A vida como ela não é*
Devo admitir que, ao me incorporar à plateia do espetáculo A vida como ela é, já tinha algumas perspectivas quanto ao estilo de representação escolhido pelo diretor Luiz Arthur Nunes para a peça que estava por vir. Para transformar em ação dramática cinco contos escritos por Nelson Rodrigues para uma coluna de jornal homônima na década de 1950, são empregadas técnicas do teatro épico desenvolvido por Brecht que visam o distanciamento do espectador perante as situações narradas. Nesse sentido, a obtenção da não-identificação do público se dá com êxito, exemplificada pelas risadas nervosas dos espectadores até em momentos de carga dramática mais densa. Ao optar por esse estilo de trabalho, o diretor acerta com a sua vontade de usar de diferentes meios cênicos para contar histórias, porém acaba por se perder em meio a excessos e superficialidades.
Basicamente, parecem questionáveis algumas escolhas da montagem. O primeiro conto mostrado, por exemplo, enfraquece o começo do espetáculo ao recorrer a quadros vivos compostos por dois atores, que ilustram fielmente a história relatada pelos demais. A novidade da proposta se esgota rapidamente, dando lugar a uma monotonia intimamente ligada ao caráter estático que circunda não só os referidos quadros, mas também a montagem como um todo. Por isso, vibramos ao ver uma maior movimentação corporal, como é o caso do “coro” de quatro personagens do terceiro conto, brincando com o uso de leques (desgastado, mas que funciona) e com uma dinâmica estrutural acelerada que encaminha o conto para um desenlace belamente contrastante ao da atmosfera instituída. É, sem dúvida, uma encenação que priva por uma marcação exata dos atores, característica que às vezes parece suprimir o trabalho destes e que instaura a questão: “Aquilo não poderia ter sido explorado mais a fundo?”.
O segundo conto se desenrola não menos estático, porém esteticamente mais interessante. A manipulação de atores que tem a sua face substituída por uma máscara de feições neutras é, sem dúvida, a escolha de maior beleza de toda a peça. Os usuários destes adereços se entregam nas mãos de outros colegas de elenco, para serem manobrados como se fossem marionetes de carne e osso, seja na questão dos movimentos ou até mesmo das falas (o quarto conto também se aproveita dessa ferramenta de ventriloquia, diferenciando-se ao excluir as máscaras e agora dar voz aos bonecos vivos).
Os elementos visuais, na sua maioria, são vibrantes e extravagantes. O figurino remete à época dos contos, com característicos vestidos de bolinhas em diferentes cores para cada uma das atrizes e ternos impecáveis para os homens. O cenário se resume a estruturas com design de páginas de jornal, reforçando a origem dos textos, que ao final de cada conto se iluminam e revelam uma imagem que ressalta a construída em palco. Essa última característica é desnecessária e ameaça inclusive ofuscar as imagens criadas ao final de cada quadro, já bastante significativas e por vezes muito bonitas (como é o caso dos contos dois e três).
A luz de palco é uma constante de iluminação geral para meia luz de troca de contos, sendo explorada sem muita elaboração cênica, exceto pela ajuda na criação de efeitos em algumas imagens finais. Em contrapartida, a sonoplastia tem um papel muito mais presente, sendo um recurso por vezes invocado desnecessariamente. O repertório vai de músicas populares de reconstituição histórica brasileira até músicas clássicas que sublinham a suposta tensão do enredo. Esse misto dá um clima brega a toda a trilha que, se assumida como proposta, poderia ser interessante e condizente com a forma de interpretação exagerada. Porém, esse ideal de encenação parece não se impor e o que se sucede é uma série de intervenções musicais que chegam a beirar um melodrama que se envergonha de ser melodramático.
A adaptação do texto, também feita por Luiz Arthur Nunes, acerta ao preservar grande parte da estrutura narrativa original, dando aos atores a figura de narrador em terceira pessoa ao mesmo tempo em que outros se encarregam dos diálogos. Em suas tramas, Nelson Rodrigues retratava as patologias psicológicas do subúrbio carioca usando de um caráter de depravação sexual e morbidez criminal que rodeou toda sua obra, mas que aqui é apresentado de forma muito atenuada. Assim, a encenação acaba por tomar uma válida posição de comicidade sobre tais temáticas, uma vez que o distanciamento proposto pela montagem se associa à uma análise feita por um espectador “distante” daquela época posta em palco. A exposição do texto revela outro aspecto positivo que vem como uma redenção para a falta de ações físicas mais complexas: a oralidade do elenco, que se caracteriza por uma ótima gesticulação e projeção vocal, a última talvez beneficiada pela acústica do espaço teatral.
Ao fechar das cortinas, o resultado de tudo que se vê é claro narrativamente, porém confuso teatralmente. A impressão que paira é de que as diferentes estéticas de representação dramática exploradas se tornam avulsas quanto à encenação vista em sua totalidade, uma vez que não estão amarradas entre si. Fica a dúvida, por fim, se a clássica regra do “menos é mais” não se aplicaria aqui com perfeição, optando somente pelos melhores mecanismos que preservassem a proposta geral, que em minha opinião se apoia na união de elementos de determinada época para discernir psicologismos atemporais. Infelizmente, tais signos históricos se sobressaem perante o argumento que visa a análise do “interior negro” humano, afastando demais o espectador da encenação e dando a irônica impressão de que o que contemplamos é o ser humano como ele não é, a vida como ela não é.
* Eriam Schoenardie é estudante do Departamento de Arte Dramática da UFRGS
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