantes bastante distantes do real, está plenamente estabelecido. O cenário, no entanto, é bastante impessoal: deixa de ser uma única mesa em que o personagem se encontra com várias versões de si próprio, em especial aquela em que ele completa trinta e nove anos, e passa a ser uma espécie de repartição pública com várias mesas, uma grande prateleira, muitas luminárias. O tragicomicidade clownesca da máscara branca e do nariz roxo, rubrica do texto, dá lugar a um personagem estilizado e que parece ser a própria máscara, ou seja, a sua inexistência. Os movimentos elípticos tomam o lugar de várias passagens do texto que não aparecem na versão de Bob Wilson que, nessa montagem, também é o ator. Para quem não conhece o texto, fica difícil estabelecer relações entre as memórias gravadas na fita ouvida e aquele que a ouve. Considerando que a encenação dura pouco mais de setenta e cinco minutos, boa parte deles, empregados na exploração da iluminação e do recurso do som de chuva, o interessante encontro em Krapp de sessenta e nove anos com os antigos Krapp não acontece. Em substituição, está um homem ouvindo uma gravação de si mesmo há muitos anos e nada muito mais além.
Krapp’s last tape, espetáculo participante do 18º Porto Alegre em Cena, é uma maquiagem que deixa ver muito pouco do rosto ao invés de embelezá-lo, realçá-lo, abrilhantá-lo. Pela sua importância, Bob Wilson é bem vindo à capital gaúcha, mas vale dizer que Beckett também o seria.
* Rodrigo Monteiro é crítico teatral

A última gravação de Krapp por Marcelo Adams

 Bob não é bobo*

Bob Wilson, este brilhante encenador norte-americano que, felizmente, continua em plena atividade, dirigindo espetáculos inesquecíveis e provocadores ao redor do mundo, sabe que nossos tempos encontram perfeita representação na obra teatral de Samuel Beckett. Afora as peças longas (mais conhecidas) de Beckett, como Dias felizes e A última gravação de Krapp, sonho em ver encenados por Wilson textos mais curtos e de ainda maior complexidade, como Words and music, Cascando, Not I, Footfalls (a lista se estenderia por vários outros títulos). Já que, por enquanto, isso é matéria de sonho, nos deleitemos com este A última gravação de Krapp, apresentado no 18º Porto Alegre em Cena.
É possível ser purista ainda em nossos dias, defendendo esta ou aquela maneira de encenar um texto? A resposta é tão óbvia que não merece réplica. O único compromisso que uma encenação deve ter é com sua coerência interna e, naturalmente, com sua efetiva comunicação. Quando escrevo comunicação (obviamente que nos casos em que ela é buscada), quero me referir à possibilidade que a encenação tem de apresentar um discurso relevante, impactante, esteticamente marcante. É o caso de A última gravação de Krapp. Esqueça aquela estética cinzenta, encardida, que se costuma associar a Beckett. Bob Wilson nos apresenta o aço, o plástico. Esqueça o catarro, Bob nos entrega a assepsia. Krapp faz 69 anos e ouve velhas fitas onde, 30 anos antes, gravara suas impressões sobre acontecimentos envolvendo uma mulher. 30 anos se passaram, Krapp não é mais o mesmo, todas as suas células se renovaram, ele é outro ser, inteiramente distinto daquele do passado. A única coisa que identifica esses dois Krapps, distantes tantas décadas no tempo, é um nome: Krapp (e note-se a ironia de Beckett, crap, em inglês, é merda).
Bob Wilson como ator vive uma figura desumanizada, quase um robô-velho que surpreende-se com sua rendição, no passado, ao amor. De antíteses a encenação se serve: o visual clean, contemporâneo, da cenografia, opõe-se à ultrapassada tecnologia do gravador de rolo. Imagens evocativas do afresco A criação de Adão, de Michelangelo, colocam Krapp como o primeiro (e último dos homens), em conflito com o Grande Criador. Deus expressa-se com trovões ensurdecedores, relâmpagos e chuva abundante. Só resta a memória, e é a ela que Krapp recorre para fazer passar o tempo. Em síntese, a dramaturgia de Beckett tem um tema recorrente, que é o da espera e, em sua obra tardia, a memória e a impossibilidade de preservá-la.
Visualmente, o espetáculo é arrebatador, perfeito no uso do manancial técnico. Não se enganem os desavisados: o perfeccionismo estético de Bob Wilson encobre uma profunda e genial reflexão sobre o Homem. Bob Wilson não é bobo.
* Marcelo Adams é ator, diretor teatral e dramaturgo, professor do curso de Teatro: Licenciatura da UERGS