terça-feira, 19 de outubro de 2010

Antônio Hohlfeldt

 
Teatro continua sendo bom espaço de debate

O 17º Porto Alegre Em Cena apresentou, nesta nova edição, uma multiplicidade de opções e de espetáculos que, se já é sua característica habitual, permitindo atender a todos os gostos e interesses dos espectadores que acorrem às filas de bilheteria e depois ainda ficam às portas dos teatros torcendo para que sobrem alguns espaços que lhes permitam assistir àquilo a que não puderam chegar por falta de bilhetes, reforça a força e a importância do teatro enquanto canal de comunicação e de reflexão a respeito da realidade humana. Luciano Alabarse e sua equipe merecem parabéns, não apenas pelos cuidados verdadeiramente profissionais que cercam toda a produção - desde a recepção às trupes até a presença de jornalistas especializados que vêm acompanhar à mostra - como a qualificação crescente da infra-estrutura viabilizada para receber os espetáculos.
Nesta edição, dentre os espetáculos internacionais presentes, comecei com enorme expectativa em torno de Happy days, publicada em 1961 em Nova Iorque (portanto, em inglês) e imediatamente traduzida para o francês e editada assim em 1963, versão que, na verdade, é a mais conhecida e de que Bob Wilson, apesar de norte-americano, se valeu, para a interpretação da atriz italiana Adriana Asti. Tenho memória de uma encenação tocante de Jean-Louis Barrault, para a interpretação de sua esposa Madeleine Reynaud, a que assisti em Paris, no Théâtre de La Gare. Era absolutamente diversa dessa: lá, o sol chapado batia sobre um monte de areia levada constantemente pelo vento, e a atriz estava inteiramente vestida de branco, inclusive a sombrinha. Foi uma versão poética e etérea, como parece ser a intenção de Samuel Beckett, o dramaturgo. Na encenação de Wilson, ao contrário, que respeita os dois atos do texto original, evidenciando que a personagem vai sendo gradualmente engolida pela terra que a aprisiona, a sugestão de pedras vulcânicas negras é bem mais ácida e cética, eu diria negativa, que nem mesmo a extraordinária performance cômica da intérprete consegue fazer esquecer. Já nos dias seguintes, podemos assistir ao divertido e maravilhoso Babau ou a vida desembestada do homem que tentou engambelar a morte, vindo do Recife, e que retoma a melhor tradição do teatro de mamulengo nordestino, com bonecos manipulados por cinco animadores, dentre os quais a autora da obra, Carla Denise.
Evidentemente, há os blockbusters como O idiota, do lituano Eimuntas Nekrosius, mas neste ano, especialmente, me dediquei a assistir a alguns espetáculos escolhidos a dedo. Por exemplo, tinha curiosidade em Lonesome cowboy, balé vindo da Suíça, com coreografia de Philippe Saire. Trata-se de uma peça ousada e eficiente, que exige um preparo físico extraordinário dos intérpretes. Um grande espaço coberto por areia é a base em que cinco intérpretes se alternam em funções de agressão e de defesa, representando diferentes papéis sociais ao longo da história. A precisão dos movimentos supre a duração relativamente pequena - não mais de uma hora de apresentação - em que os bailarinos mostram toda a sua possibilidade de expressão.
Mas aquela primeira semana terminaria com um espetáculo vindo da Argentina que, sem maiores pretensões, envolveu e cativou a todos. Na Sala Álvaro Moreyra, conhecemos Lila Monti e Dario Levin que, dirigidos por Lorena Veja, e com coreografia de Lucio Baglivo, encantaram e provocaram ao pequeno mas entusiasmado público. O espetáculo argentino - Cancionero rojo - mistura texto e a tradição do mimo: vestidos como palhaços, ele e ela se alternam em situações que se desdobram constantemente, num espetáculo que ora é cômico, ora terno ou até dramático. O inesperado é a constante e a criatividade a sua melhor definição. Para mim, aquela primeira semana teve neste trabalho seu melhor momento.
Mas começamos outra série de trabalhos. Neste segundo conjunto, destacaram-se, dentre outros, Um navio no espaço, espetáculo de Paulo José e a filha, a respeito da poesia de Ana César Cristina, e a montagem de Na solidão dos campos de algodão, a partir do texto de Bernard Marie-Koltès, dramaturgo contemporâneo ainda pouco conhecido no Brasil, mas que gradualmente vai sendo divulgado entre nós. O grupo carioca, dirigido por Caco Ciocler, fez um trabalho estupendo e logo se tornou um dos espetáculos referenciais.
Ao mesmo tempo, um grupo paulistano chamou a atenção com o inusitado da montagem de As troianas - Vozes da guerra. Mesclando o texto original de Eurípides a uma leitura atualizada da violência nazista da II Grande Guerra, o diretor Zé Henrique de Paula surpreendeu a todos com a proposta de encenação que se valeu de um idioma aparentemente inexistente, ainda que se parecesse com o alemão. Repetiu, aqui, experimento de alguns anos antes, de Antunes Filho, quando dirigiu um Chapeuzinho vermelho sem qualquer palavra dicionarizada. Aqui, os personagens são, de um lado, soldados nazistas e, de outro, mulheres judias. Todos falam um aparente idioma alemão, mas as frases não têm qualquer nexo. O que dá sentido à encenação é a própria encenação.
Naquela segunda semana voltamos a encontrar O grande inquisidor, texto que pela terceira vez chega ao Porto Alegre em Cena, desta vez em montagem brasileira de Rubens Rusche. O texto original de Dostoievski continua impactante, sem dúvida. A Argentina, enfim, apresentava aquele que provavelmente seja o espetáculo mais impactante, a partir do texto de Dib Carneiro Neto, com direção do argentino Miguel Cavia, Por tu padre. Na terceira e última semana da mostra, começamos com um engraçado e provocante texto espanhol de Jean Luc Lagarce, interpretado por Gerardo Begérez. O espetáculo encenado no Museu do Trabalho é inesperado. A partir de um "Manual de boas maneiras" da Baronesa Blanche Staffe, famosa socialite francesa do início do século XX, encena-se o texto profundamente irônico e cético a respeito da vida e da morte. O texto, editado em Portugal, junto com outros dois trabalhos do autor, faz uma espécie de releitura paródica e crítica do original. O que é modelo passa a ser crítica. Para Lagarce, nascer ou morrer constitui a verdadeira regra: nascemos porque somos produto de um relacionamento; e morremos porque tudo morre, na vida, dentro do ciclo vital. O difícil, contudo, é viver, e sobretudo viver dentro de regras, que tornam a vida artificial e falsa.
O texto é antológico, e o espetáculo é absolutamente perfeito. Vestido como uma grande dama do começo do século XX, Begérez jamais perde o ritmo ou o precário equilíbrio entre o travestimento com que inicia o espetáculo e o que está dizendo. Poderia escorregar para a simples anedota, mas à medida que o espetáculo avança e o personagem vai se desnudando, é também ao desnudamento da realidade, produzido pelo texto, o que assistimos. É raro que um dramaturgo consiga ser tão correto.  Mas Lagarce o consegue e, sem dúvida, muito devendo à correta decisão de um diretor que se preocupou sobretudo com a cuidadosa medida da interpretação, seguida com precisão por Gerardo Begérez. A semana final ainda nos reservava diversos trabalhos. Comecei assistindo a Los caballos, do dramaturgo uruguaio Mauricio Rosencof, em espetáculo dirigido por Ernesto Clavijo. Trata-se de um texto crítico, na linha do realismo socialista, mas ao mesmo tempo saudosista dos tempos dos velhos "gaúchos". Um casal de camponeses sem-terra enfrenta as dificuldades de levar a filha até o hospital da cidade, a doze horas de distância, a cavalo. Um velho revolucionário lunático; um adolescente que sonha com o heroísmo; e um casal em crise, cujo marido mente à esposa que comprou um caminhão para fazer transporte e que pretende mudar-se para a cidade. Do ponto de vista da dramaturgia, o texto é bem construído e a direção pontua com clareza os diferentes momentos do espetáculo. Mas a situação se arrasta (uma hora que parece muito mais) e em que pese o realismo de cada intérprete, todos altamente qualificados, o espetáculo não chega a envolver completamente o público. Foi, de tudo a que se assistiu, até aqui, o que mais deixou frustrado ao público. Nem a poeticidade de algumas situações consegue resolver certo tom discursivo, pretensamente denuncista, que caracteriza o texto. Também Kabul foi, de certo modo, frustrante. O grupo carioca Amok traz uma criação de Ana Teixeira e Stephane Brodt que pretende recriar a tragédia vivida hoje em dia pelo Afeganistão, após a guerra com a União Soviética e anterior à ocupação norte-americana. Para isso,coloca-se em cena dois casais: um deles é um homem mutilado de guerra, transformado em guardião de prisão e sua mulher, que morre aos poucos. De outro, um jovem casal, que perdeu tudo com o bombardeio da casa. Do ponto de vista da dramaturgia, a ideia é boa. O espetáculo é quase um documentário, mas desde o início já se sabe o que vai ocorrer. Algumas soluções técnicas, como a constante troca de ambientação cênica, não ajudam ao desdobramento do trabalho. Chega-se ao nível do dramalhão, que pouco convence. Quanto aHilda Hilst - O espírito da coisa, trata-se mais do que um recital de poemas e textos da escritora - já falecida - Hilda Hilst, de uma recriação de sua vida e de sua obra. O espetáculo é denso. A intérprete se envolve profundamente com a personagem, tanto que às vezes extrapola o equilíbrio necessário a um espetáculo teatral, e não a uma incorporação. De modo geral, o roteiro de Gaspar Guimarães alcança bons resultados e a direção de Ruy Cortez consegue dar veracidade ao trabalho interpretativo. Mas o espetáculo acaba se tornando longo, na medida em que não se sabe muito bem aonde se pretende chegar.
No domingo, último dia do festival, assistimos a In on it, de um grupo carioca que traz a revelação de um jovem dramaturgo canadense, Daniel MacIvor. O 17º Porto Alegre Em Cena, aliás, terminou em gala: a apresentação de Final de partida encheu os olhos e constituiu excelente contraponto ao outro Beckett que abrira a programação do festival. Quanto a In on it, do mesmo modo, arrancou demorados e entusiasmados aplausos. O título da peça, intraduzível, reflete, contudo, sua ideia: desdobramento de um tema e aprofundamento do mesmo. Frases brilhantes por trás de uma aparente simplicidade, que ferem a realidade ou arrancam poesia do instante imediato. Quanto ao elenco, simplesmente brilhante. Emilio de Mello e Fernando Eiras não apenas se equilibram perfeitamente quanto ocupam a cena toda, são precisos, pontuais, e dão vitalidade ao texto. Aliás, o texto seria um desastre sem dois bons intérpretes. 
Em síntese: o 17º Porto Alegre Em Cena garantiu diversidade acima do que tem ocorrido em anos anteriores. Pode ser que nem sempre o espetáculo teve a qualidade que se gostaria, mas o conjunto de peças apresentadas serviu para mostrar o que se pensa, o que se faz e o que se discute no mundo teatral, através de uma seleção mundial, a incorporação de algumas praças novas, como a Venezuela, a reiteração de bons espetáculos oriundos do Uruguai e da Argentina e, sobretudo, a variada e por vezes inesperada criação brasileira. Não falo nos trabalhos de Porto Alegre porque deles tenho me ocupado ao longo do ano.


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