sábado, 22 de outubro de 2011

Agreste malvarosa por Elvio Antonio Rossi

AGRESTE MALVAROSA: TEATRO NA MEDIDA*

Cruel, a natureza é
Dá o sol na desmedida
Dá um corpo na desmedida
Dá o amor na desmedida.
Este poema inicia e fecha o espetáculo teatral Agreste malvarosa, do Amok Teatro, apresentado na última edição do Porto Alegre em Cena. Através destas frases é possível já no início, criar uma expectativa do que vai acontecer no palco; no final, vemos que a citação se encaixa perfeitamente com o que foi apresentado.
O texto, escrito por Newton Moreno, foi dirigido por Ana Teixeira e Stephane Brodt (também diretores do Amok Teatro), a convite das duas atrizes da peça, Milene Ramalho e Rita Elmor. O nome da peça remete à malva rosa, uma planta considerada com poderes de cura para os males femininos. A história que se passa no sertão nordestino, trata do amor incondicional entre um casal de lavradores. Resgatando a tradição oral de culturas como a do agreste brasileiro, a história é contada pelas atrizes, que são as narradoras, mas também, por vezes, desempenham papeis de personagens da história. A encenação conta ainda com a presença do músico Beto Lemos, que executa a trilha sonora ao vivo, tocando diversos instrumentos e pontuando a dramaticidade da trama, como elemento integrador da ação.
Entramos no teatro e uma das atrizes está sentada numa cadeira, enquanto a outra caminha em círculos, com uma trouxa de lenha nas costas. Num dos cantos da frente do palco, o músico executa a trilha sonora em um ritmo nordestino, que juntamente com a luz forte sobre o palco e o calor que fazia na sala (por falha no sistema de ar condicionado ou, quem sabe, intencionalmente), nos remetem ao âmago do sertão; a um clima árido, de sol forte, de corpos marcados pela seca.
O cenário é simples, mas com os elementos essenciais para caracterizar o interior de uma casa com paredes de palha trançada, onde há uma cruz de metal ao fundo e uma capelinha com um santo em um dos lados; num dos cantos um cesto sobre uma mesa; no centro, duas cadeiras.
A primeira parte da peça é narrada pelas atrizes, numa perfeita sincronia e com uma emoção que transborda as palavras e nos invade, fazendo com que nos transportemos integralmente para dentro do texto e para sua ação. Temos a nítida impressão de que estamos vendo as cenas que estão sendo descritas. A história conta como acontece o encontro entre o casal, inicialmente separado por uma cerca; obstáculo superado através da descoberta de um buraco, que permite aos dois fugirem juntos. Na fuga, são acolhidos por uma comunidade e lá permanecem felizes, vivendo como marido e mulher por vinte e dois anos, porém, sem ter filhos e se tocando sempre por sob o lençol e com o candeeiro apagado.
Com uma pequena pausa para ajuste do cenário, marcada pela música, inicia a segunda parte do espetáculo, onde o lavrador está morto e é representado por peças de roupa tiradas do cesto, deitado sobre uma mesa montada por dois bancos. A partir disso, a peça vai se desenvolvendo, até chegar ao surpreendente final, com as atrizes se revezando entre a narração e a representação de personagens (femininos e masculinos), numa transição que espanta pela precisão, pelo rigor e pela técnica. O corpo das atrizes literalmente se transforma em apenas alguns segundos, na sua totalidade, dando identidades diferentes aos personagens, sem exagero ou caricatura.
Aqui é possível perceber a marca do Amok Teatro, que desde a sua fundação em 1998, tem pesquisado sobre o trabalho do ator e as possibilidades de encenação. Colocando o ator e a linguagem física no centro do ato teatral, o grupo apoia a sua pesquisa em dois eixos: Antonin Artaud e Etienne Decroux, de quem utilizam a técnica da mímica corporal dramática. Desta forma, como é possível comprovar nesta peça, o corpo do ator se afirma como sendo o lugar em que o teatro verdadeiramente acontece.
O corpo, aliás, parece ser o centro gravitacional do espetáculo, até mesmo em seu desfecho, quando a identidade sexual do lavrador Etevaldo é revelada e a forma como isso é interpretado pela sociedade, nos levando a refletir sobre questões contemporâneas como o preconceito, ou os tabus que envolvem a sexualidade feminina, por exemplo. O corpo é, portanto, o elemento de ligação entre o texto e a encenação. Expor o corpo do ator como o “local do teatro”, num momento onde os variados e mirabolantes elementos cênicos, muitas vezes sepultam o trabalho do ator (e o próprio texto), é um desafio. Porém, o Amok Teatro demonstra que isso ainda é possível, e o resultado pode ser o que tivemos a oportunidade de assistir em Agreste malvarosa. Não há “desmedida”, tudo funciona perfeitamente, na exata medida, apenas com os poucos (porém, bem selecionados) recursos cênicos e contando com o excelente trabalho das atrizes. Em Agreste malvarosa, podemos dizer que o recado foi dado, a mensagem foi transmitida, o papel do teatro foi cumprido, e a recepção do público presente ao espetáculo pareceu comprovar isso.
* Elvio Antônio Rossi é aluno de graduação em História da arte da UFRGS

Um comentário:

Anônimo disse...

Essa peça é teatro puro, sem ornamentos! A atriz Millene Ramalho, que aliás fiquei sabendo quando fui assistir a peça que ela é sobrinha da cantora Elba Ramalho, é simplesmente maravilhosa.Talento de família. Linda peça, lindo cenário, atrizes e direção precisa.