segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Eu estive aqui por Rodrigo Rocha



Ó... deixa eu falar! Não entendo muito de dança, ok? Entendo o que gosto e o que não gosto, e sei avaliar o que está posto em cena... Afinal, a força do meu trabalho me ensinou algumas coisas, certo? Então vamos lá!
Acabo de chegar do espetáculo Eu estive aqui da Porto Alegre Cia de Dança e cara... Poderia falar horas sobre o que vi e senti... Mas vou me deter aos fatos que mais me saltaram aos olhos:
Primeiro: Um espetáculo 100% monocromático e monocórdico. Explico, pois é simples. Todo ele concebido em preto e branco e com uma (ou várias) músicas que ficavam repetindo, repetindo, repetindo até trocar. Falando assim, é um espetáculo chato né? Não! Pelo contrário, um espetáculo colorido por coreografias limpas, bem executadas, emocionadas e emocionantes, que te dão uma vontade louca de sair repetindo os movimentos.
Segundo: Uma iluminação magnífica do Maurício Moura, que não é de hoje se sabe entender bastante de iluminação para dança, mas que a cenografia aprontou um desafio para ele no momento em que fechou a caixa cênica nas laterais. O pouco que sei de iluminação para dança e que aprendi com o próprio Maurício quando ele fez a luz de Exercício sobre a cegueira, espetáculo que fiz com Camilo de Lélis, é que iluminação para dança deve priorizar as laterais para dar volume aos corpos. Bem, com a caixa cênica fechada dos lados, é impossível, mas mesmo assim, a luz estava linda. Toda em branco e resistência, mas que valorizou e muito os bailarinos e as coreografias.
Terceiro: Movimentos precisos, simples e limpos e de um bom gosto primoroso que dão a sensação de serem banais. Portagens simples e silenciosas, limpas e bem executadas, corpos vivos em cena e a sensação nítida de que daqui a pouco um deles ia sair voando pelo palco e aterrisar na plateia.
Sempre digo ter pavor do tal de "pós-dramático" pois quando vou ao teatro quero ouvir histórias e não ter sensações, pois se é para ter sensações, vou a um espetáculo de dança... Bem, seguindo essa lógica criada por mim, tive várias sensações lindas assistindo Eu estive aqui. Outra lógica minha, é que o espetáculo é bom quando eu sinto vontade de estar em cena. Bom, seguindo essa outra lógica criada por mim, é um ótimo espetáculo que eu recomendo 100%. Deve ser assistido, até mais de uma vez se possível.
Bravo POA Cia. de Dança! Lindo trabalho.


* Rodrigo Rocha é ator e produtor teatral

Vencedores do 8º Prêmio Braskem em Cena

Em cerimônia realizada na noite de 23 de setembro, no Theatro São Pedro de Porto Alegre, foram entregues os troféus Braskem em Cena. Além do troféu, os vencedores recebem um prêmio em dinheiro (R$ 20.000,00 para o Melhor Espetáculo e R$ 3.000,00 para as categorias de Melhor Direção, Ator, Atriz e Destaque). A comissão julgadora foi formada pelos jornalistas Alice Urbim, Luiz Gonzaga Lopes, Michele Rolim, Newton Silva e Vera Pinto. Os vencedores foram:
 
NATALÍCIO CAVALO
Melhor Espetáculo pelo júri oficial
 
 
CAMILA BAUER
Melhor Direção por Estremeço
 
 
HAMILTON LEITE
Melhor Ator por O baile dos Anastácio 
 
 
 
THAINÁ GALLO
Melhor Atriz por A noite árabe
 
 
RAUL VOGES
Prêmio Destaque pela cenografia de Casa das especiarias
 
 
O BAILE DOS ANASTÁCIO
Melhor Espetáculo pelo júri popular
 

Com a palavra Dilmar Messias, o padrinho do 20º Porto Alegre em Cena


Agradeço imensamente a homenagem  que o 20º Porto Alegre em Cena me prestou concedendo-me a lisonjeira distinção de Padrinho desta edição, no momento em que completo 40 anos de direção teatral.
Sou um homem privilegiado, e o sou ainda mais desde que escolhi ou fui escolhido pelo ofício que abracei.  Quando entrei no Curso de Arte Dramática tive como  mestres Luiz Paulo Vasconcellos e Maria Helena Lopes; como primeira referência, o Província do Luiz Arthur e o Arena do Jairo de Andrade; como colegas  e amigos Sandra Dani, Irion Nolasco, Maria Lucia Raimundo, Lurdes Eloy, João Pedro Gil, Inês Marocco, Carlos Cunha, Leo Ferlauto e Camilo Bevilacqua. Tive a oportunidade de conhecer o Gerd Bornheim, o Alziro Azevedo e de conviver com os dramaturgos Ivo Bender, Carlos Carvalho,  Caio Fernando Abreu, Vera Karan, Julio Conte, Julio Zanotta e com os diretores Nestor Monastério, Irene Brietzke, Paulo Albuquerque, Luciano Alabarse, Paulo Flores, e Camilo de Lélis, que me inspiraram fortalecendo minhas convicções. Trabalhei com atores como os saudosos Luiz Carlos de Magalhães, José Gonçalves e Leverdógil de Freitas. Tenho tido a sorte de trabalhar com inesquecíveis e talentosos atores, atrizes, acrobatas e palhaços e conhecer outras tantas queridas figuras dos palcos e picadeiros que faltaria espaço e tempo para mencioná-los. Vejo com alegria e otimismo uma nova e vibrante geração já ocupando seu espaço na cena gaúcha, com  quem espero dividir ainda um bom tempo, mesmo sabendo das vicissitudes que  teremos que enfrentar,  mas este não é o lugar nem o momento para lembrá-las.
Sou um homem privilegiado, conseguimos plantar no bairro Bom Jesus um acalentado projeto chamado Circo Girassol - o circo para todos, e reunir um grupo de artistas e colaboradores especialmente dedicados: o Tuta, Jé, Anderson, Diego, Andréa, Hálida, Walter, Deise, Carol, Gelson, Stone, as Simones Rorato e Rasslam, Yanto, Musklinho, Farinha, Psico,  Rodrigo, Silvia, meu irmão Darcilio e minha mulher Débora Rodrigues.
Agradeço a lembrança, mas a destacada homenagem deste 20º Porto Alegre em Cena devemos, sinceramente, à grande figura deste festival, o seu organizador nestes anos todos: o querido amigo, sensível e aplicado diretor de teatro, Luciano Alabarse, pela sua capacidade e competência de conduzir o Em Cena durante estes 20 anos em permanente evolução, transformando-o num dos mais importantes festivais do país, respeitado e reverenciado nos grandes centros culturais. Nós artistas sabemos das imensas dificuldades que encontram aqueles que dedicam seu tempo em benefício das causas coletivas, seja pela incompreensão e pelo individualismo de alguns, seja pela precariedade dos projetos e propostas de fomento. Mas a despeito das dificuldades, este evento se mantém como resultado de um grande esforço, de absoluta dedicação e superior generosidade do Luciano.  
Em tempo: Ontem fui presenteado com a bela atuação da Sandra Dani em Oh os belos dias. Acompanho a sua carreira desde o início, fomos colegas no Curso de Arte Dramática. Sandra sempre foi uma atriz exuberante, de uma energia e entrega exemplares, por isto admirável. Neste espetáculo tive a oportunidade de ver a Sandra, como num passe de mágica, transportar toda a sua energia, para uma personagem quase imóvel, enterrada até a cintura e com contenção esmerada, desvendar a complexidade do texto palavra por palavra, controlando tempos e intenções com uma intimidade invejável. Fiquei tomado de grande emoção ao vê-la tão plena em seu ofício.

Esta criança por Natasha Centenaro


Esta criança: as relações familiares no espaço da casa
 
            É quando se entra em casa, que se descobre como realmente é o cotidiano de uma família, como são as relações das pessoas, entre si, e com os cômodos, com os móveis, os objetos. Nesse momento, é revelado o psicologismo de cada indivíduo dessa família, num microcosmo. Conforme Gaston Bachelard, em A poética do espaço (1960), toda ação está contida no espaço, mas para que essa se torne efetiva, é necessário permitir à imaginação que recorra ao inconsciente e busque evocá-lo, pois não se trata de uma descrição apenas. Para o autor, a casa, à primeira vista, é um objeto que possui uma geometria rígida, cuja linha reta domina. Funcionaria, assim, como um objeto resistente às metáforas de acolhimento do corpo e da alma. Essa ligação com o humano, entretanto, acontece de imediato, desde que se entenda a casa como um espaço de conforto e intimidade. A casa é um corpo de imagens próprias que garantem aos seus moradores razões ou ilusões de estabilidade. Ela tem sua verdadeira alma e psicologia. Esse estado de alma da casa pode refletir diferentes estágios, dentre esses, a casa-sofrimento pode ser percebida como extensão do corpo do próprio indivíduo refletindo tal espírito.
            As dez cenas curtas, esquetes, ou quadros, de Esta criança, originalmente em francês Cet Enfant, de autoria de Joël Pommerat, acontecem num espaço que poderia encaixar-se na definição de casa de Gaston Bachelard, com uma geometria rígida, mas que abriga a intimidade daqueles 22 personagens e possui alma própria. O retângulo vazado que avança às primeiras filas de assentos da plateia está posto de forma lateral, para que se possa enxergar o interior desta sala de apartamento, quarto de casa, sala de um hospital ou necrotério, hall de um edifício. Ao público é proposto que se aviste tudo assim, lateralmente, cujo olhar enviesado fica na dúvida se deve entrar de vez e penetrar à intimidade desses personagens ou ficar na soleira da porta, no limiar da invasão, do externo para o interno. Os próprios personagens movem-se com essa dinâmica, do exterior para o interior, do interior para o exterior, às vezes sem entrar totalmente, às vezes sem poder sair. As paredes pintadas de verde, como as paredes de muitas residências que eu conheço, os móveis, poucos, a poltrona, algumas cadeiras, que são modificadas de lugar conforme a cena (a sala de espera do necrotério, a sala da casa, o corredor do prédio). De maneira curiosa e ainda mais proposital ao efeito da alma desta casa, os vãos por onde a luz entra estão dispostos como se fossem janelas fixadas no teto. A alma desta casa acontece na peça e é ressaltada pelo cenário de Fernando Marés e pela iluminação, num jogo instigante e cativante de luz e sombra, de Nadja Naira (que faz também a assistência de direção). E é por isso, que esse espaço (a casa-retângulo) se transforma no elemento real buscado pelo texto de Pommerat, conquistado pelas atuações do elenco Giovana Soar, Edson Rocha, Ranieri Gonzalez e Renata Sorrah, e pela direção de Márcio Abreu.
            A busca pelo real. Sem reproduzi-lo. É o objetivo do texto do autor francês e de muitos dos trabalhos da Companhia Brasileira de Teatro, sediada em Curitiba. E que os porto-alegrenses puderam assistir em outras duas ocasiões, em 2012 no Festival Palco Giratório, com a peça Oxigênio, e neste ano, na Cena Paranaense do Festival do Teatro Brasileiro, com Vida, além da reapresentação da primeira. Assim como o texto do dramaturgo francês também é conhecido do público da capital, pois foi encenado pela Cia Stravaganza com Estremeço, ambos traduzidos pela atriz Giovana Soar (o de Esta criança com a colaboração de Lilian Ruth de Sá). A confluência desta procura pelo real parece ter encontrado o ápice nesta montagem. Ainda que sejam dispensados certos recursos característicos da CBT, como o teatro narrativo e a ausência irrestrita da quarta parede, ainda é possível perceber os momentos de interferência e de quebra narrativas, quando, por exemplo, os atores Ranieri Gonzalez e Edson Rocha cantam (uma das marcas da companhia: o uso da música ao vivo), antes de começar outro fragmento, ou nas cenas em que o elenco fala o texto voltado diretamente para o público, ou então, quando a luz, como quinto integrante deste elenco, ilumina a plateia e tenta, com isso, invocar o sentido de alteridade/identidade provocado por essas relações familiares e evocar lembranças: enxerguem-se, olhem-se, avistem-se, é você em casa, é a sua casa, você é mãe, pai, filho.
            A mãe que quer a felicidade e o melhor para o seu filho, esta criança tem que ser feliz, descontando de si mesma as próprias frustrações com a vida; a mãe que entrega o seu filho para que pais com melhores condições financeiras e, aparentemente, psicológicas, possa cuidá-lo; a assistente social que tenta resolver os conflitos de um filho que agride o pai, o qual não pode trabalhar; a mãe que se desculpa com a filha pelo tratamento e as cobranças; a mãe que busca no filho a solução para os seus problemas e a filha que não entende o pedido de um pai e a sua situação. Relações cotidianas. Vivenciadas em cena e fora dela. E por mais que a previsibilidade do desfecho do quadro em que as duas mães estão no necrotério para identificar o suposto corpo do filho de uma delas, o texto de Pommerat atinge o grau máximo de perturbação e revelação do que pode a alma de um indivíduo: o alívio por não ser o meu filho e o pavor por ser o filho da outra. É o riso. Para, em seguida, vir o pranto. Quase que simultâneos.
            Atuações que beiram o real, sem ser realistas. Se o exagero do riso dessa mãe ou o excesso dos gritos da mulher ao parir e da violência do filho para o pai contrastam com os gestos contidos, aprisionados, da mãe na poltrona e da classe, elegância, do casal ao receber a doção do filho pela progenitora, indicam o caminho escolhido pela direção de Márcio Abreu, em que nada é supérfluo, nem a entonação trabalhada ou a mão fechada. Os quatro atores se revezam nos papeis, em opções de equilíbrio (deixando vazar ou não permitindo tal acesso) os conflitos internos, as psicologias, as intimidades e as almas desses pais, mães, filhos. Não é possível destacar uma cena ou um intérprete, pois é o conjunto que prevalece. Embora, as duas cenas que, particularmente, a mim, motivaram-me a vasculhar o inconsciente e fixaram-se como novas referências imagéticas, foram a do parto e a da identificação do corpo. Eu sei que, ao me perguntar sobre partos e necrotérios, a minha mente acionará, instantaneamente, essas duas imagens. E ainda escuto: “Doutor, e se essa criança não quiser sair?”. Como eu tive medo de que, talvez, essas observações não quisessem saltar para o papel.
            Se, para Bachelard a casa pode garantir razões ou ilusões de estabilidade, o texto de Pommerat e a montagem da CBT parecem reafirmar esse discurso. As razões para a estabilidade, em certos momentos, não passam de meras ilusões para aqueles personagens. As paredes verdes, o teto e suas janelas, o aparente conforto da residência, a estabilidade física, a arquitetura rígida, as formas retas, negam a instabilidade emocional, as dúvidas, os desconfortos das relações familiares. Por outro lado, a casa também pode ser a evidência desse sofrimento, a verdadeira casa-sofrimento de Bachelard, e uma fenda surge na casa-retângulo, a parede do fundo se abre, o cenário é movido, já não há mais um ângulo reto entre as paredes, há um espaço aberto, uma lacuna, uma brecha, por onde essa relações de pais, mães, filhos e filhas escorre. É quando o filho fugiu da mãe dominadora. E se esvai pelo espaço. 
* Natasha Centenaro é mestranda em Letras – Escrita Criativa (PUCRS), jornalista e escritora

domingo, 22 de setembro de 2013

Sobre o conceito da face no filho de Deus por Edelcio Mostaço

 
Castellucci e o juízo de Deus
A cena é uma porrada. Desferida bem no centro do rosto, naquele ponto entre os olhos que os místicos costumam julgar como do terceiro olho. O espectador fica aturdido, sem respiração, ao final dos sessenta minutos de Sobre o conceito da face no filho de Deus, uma das emblemáticas encenações de Romeo Castellucci para a Socìetas Raffaello Sanzio (2010) apresentada como atração maior da vigésima edição do Porto Alegre em Cena.
Como outras criações da companhia, também essa coloca em cena não um mero jogo teatral, mas um teorema ontológico complexo, cuja substância conceitual deve ser perquirida pelo espectador. São apenas três cenas: na primeira, a mais longa, um filho dedicado cuida de um pai decrépito que se desfaz em fezes; na segunda, crianças jogam granadas contra a figura de Cristo; e a derradeira, quando essa mesma figura se auto dissolve.
As cenas não possuem advérbios ou conjunções cênicas interligando-as ou subordinando-as, de modo que subsistem isoladas. O que, por si só, resume o aspecto enigmático do conceito possível, descortinando possibilidades interpretativas as mais instigantes. A primeira cena (pode-se dizer quase a totalidade do espetáculo, pois ocupa 55 minutos) oferece o fino ambiente de um apartamento de um executivo bem sucedido, imaculadamente branco, todo branco. Atrás, em desmesurado tamanho, um recorte da face do Jesus Cristo pintado por Antonello da Messina (c.1430-c.1479). O pai é nele introduzido através de dois maquinistas que o amparam desde as coxias e o sentam no sofá branco onde assiste TV com dois enormes fones de ouvidos também brancos. O filho, ao entrar, logo começa o diálogo em torno da doença que o acomete, dos remédios que tem de tomar, dos cuidados que deve observar depois que ele sair. Ele traja impecável terno e gravata e confere recados no celular.
O velho, contudo, reclama que fez cocô. O rapaz, com a benemérita alma daqueles que nasceram para reverenciar os mais velhos, tira o paletó e inicia um longo ritual de troca de fraldas do vetusto senhor. Com variações de intensidade e com crescente angústia entre ambos, esse mesmo ritual de purificação ocorre por mais três vezes, a cada um deles aumentando a diarreia do pai, até o palco ficar transformado, literalmente, numa enorme poça de matéria fecal. A interpretação dos atores é acentuadamente naturalista, bem como os recursos cênicos nela empregados, o que leva a plateia a experimentar dois sentimentos contrários: o asco e o maravilhamento.
O primeiro resulta dos momentos iniciais, quando se constata o que a peça vai abordar; o segundo advém daquele sentido freudiano elementar de fascínio pelos excrementos e, do ponto de vista cênico, do jogo de teatralidade que Gianni Plazzi (o pai) e Sergio Scartella (o filho) imprimem às criaturas que lhe foram destinadas por Romeo Castellucci, autor e encenador desse teorema.
Dada a lentidão da cena em seu ritmo natural, a plateia tem tempo suficiente para procurar em seus arquivos mentais outras atribuladas relações pai/filho, tais como a Carta ao pai, de Kafka, ou os soturnos episódios de Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski. É possível, é claro, regredir à Bíblia e dela selecionar passagens escolhidas; ou ainda evocar o pantagruélico Gargântua, assim como outras figuras que a imaginação de cada qual mobilizar. A cena é construída com tal precisão que não deixa de conter alusões, claros, entradas possíveis ao devaneio dos espectadores.
Para a teoria do teatro, não há como deixar de evocar Artaud e seu mais que profético Para acabar com o juízo de Deus, uma vez que seus princípios centrais informam a poética de Castellucci em várias acepções. “A palavra teatro soa (...) para mim (...) como uma palavra de herança bizantina e inflexível: ‘iconoclastia’”, escreveu ele em “Os peregrinos da matéria”, conjunto de textos onde expôs suas ideias sobre poética cênica (CASTELLUCCI, Romeo e Cláudia. Les pèlerins de la matière. Besançon: Les Solitaires Intempestifs, 2001, p. 99). Iconoclastia esta que vai se aprofundando ao final de sua realização. Na segunda cena um garoto entra em cena com uma bola de basquete e uma mochila. Deposita a bola ao lado, abre a mochila e dela vai retirando granadas para jogar contra a imagem de Cristo. É seguido por outros colegas, até o palco restar forrado daqueles petardos. Concluída a agressão, eles abandonam o palco com a mesma reverencial atitude com que entraram. É então que a cena final descortina todo um refinado procedimento cênico:  a figura de Cristo começa a escorrer tinta, borra-se toda, agita-se, contorce-se até restar literalmente despedaçada e, por trás, revelar uma frase em inglês, profusamente iluminada: you are my shepherd (você é o meu pastor).  Há, contudo, um derridiano not após o verbo, sem iluminação, o que altera e introduz a diferença ao sentido bíblico ali depositado.       
Dialética ou regime?
Como equacionar as três cenas? De um ponto de vista mais tradicional, poderíamos ser levados a tentar a dialética: tese, antítese e síntese completando seu ciclo revolucionário e proponente de uma nova espiral para o real. Se a opção, entrementes, recair sobre Lacan, os três registros da psique: o real, o simbólico e o imaginário enquanto irredutível equação da subjetividade. E se tentarmos outras lógicas, talvez seja possível evocar a desconstrução, onde teríamos uma parábola, um símbolo e uma epifania, sucessão de regimes narrativos sugeridos pela arquitetura de cada cena.
Em suas declarações, Castellucci é vago, impreciso, deixa ao espectador fazer seu jogo mental.  Razão pela qual a teatralidade me parece um percurso menos acidentado e mais condizente com sua natureza. A primeira cena contrapõe o naturalismo das interpretações ao simbolismo da cenografia, de onde resulta um choque semântico interessante entre fundo e forma: ainda que com refinados aparatos técnicos de apoio (fraldas, cadeira de rodas, remédios etc), o homem não conseguiu ainda resolver ou curar um estágio elementar de sua fisiologia anômala: o controle intestinal que o acomete na decrepitude. Isso impõe ao filho um caritativo devotamento, uma irrevogável missão ética da qual não consegue se safar. Tal interpretação encontra apoio no gesto final do rapaz, ao aproximar-se da imagem de Cristo e beijar-lhe a boca. É não apenas a reverência diante do divino, como seu reconhecimento e aquiescência. Razão pela qual, a cena adquire todos os contornos da parábola.
A segunda cena efetua um esboço quase épico: o garoto entra, deposita sua bola, com gestos meticulosos e quase ensaiados retira uma a uma as granadas e as arremete contra a imagem ao fundo. Secundado pelos demais que vão adentrando, as ações se repetem com inquebrantável regularidade, materializando um símbolo: a atual onda de manifestantes e black blocs que se alastra pelo mundo, a insatisfação contra tudo e contra todos, mas sobretudo contra a ordem instituída que Cristo imanta como ninguém. É a iconoclastia em seu ponto ótimo, porém burro e fundamentalista.
A terceira é um prodígio barroco: três maquinistas são necessários para fazer a enorme figura estampada em plástico branco suar tinta e borrar-se, contorcer-se e, pouco a pouco, se desfazer em pedaços, agudo emprego de recursos próprios ao teatro de máquinas, seguido da inconfundível expressividade digna de grandes musicais e shows do burlesco: a frase profusamente iluminada por incontáveis lâmpadas faiscantes, uma epifania cênica das mais potentes.  Todos esses recursos não são vagos nem imprecisos. Foram buscados com meticulosa precisão pelo encenador e evidenciam signos historicamente legíveis na história do teatro ocidental, a enciclopédia disponível que a cena contemporânea utiliza.
É nesse sentido que as cenas obedecem a um regime narrativo, encaixam-se como peças de um puzzle que, pouco a pouco, vai revelando sua face – a da disseminação -, os múltiplos atributos e qualidades da face divina. Convém não esquecer que fazer face possui diversas acepções: estar voltado para; ficar em oposição a; não fugir frente ao perigo; enfrentar; dar a solução ou o remédio a algo; arcar com os custos de;  o que torna o conceito de Castellucci multívoco e filosoficamente matizado, longe das simplificações.
É o que me é possível concluir três dias após a ressaca provocada pelo espetáculo, tal sua densidade e impacto sobre o terceiro olho.  

* Edelcio Mostaço é professor de Estética Teatral na Universidade do Estado de Santa Catarina

Viúva, porém honesta por Elisa Heidrich


Viúva, porém honesta. Peça psicológica do nosso grande dramaturgo, Nelson Rodrigues, definida por ele como "Farsa irresponsável em três atos". Para falar a verdade, acredito que este não é um de seus melhores textos, ou melhor, não é daqueles que escreveu com sua maior excelência. Trata-se de um texto despreocupado, sem grandes fidelidades às regras de dramaturgia. Um texto descompromissado, onde o autor satiriza a sociedade e seus valores, desmoralizando a figura do crítico teatral (que tanto importunava suas obras) e colocando em cheque instituições como a família, a medicina, a psicanálise e o jornalismo.
O enredo é simples, porém com idas e vindas no tempo, utilizando o recurso do flash back para contextualizar a trama. A situação inicial apresentada é a morte prematura do marido da filha (de apenas quinze anos) do diretor de um importante jornal do país, atropelado por uma carrocinha de Chicabon. O pai da menina tenta convencê-la a seguir sua vida normalmente, deixar o luto e casar-se novamente. Para isso, contrata uma ex-prostituta, um psicanalista e um otorrinolaringologista, todos charlatães. Existe uma reconstituição da história do casamento da menina, Ivonete, com o crítico de teatro, Dorothy Dalton, homossexual e ex-detento de uma casa que abriga menores. Tal casamento só acontece por conta de um falso diagnóstico de gravidez dado à menina. Uma vez casada, Ivonete trai seu marido quatro vezes na sua noite de núpcias. Depois de viúva, promete que nunca mais irá sentar. Trair um vivo tudo bem, mas desrespeitar um morto, jamais. Aparece o personagem Diabo da Fonseca, que acaba por ressuscitar Dorothy Dalton e, em troca, desposar Ivonete.
Tive uma boa surpresa ao assistir ao espetáculo do grupo Magiluth de Pernambuco na sua versão para o texto de Nelson. O espetáculo é interessante, surpreendente e divertido do início ao fim. Ao entrar no teatro já fui surpreendida ao perceber que o grupo pernambucano propunha uma encenação diferente da maioria dos espetáculos guiados por textos do consagrado dramaturgo, Nelson Rodrigues. Atores em cena conversando com o público que entrava, cadeiras com todos os adereços necessários para contar essa história ao público. Talvez um cenário já visto em diversas encenações contemporâneas, porém, inovador neste contexto. A encenação simples conversa muito bem com a proposta farsesca bem investida pelo grupo Magiluth.
A escolha por não determinar um personagem somente para um ator é bem vinda e dá dinâmica ao espetáculo, as trocas constantes de personagens contribuem para a proposta farsesca de Nelson Rodrigues e também do grupo Magiluth. A escolha dos adereços usados para representar os personagens nos diferentes atores é acertada uma vez que seguem a simplicidade do cenário e contribuem para trocas rápidas, vez que outra propositalmente mal executadas. O elenco é integralmente masculino, o que já traz comicidade na interpretação dos personagens femininos. Os cinco atores, presentes o tempo inteiro em cena, estão equilibrados e jogam bem juntos. Em alguns momentos exageram no volume de suas falas, porém nunca deixam o espetáculo cair ou criar a famosa “barriga”.
Em Viúva, porém honesta do grupo Magiluth, o espectador é, a todo momento, lembrado de que está no teatro e de que tudo que está vendo não faz parte da vida. A música escolhida para abrir o espetáculo é Puro teatro, de La Lupe, e já na sua letra diz o que o próprio título anuncia. O espectador é surpreendido com um aquecimento partiturizado dos atores junto com a música. A escolha de colocar o diretor em cena operando o som e a luz também faz parte desta concepção, assim como momentos dos atores durante o espetáculo fazendo comentários sobre a atuação.
O grupo Magiluth desenvolve pesquisa continuada de linguagem desde 2004 em Recife. O espetáculo Viúva, porém honesta foi vencedor do Prêmio APACEPE nas categorias: melhor diretor, melhor ator (Erivaldo Oliveira) e melhor espetáculo de 2012.
 
* Elisa Heidrich é atriz, Mestre em Artes Cênicas pela UFRGS 

Sobre o conceito da face no filho de Deus por Igor Simões



Sobre representações e a enorme solidão de ser humano

O Ator entra em cena com a ajuda de dois assistentes. Seu corpo vibra uma fragilidade que acompanhará o público até o ultimo segundo do espetáculo. Ao fundo e mirando o público a enorme reprodução da pintura do italiano Antonello de Messina, que durante o século XV ficou conhecido por difundir a técnica da pintura a óleo por toda a Itália. A imagem nos revela um dos mais recorrentes temas da arte até o século XIX: A face do filho de Deus. O Cristo de Messina é representação. Ele se faz verdade enquanto arte. Deus e sua existência plasmada carne no humano corpo do filho também pode ser pensado como uma representação repousada sobre um gigantesco grupo de imagens, textos, escritos, arquiteturas que lhe deram um valor de verdade. Da imagem que arrebatou os olhos do diretor italiano Romeo Castelucci, que a encontrou em um livro de arte, até a experiência que vivenciamos na noite de sexta no Theatro São Pedro, durante a segunda apresentação do espetáculo Sobre o conceito da face no filho de Deus ecoam sentidos múltiplos que seguem vivos e ressoando na mente de todos que ali estiveram. O trabalho parece cochichar constantemente a nós o fato de que por mais que tenhamos inventado um Deus, somos inegavelmente humanos. Há uma solidão inerente a toda desenho de vida do homem e essa solidão é tão aterradora que, por vezes, faz criar amores, paixões, deuses.
Não é fácil assistir ao trabalho porque não é fácil estar diante de representações de etapas da vida que se restringem ao privado, ao que é vivido entre paredes e não ganha visibilidade num mundo repleto de imagens felizes e afirmativas. As representações da velhice e suas dimensões ganharam o status de melhor idade. Atravessam nosso estar no mundo como promessas de otimismo. São representações, assim como o cristo de Messina.
Nosso primeiros Deuses eram mais humanos e nos eram mais próximos em seus desvãos. Foi a igreja romana que criou a cisão entre a alma e o corpo. Transformando a primeira em uma interioridade a ser trabalhada, e relegando ao segundo o lugar de espaço da expiação, a prisão que impedia a semelhança perfeita com o criador. As representações do catolicismo viraram práticas de vida no ocidente e fizeram do primeiro e talvez mais humano dos territórios - o corpo em todos os seus tempos, prazeres, pulsões - a prisão que nos impedia a divindade. Talvez por isso aquele corpo tão humano do velho pai e a dedicação, o cuidado e as contradições do filho são tão grandes em sentidos: diante da face do filho de Deus, o único auxilio que vem em direção ao velho pai é humano.
A plateia durante o espetáculo se comporta como em um ritual. Há uma comunhão entre as pessoas que ligadas assistem a dor da finitude e sua imensa solidão feitas com a delicadeza que o espetáculo por fim emana. Quando o rosto do ator se cobre de excrementos é possível ouvir por entre os homens e mulheres um tenso e discreto riso que soa como um oxigênio, uma saída, um pequeno e breve atenuante para a dureza do que ali se mostra.
Quando o filho se dirige até a face representada de Cristo no fundo do palco, toda o silêncio dos pedidos de auxílio não atendidos em horas de desespero ganha corpo diante do público. No escuro que se segue ainda resplandece muda e cada vez mais imantada de indagações a enorme face do filho abandonado pelo pai, jogado às dores e crucificações e tão humanamente representado. Humano em seus olhos, humano na barba, nos cabelos, humano na incapacidade de roubar aqueles dois indivíduos das dores a que estão submetidos. Humano como o homem artista que o inventou.
Logo após a emblemática cena das crianças jogando granadas na face representada do Cristo, surge diante do público aquele que pra mim é um dos momentos mais eloquentes do trabalho - entre tantos - falo de alguns breves segundo onde diante do público é formado um triângulo entre o menino, a face do filho de Deus e o velho. Três idades do homem. Toda a potência da infância, toda a possibilidade de ser e criar um Deus e toda a fragilidade da vida que inventamos no nosso território primeiro e último, o corpo.
Ao final do espetáculo, quando a imagem/representação/Cristo é destruída diante dos nossos olhos, é como se a afirmação da representação de um Deus, pastor e salvador se apresentasse em toda a sua materialidade. É como se o diretor nos afirmasse que tudo isso a que chamamos Deus é humano, é invenção, é material e por isso só também é finito. Humano, invenção, materialidade: por uma dessas manobras que a escrita permite e com a justaposição destas três palavras poderíamos muito bem estarmos nos referindo a toda a arte produzida. Ou melhor, a toda a arte como essa, que ali naquele encontro com toda a fragilidade do existir mostra que a mesma necessidade humana de suplantar o monstro da sua inerente solidão, talvez seja também o motor que anima criações como esse impactante e inesquecível espetáculo da Socíetas Rafaello Sanzio.

* Igor Simões é ator e professor de História, Teoria e Crítica da Arte na graduação em Artes Visuais- Licenciatura da Uergs

As canções que você dançou pra mim por Angela Spiazzi



TEATRO DE CÂMARA TÚLIO PIVA - Rua da República, 575, são aproximadamente 21h30min. Uma longa fila me espera, o público aguarda tranquilamente a hora de sentar-se frente ao espetáculo que cuidadosamente escolheu. Discretamente observo-as, pois me chama a atenção o número de casais, de idades variadas, mas as cabeças grisalhas são a maioria. Curioso...
Não. Os motivos pelos quais estamos ali, são distintos.
Eu como bailarina, e alguns outros mais, fomos para assistir a Focus Cia de Dança. Criada em 1996, que têm em seu currículo prêmios e aclamadas apresentações na Alemanha, Panamá e 32 cidades da França do seu espetáculo As canções que você dançou pra mim eleito pelo jornal O Globo em 2011, como um dos 10 melhores espetáculos da dança.  
E outros tantos para ouvir e sentir a música de Roberto Carlos que marca o imaginário brasileiro desde a década de 1960 com aquelas jovens tardes de domingo da Jovem Guarda.
Em cena, quatro casais são embalados por um grande pout-pourri com 72 canções interpretadas por ele, cantor e compositor, carinhosamente reverenciado como Rei.
Então, não poderia ser diferente.
As portas se abrem. Cena aberta, oito cadeiras dispostas equidistantes. Uma tênue luz azul.
Toca o terceiro sinal, os corações estão a palpitar, dá pra sentir. Entram os bailarinos aos sons dos seus sapatos, blackout.
Suspensão...
Luz e...
“Quando eu estou aqui, eu vivo este momento lindo”.
Sentados, sincronizados e tecnicamente impecáveis fazem um jogo entre o romantismo do Rei, e movimentos quebrados por vezes contundentes e velozes desta Cia contemporânea.
Por um instante... Lembrei-me das reuniões dançantes. Aquelas de garagem. As cadeiras, os tipos, as roupas. Sim há um cuidado. Figurino e cabelos cuidadosamente estruturados. Da época, sem ser antigo. Corpos esculturais.
Nada é por acaso nem há descaso. Eles às vezes são literais. Por que não? Às vezes é preciso. 
Fazer o que as palavras... O são. Simples.
Sim, há um momento em que as músicas atordoam, pois algumas são apenas frases, que por vezes parecem (digo parecem) perdidas, E então...
“Eu te proponho nós nos amarmos, nos entregarmos”.
Onde a coreografia é sustentada por um beijo sem fim. Adoravelmente incrível. Aos olhos parece tão fácil e ao coração mais ainda. A técnica apurada, e o aperfeiçoamento físico aparecem em cada momento. São impecáveis e belos. Sim, belos bailarinos. A dança continua e agora não há mais pra onde ir. Tudo já foi feito.
Então cantam pra nós.
“Olha você tem todas as coisas, que um dia eu sonhei pra mim.”
Como o Rei, eles jogam suas rosas ao público, mas de um jeitinho um pouco diferente.
Vêm a nós. Perguntam sobre amor e paixão. E...
“Ahhh eu vim aqui amor, só pra me despedir e as últimas palavras desse nosso amor, você vai ter que ouvir”.
Ao retornarem ao palco, fazem um passeio às diferentes fases do Rei. Brincam, pulam e sorriem.
O fim está próximo, o desafio de usar 72 músicas em um espetáculo com 55 minutos terá êxito. A plateia está emocionada, há choro, risos e amor.
Com um bonito pas de deux (coreografia dançada por um par) o espetáculo encerra ao som de...
“... não adianta nem tentar me esquecer, por muito tempo em sua vida eu vou viver...”
Cuidadoso e perspicaz. É o que posso dizer da direção e coreografia de Alex Neoral. Nada de espantoso, nem espetacular. Simples. Sacada de mestre, compreender e seguir o Rei.  Apenas isso.
 “...Se chorei ou se sorri o importante é que emoções eu vivi...”
Aliás, Porto Alegre em Cena. É isso, emoções. O Festival comemora 20 anos. Que batalha, que trabalheira, que teimosia, que vontade de querer fazer, de que a cidade cresça, de que o mundo mude, de mostrar que tudo é possível.
Cada espetáculo, cada intervenção, cada contato pode transformar o jeito de olhar, de perceber ou encarar a vida. Pois se algo em nós muda... Tudo envolta também mudará. Então... Que venham, mais e mais Porto Alegres em Cena.
 
* Angela Spiazzi é bailarina da Cia. Terpsí Teatro de dança.

sábado, 21 de setembro de 2013

Emoções luminosas- Fragmento I- Reflexos mutantes por Jacqueline Pinzon

 
Imagem-Luz

             A arte da criação da luz de um espetáculo é frequentemente interpretada como  uma ação de caráter transmedial, onde o iluminador se ocupa de traduzir em radiações luminosas as ideias e atmosferas concebidas pelo encenador. O que não é pouca coisa, diga-se de passagem. Ocupando-se da arte de criar iluminação para diferentes eventos artísticos há mais de vinte anos, a iluminadora cênica Cláudia de Bem quer ir além do contexto de um espetáculo. Invertendo a equação, se assessora de outros artistas (como fazem os diretores de teatro) mas para interferirem criativamente em seu trabalho. Muito mais do que simplesmente encenar uma narrativa qualquer, o que De Bem parece desejar, com sua instalação Emoções luminosas- Fragmento I- Reflexos mutantes, é explorar outras fronteiras de seu ofício, criando e chamando a atenção  para as especificidades e possibilidades da linguagem que escolheu  para se expressar no mundo. Partindo do pressuposto que se tornou conhecida como iluminadora, a artista abandona a ideia de criar uma iluminação para uma determinada montagem e traz para o centro a discussão acerca da luz  não-aplicada à cena ou seja, a luz em si.
            Resultado de inúmeras horas de captação de imagem e posterior edição primorosa da própria artista, a obra vista durante o Porto Alegre Em Cena 2013 configura-se numa marcante experiência óptica. O trabalho de Cláudia se configura através de  diferentes estratos de luz (e seu duplo indissociável, a sombra); de  imagens videográficas  (que nada mais são que também luz); da presença intencionalmente sombreada da figura humana - Thais Petzhold em performance contemporânea e delicada, acrescidos de  engenhosas intervenções musicais, fruto da trilha original de Monica Tomasi. Frente a tudo isso e, liberados da perspectiva fabular da síntese dramática, a experiência  da fruição do audiovisual nos faz mergulhar numa sensorialidade desnarrativa, onde experimentamos desde uma certa calma e até a excitação acelerada dos batimentos cardíacos.
            Isso tudo, sem contarmos o fato de estarmos assistindo a esta instalação num teatro bem conhecido de nossa cidade, a Sala Álvaro Moreyra. De fato, ao chegarmos lá (afinal de contas, um teatro) e nos depararmos com o ambiente todo às escuras e a projeção em “looping”,  não sabemos se entramos, esperamos “algo” acabar, ou se sentamos. Mas logo descobrimos que não há assentos, a nossa velha Álvaro Moreyra agora é uma arquibancada escurecida e transmutada em uma instalação.
            Se tudo mais nesta obra de Cláudia de Bem já não fosse encantador, só pela escolha e tratamento dado ao local, Cláudia já estaria de parabéns. Parabéns por nos mostrar as potencialidades desta “black-box” lançada inicialmente como um auditório, mas que se tornou um espaço fundamental para as artes cênicas da cidade. Assim, a artista marca duplo tento, tanto em nos mostrar  condições expressivas da luz enquanto  matéria luminosa de valor em si, como pelo fato de nos fazer repensarmos as possibilidades das artes cênicas em nossa cidade em relação às transformações tecnológicas oferecidas pelo século XXI.
 
* Jacqueline Pinzon é atriz, encenadora e pesquisadora teatral. Atualmente é professora substituta do Departamento de Arte Dramática da UFRGS

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Sobre o conceito da face no filho de Deus por Camilo de Lélis


A metafísica da fecalidade ou Quem não tiver pecado, que atire a primeira granada

Vou começar pelo fim. Este ano, o Porto Alegre em Cena organiza, ao final de algumas peças, um debate psicanalítico. Assim, com a mediação de um psicanalista, uma tradutora e três integrantes da equipe italiana, o público pode manifestar suas dúvidas e ouvir algo sobre o processo de criação da peça. A coisa mais interessante foi saber que o tema da peça, o ícone sobre o qual ela foi criada, foi uma reprodução da face de Jesus pintada por Antonello de Messina (c.1430 - c. 1479), que o diretor Romeu Castellucci encontrou numa revista de arte. Ele ficou tocado pelo olhar de Jesus e se perguntou o que o público sentiria se tivesse esse olhar reproduzido no palco numa dimensão gigante. A partir daí, ele concebeu um roteiro, e os atores criaram as ações que reproduzem a relação entre um pai e um filho.
Depois da ótima análise do psicanalista Jair Rodrigues Escobar, ouviu-se os atores falarem sobre o processo e a dificuldade técnica para dar realismo às cenas fecais que respondem por 80% da representação e são realmente muito fortes. Eu também fiz uma pergunta, algo que para mim era a segunda coisa em importância (sendo a primeira, a escatologia cênica): como o público italiano e a mídia reagiram ao espetáculo que agredia, sujava e rasgava a face do filho de Deus. A resposta foi que na Itália não houve problemas, nem em Roma, nem em outras localidades, até que eles foram à França e, lá sim, uma ala conservadora da Igreja Católica invadiu o palco. A repercussão do fato chamou a atenção da mídia para a peça, gerando alguns manifestos da direita católica. Entretanto, homens da Igreja, mais progressistas, acharam o espetáculo humano e exemplar na exposição de relações amorosas entre pais e filhos.
Agora vou para o meio, pois estou às avessas. Descrição da peça. Num trabalho naturalista e realista, com uma fuga simbolista ao final, o espetáculo conta, durante uma hora, a relação de um filho extremoso com um pai sem condições de cuidar de si. O ancião, com a mobilidade muito restrita, usa fraldas geriátricas e tem a TV por companhia. A ação inicia com o filho dando remédios e se preparando para sair, provavelmente para trabalhar. Então, o velho suja as fraldas, pela primeira vez, com fezes semissólidas. Suja mesmo. O sofá, as pantufas, o chão em volta, tudo, pior do que uma criança recém-nascida. O trabalho do filho se assemelha ao de um cuidador profissional, com baldes, luvas, fraldas, roupas limpas etc.; porém com um desvelo verdadeiramente filial. Em seguida, o velho se suja de novo - fezes mais líquidas - e, por fim, a excreção se torna totalmente líquida, quando ele vai para a cama e derrama sobre si e nas cobertas um líquido da cor das fezes, dando a entender que, cada vez mais, a sua vontade e autossuficiência vão se liquefazendo. Desesperado, depois de esbravejar contra o pai, o filho chora, demonstrando sua impotência e culpa, indo ao encontro da face de Jesus e, com sua cabeça na altura da boca da imagem, faz uma espécie de súplica que, certamente, nunca será ouvida. O velho fica solitário, sentado na cama, no meio da merda. Mudança de luz e de cena com contrarregragem à vista do público. Epílogo: oito crianças entram em cena e atiram granadas na figura de Jesus, numa cena magnifica pelo impacto causado. Depois de apedrejar a figura sacra, meninos e meninas sentam-se no proscênio, de costas para a plateia. O velho levanta da cama e vai cambaleando em direção ao quadro, derramando o que resta de seu galão de merda pelo palco. Por fim, três homens de preto descem do urdimento por cabos de aço e destroem o que sobra da figura de Jesus. Rasgam a tela e, por trás dela, revela-se uma inscrição em inglês: You are (not) my shepherd - Tu (não) és o meu pastor.
Terminando pelo começo. O que originou toda essa conversa foi o efeito da peça sobre minha pessoa. Sou, contraditoriamente, um iconoclasta religioso. Por isso, interessei-me por este espetáculo da Socìetas Raffaello Sanzio, cujo nome já propõe uma questão filosófica: Sobre o conceito da face no filho de Deus. Fiquei tocado, impressionado, pela face do homem, que está retratada no rosto de Deus. É de uma beleza e tristeza imensas. Essa é a tragédia que a peça aponta - a inocuidade da mensagem cristã. Em troca de todo o seu amor, este filho, Jesus, só recebeu de seu pai o desespero e a dor. Ele morreu na cruz e não conseguiu limpar a cagada do pai eterno, que foi ter criado o mal. Logicamente, não vou aderir ao subterfúgio de Santo Agostinho, para explicar a existência do mal como a ausência do bem. O mal é uma presença real. E a peça mostra isso de maneira contundente, pela metafísica da fecalidade. Ver um ente querido demenciado, com mal de Parkinson e outras sequelas da velhice é profundamente doloroso, e o pior, é que não podemos nos entregar à raiva e ao parricídio, pois a mensagem cristã nos bloqueia por todos os lados e nas profundezas de nossa alma. Assim, mesmo fazendo o bem, nos tornamos culpados. Culpados por não sermos deuses, mesmo sendo filhos de Deus. Entendo o final da peça como uma vingança, uma revolta do homem (na figura do encenador, dos personagens e do público, se assim o quisermos), quando as crianças, que não têm pecado, atiram granadas (ou, metaforicamente, pedras) na face do filho de Deus - negando, assim, o bom pastor.
Uma peça curta, com um texto que cabe em meia lauda. Para mim, isso é um bom sinal, num tempo em que o teatro anda muito prolixo e não diz nada.
Não usei a palavra Cristo, de propósito. O rosto pintado por Antonello de Messina não reproduz um rei (Messias/Khristós/Ungido), mas uma face humana, sem nenhuma dignidade especial - simplesmente, Jesus.
 
* Camilo de Lélis é encenador

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Peep Classic Ésquilo por Hermes Bernardi Jr.

A voz é corpo. Atua.

Fui assistir duas das seis tragédias do Peep Classic Ésquilo, da Cia. Club Noir, dirigida por Roberto Alvim.

 

Antes, alguém comenta comigo “Assisti ontem. Retornei hoje. Bem contemporâneo”. Penso: o contemporâneo é uma caixa. E me parece que ela está lotada. De pedaços, de fragmentos que resistem, de partes extirpadas daqui e de lá. A contemporaneidade e seu registro antropológico: pequenas partes desgarradas tentando ser em suas individualidades, buscando aderências para ser, de fato, algo.

 

O ontem, foram duas tragédias de Ésquilo. O hoje, quando estou, Sete conta Tebas e Prometeu. O tempo para ambas, uma hora.

 

Antes do início Roberto Alvim anuncia um pequeno manual. As tragédias transcorrerão em 30 minutos, cada. O intervalo será breve. Portanto, não será possível deslocamentos no entreato. Não pense em ir ao banheiro. Um minuto e meio para troca de elenco. Apenas isto. Nada mais.

 

Roberto Alvim ainda pede que nos certifiquemos de que os aparelhos eletrônicos permanecerão desligados. A luz dos displays pode atrapalhar o vizinho de plateia e aos atores. Pode atrapalhar o que está por vir. O que se vai tentar materializar.

 

A luz da plateia se apaga. A estrutura metálica insinua uma caixa. Uma frágil caixa. Talvez um compartimento que deseja relevo dentro do todo. Uma luz fria, única, de contra, se acende no palco.  Emergem das páginas de Ésquilo, as tragédias. Emergem como silhuetas. Estáticas, elas emitem sonoridades. A palavra é o corpo da tragédia. A voz é o corpo que entra em ação. A voz exibe texturas, relevos, contornos. É ela, a voz, que busca sua materialidade. A voz se arrisca. Ameniza, dói, enfrenta, grita, apequena, agiganta-se. O Homem está petrificado. Tem peso, volume, contraste, constância. Resta-lhe a voz.

 

Na penumbra de uma única e especial lâmpada fria vozes de silhuetas criam espaço para o nosso imaginário, criam a hipnose. Um jogo no qual se busca dar  imagem às emissões sonoras que despertam de um lugar inóspito, estático, onde as palavras podem ser a única possibilidade de habitação.

 

No breve intervalo, poucos na plateia arriscam-se ao enfrentamento do olhar. Nada fala. Pouco se move. Alguma coisa, dentro, tenta se acomodar. Como reverberam em mim essas palavras, esses corpos, o não gesto?

 

Ao final dessa uma hora, as silhuetas se diluem. Desmaterializam-se antes de acender a luz da plateia. Voltam à obscuridade. A direção não nos permite ver os atores para o aplauso final. Ficamos com nosso Prometeu, aquele que imaginamos no escuro, que se construiu de uma voz. Única, por que desdobrada em mil.

 

Neste tempo, exageradamente de imagens transbordando a cada segundo nas redes, foi a voz que desenhou no palco. O traço foi nosso. A cor foi a voz. Foi a palavra que nos levou ao desenho. Ela, a palavra, criou o discurso, criou a cena, iludiu o ato, fez-se gesto. Ela foi o movimento. Atemorizou. Tocou. A palavra foi o corpo. O corpo é o lugar que pensa, que diz. A ação foi interna, tanto lá quanto cá. A dialética houve sem grandiloquentes malabarismos físicos. O espetáculo foi o exercício do que ficou suspenso no entre da platéia e atores: a escuta. Tão fundamental e necessária em tempos de imagens esfacelando a percepção do todo feito de outros ao redor. Estamos no não gesto? Petrificados, reverberando sem voz que se expanda para além do dentro de nós mesmos.
 
* Hermes Bernardi Jr. é escritor e ilustrador

Dez mil seres por Carla Vendramin



            O POA em Cena tem sido um evento na vida cultural de Porto Alegre em que o público espera ver espetáculos aos quais talvez não teriam oportunidade de conhecer, se não viajando a outros lugares. Além dos trabalhos locais e nacionais, ficamos aguardando ver espetáculos importantes da cena cultural mundial. E como artista da dança, é claro, aguardo especialmente a oportunidade de conhecer de perto novas propostas coreográficas, que mostrem linguagens coesamente elaboradas. Hoje, aguardando para assistir o Grupo Dançando com a diferença na sua estreia em POA, minha inquietude era frenética! Eles finalmente vieram! Tendo já os conhecido de perto, minha emoção era por saber que sua participação no em Cena irá proporcionar uma experiência artística que vejo ainda ignorada na cidade. Ignorada, no sentido de ser desconhecida no seu potencial e amplo entendimento, não quero dizer ignorada de forma a ser menosprezada.
            O espetáculo começa com um tempo de espera, e a organização do tempo entre as ações, foi uma das coisas que me cativou neste trabalho da coreógrafa Clara Andermatt. O grupo passou por um processo de trabalho em espaços naturais da belíssima Ilha da Madeira, onde a coreógrafa investiu no tempo de apropriação dos corpos dos bailarinos às texturas do ambiente. Este processo deixou registros nos seus corpos, que embasou a criação coreográfica. Dez mil seres foi construído com quatro personagens. Telmo Ferreira e Mickaella Dantas fazem o Marterra, no papel de uma paisagem sonora e visual indissociável. Bárbara Matos, Joana Caetano e Sofia Marote fazem as Trissônicas, representando os seres da natureza e as naturezas dos seres. Alexis Fernandes é o Foeta, apresentador do poema fonético. Pedro Silva, o Arquitetor, a instituição do instante. O duo de Telmo e Mickaella, já no começo da coreografia, nos prende o olho por trazer uma variação prazeirosa de imagens móveis. Assisti a um trabalho solo de Mickaella, como intérprete-criadora, no Programa de Estudos em Performance 2012, em POA. Ela apresentava um estudo das possibilidades cênicas do uso e relação com sua prótese. Na coreografia de Clara Andermatt, esta investigação se desenvolveu ainda mais, e também com as muletas, que trouxe o uso da horizontalidade do corpo e outras possibilidades de movimento que ela não tinha anteriormente ousado. Telmo e Mickaella constroem uma sinergia harmônica e bela de movimentos.
            A escolha da coreógrafa de agrupar as três meninas com síndrome de down em um só personagem me pareceu interessante. De outros trabalhos que vi do GDD, acredito que este seja o primeiro a dividir o grupo desta forma. Em um trabalho com bailarinos com e sem deficiências como o do GDD, busca-se evitar as classificações dos clichês do senso comum, e estéticas estereotipadas. O trio Trissônicas mostra que é a qualidade do trabalho dos bailarinos e da composição coreográfica que proporciona um trabalho livre de estereótipos, não unicamente as sinergias encontrados entre bailarinos com e sem deficiências. O elenco de Dez mil seres possui apenas um bailarino caracterizado como pessoa sem deficiência, uma pessoa com deficiência física e, na sua maioria, pessoas com deficiência intelectual. Eles viajam com o grupo sem mãe, pai, irmã(o), ou  cuidador(a). Como sempre este tipo de explicação se faz necessária... eles não são especiais. Suas singularidades são reconhecidas e respeitadas, porém eles alcançaram uma independência pessoal e uma atitude profissional e artística porque não são tratados de forma a reinforçar a prisão dos clichês socialmente herdados.
            O som do theremin produzido por Alexis, e o seu monólogo que depois se transforma em uma conversação com Telmo e Bárbara em uma língua criada por eles, fazem uma parte divertida do espetáculo. A obra possui por vezes uma dramaticidade de corpos que vivenciam o momento presente com ações de embate físico uns com os outros e sonorizações que partem do abdômen. A descontração trazida por Alexis traz uma nova informação mudando o rumo do previamente construído. Ele e Pedro, os dois mais novos integrantes do grupo, possuem uma presença cênica fortemente constituída, que vai de encontro a dos integrantes mais antigos. O figurino, cenografia e desenho de luz é feito por Maurício Freitas,  que trouxe uma novidade, um pó que funciona no lugar da tradicional fumaça de gelo seco.
            O espetáculo termina, e ainda dá vontade de ver mais, postergando o fim daquela experiência. Como acontece nos espetáculos dessa qualidade, o espectador que se envolve, deixa de enxergar tão exclusivamente questões sobre deficiência, e passa a apreciar prioritariamente a experiência artística. Como sempre este tipo de explicação se faz necessária... isto é dança, nesse caso, dança contemporânea. Porém, devido ao contexto social atual ainda vigente, com frequência é preciso nomear: dança inclusiva, dança integrada, dança com grupo de habilidades mistas, ou pontuar, dança com bailarinos com e sem deficiências. Se entende por 'danceability' o método criado pelo americano Alito Alessi, que não engloba a diversidade de grupos e metodologias que envolve todo e qualquer grupo de habilidades mistas.
            Henrique Amoedo, diretor do grupo, iniciou seu trabalho nos anos 90 em Natal, com o grupo Roda Viva. Desde então, além de também ter criado os grupos Mão na Roda e o GDD, ele tem trabalhado e influenciado gerações de pessoas interessadas em dança e acessibilidade. Entre elas, euzinha! Acompanho seu trabalho desde 2002. Portanto, é inevitável não terminar este texto de forma pessoal... com minha admiração pelo trabalho e amor a este amigo querido e também a todo Grupo Dançando com a Diferença!
 
* Carla Vendramin é professora temporária na Ufpel e diretora do espetáculo infantil O gato malhado e a andorinha Sinhá, com elenco de habilidades mistas, que irá estrear em outubro no Teatro de Câmara Túlio Piva

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Roberto Alvim a propósito de arte


Roberto Alvim, que apresenta no 20º Porto Alegre em Cena sua série de seis espetáculos abrigados sob o título organizador de Peep Classic Ésquilo, fala sobre arte, crítica e invenção.

domingo, 15 de setembro de 2013

Monoblock- poemas e textos sem eloquência de Juan José Gurrola por Igor Simões


Presença, encontro. Estas palavras sempre são associadas ao artesanato teatral. Também passaram a ser utilizadas de maneira específica a toda uma parcela da produção em artes visuais que elegeu a presença e seu caráter de efemeridade desde as propostas dadaístas e, com entonação próxima mas diferente, a partir da arte da década de 60. Começo por esse ponto pois presença e encontro foram duas das palavras que me afetaram durante todo o tempo que estive diante do Monoblock do mexicano Juan José Gurrola na noite chuvosa deste domingo na Sala Bruno Kiefer da Casa de Cultura Mario Quintana. Estar presente diante de um trabalho apresentado unicamente em 1971, em um dos importantes capítulos da trajetória fértil do ator, cineasta, encenador, coreografo, poeta, músico e artista plástico coloca o público em um dos mais interessantes lugares do pensamento artístico contemporâneo:  o que não se aloja, o que não se enquadra, o que não se aprisiona em disciplinas. A fronteira, o entre, dentro-fora, o inter, o multi.
Gurrola, faz parte de uma geração que arrebentou as fronteiras (foi do grupo de Arrabal e outros artistas), que arregaçou os limites, os objetos, as possibilidade do campo da criação. Seu Monoblock é parente de uma longa lista de procedimentos artísticos que ao invés de se perguntar quais os materiais específicos de seu fazer, souberam lançar mão dos mais diferentes recursos, desde a imagem, o som, o texto, o corpo, a presença. Seu trabalho é multilinguístico desde os idiomas adotados que passaram aqui pelo inglês, espanhol e português, até as diferentes linguagens que se mesclam para dar a ver um comentário sobre o mundo, o tempo, o estado das coisas. Claro que ainda há naqueles pontos que o texto propõe um resíduo da utopia moderna. Mas muito do que aprendemos como pauta necessária para o encontro e o pensamento com e sobre a vida e a arte contemporânea se deixam ver na costura que se expõe no trabalho que ganhou luz na casa do poeta.
Durante os 45 minutos de duração fiquei me perguntando qual o lugar adotado pelo público para sossegar dentro de si o visto. Seria desde o teatro?  Desde as artes visuais? Em pouco tempo percebi que seria no deslimite que se daria o ponto de onde deveriam partir os olhares. Percebi que o visto não sossegaria. No palco, um painel de fundo criado pela artista americana que durante mais de 20 anos atuou no México, Barbara Wasserman. No centro, um freezer que, coberto nos primeiros momentos, revela a presença do Monobloco. Dada a iluminação, pode ser pensado como algo que expõe, dá a ver. O freezer pode ser vitrine, expositor, lugar de conservação e por si só, já desloca o sentido da peça mecânica entre a arte e o mero objeto, entre o que é passível de ser conservado e o que é efêmero, entre a invenção humana que é mero produto e aquela que cria a arte. O olho encontra e investiga o Monobloco, peça automotiva de um caminhão encontrada por Gurrola e mote, ponto de partida e disparador das questões que vão desde o lugar do amor, da beleza, da arte, de Duchamp, de Warhol, de Picabia, da economia, dos comércios, das trocas, dos símbolos, dos deslocamentos, do estar vivo. O monoblock é objeto, poesia, interrogação, arte.
Há de se citar alguns ruídos enfrentados pelo público na noite deste domingo. Antes da apresentação e infelizmente durante, alguns sons de uma atividade que acontecia na CCMQ acabaram por interferir chegando mesmo a criar uma certa dúvida se faziam parte do trabalho e exigindo um exercício de concentração ainda maior por parte do público. Nada grave. Afinal a presença, o aqui, o agora também é feito de adversidades.
 
A nova parceria entre a Fundação Bienal e o Porto Alegre Em Cena não poderia ter sido mais feliz. Por si só, já é um ato que aponta a convergência e oferece ao público a possibilidade de pensar sobre os inúmeros deslocamentos que se abrem na arte quando ela abandona as suas fronteiras e se apresenta no seu estado mais puro enquanto vontade de criação e intervenção no mundo. Já havia acontecido este movimento com a exposição Video Portraits (2011) de Bob Wilson, também fruto do alinhamento entre dois dos mais importantes eventos artísticos do país que se conta desde o sul. Que dure, que seja presente, que se firme. Ganhamos todos. Ganha aquilo que talvez seja o mais importante em uma Bienal ou em um festival: criar brechas que possam ser encharcadas de novas interrogações e novos encontros entre a arte e a vida que entram (e saem) pelo corpo-mente do público.
 
* Igor Simões é ator e professor de História, Teoria e Crítica da Arte na graduação em Artes Visuais- Licenciatura da Uergs