Este espanto aconteceu pela primeira vez em dois mil e pouco, eu tinha vinte e também poucos anos, e fui a um show seu num domingo à tarde no Theatro São Pedro. Cida Moreira cantaria Tom Waits. Na ocasião eu nunca tinha ouvido Tom Waits e desde então não consegui mais desvincular um do outro. Não consegui mais parar de ouvi-los, descobri-los e de recorrer a eles quando faminta.
A música de Cida Moreira é uma expressão selvagem, muito de tudo aquilo que em nós não pode ser domesticado está ali se agitando sonoramente e neste movimento nos captura em uma experiência musical poderosa, emocionante, da qual não se sai ileso.
Exposta na rica promiscuidade das referências que compõe o repertório de A dama indigna, espetáculo apresentado durante o 18º Porto Alegre em Cena, Cida retira-nos da tagarelice do cotidiano pelos traços inconfundíveis de sua expressão: a singularidade com que se apropria de cada música transformando a matéria sonora em uma extensão de si, um fluxo espetacular que conecta suas mãos, voz, corpo, piano, teatro, nós.
Cida constroi e desconstroi harmonias para seu piano e voz, envolvendo cada música na fumaça de seu cabaret. Assim, são por ela abocanhados artistas que tangenciaram as dimensões arte-vida através de comportamentos performáticos transgressores e criações sensíveis aos blocos de forças que atravessaram (e esburacaram) politica, social e criticamente seus tempos: Jards Macalé ( Hotel das estrelas do primeiro LP do antropofágico músico-poeta 1972 ), David Bowie (Soul love), Caetano Veloso ( Mãe e O ciúme), Du Bose Heyward e George Gershwin em Summertime (minha música preferida, um clássico, atualizando sua eternidade, e também título do primeiro espetáculo e LP de Cida em 1981). Em tempos de espetacularização da morte dos famosos, Cida sai pela tangente exaltando a força musical de Back to black (Amy Winehouse), Gonzaguinha (Palavras), Chico Buarque (Uma canção desnaturada), Youkali-Tango (Roger Fernay e Kurt Weill) e como não poderia faltar Tom Waits ( Lullaby/ Tango ‘Till they’re sore), entre outras maravilhas. O CD A dama indigna produzido por Cida Moreira e Thiago Marques Luiz foi lançado pelo selo Joia Moderna.
Todas as componentes do espetáculo (repertório, desenhos de luz, cenário e figurino) conversam naturalmente sem medir muito as palavras! A direção cênica de Humberto Vieira nos transforma em público de um cabaret, testemunhas dos ímpetos de uma persona teatral (assim definida pela artista) corporificada em ações precisas, atravessadas pela expressão de um conflito íntimo (origem do drama). Em diferentes momentos percebemos a construção de alguma coisa (um charuto se acendendo, uma taça cheia, uma rosa vermelha, o lirismo que introduz algumas canções) que daqui a pouco será decomposta, desfigurada, arremessada em diferentes direções e neste movimento nos atingirá. A direção cria uma zona de convivência orgânica entre música/performance, não presenciamos ali a música em primeiro plano, e um comportamento performático em segundo plano, os planos se atravessam, A dama indigna é híbrida e liberta do início ao fim.
O espetáculo foi iluminado por Cláudia de Bem, em uma impecável criação de estados visuais para cada música. Uma conversa sensível entre cor, luz, sombra e som, construindo um espaço íntimo para a relação entre Cida, sua música e o público. Uma maravilha desta artista da luz (reforçando palavras da própria Cida ao se referir a iluminadora).
Em A dama indigna, está segundo ela mesma, ”o exercício sem pudores de sua dignidade na arte”, onde somos conduzidos pelo seu arquivo vivo de histórias, memórias, referências, reverências, saudades e homenagens. Temos assim, diante dos olhos, um palco povoado de presenças, heranças de uma trajetória marcada pela convivência poética com tantos outros artistas a quem ela generosamente evoca, agradece e pede aplausos.
Escrever sobre Cida Moreira sem me rasgar não é possível, estive diante de uma Dama, que produziu estados que me transportaram, fica aqui certamente um vazio entre a palavra e o acontecimento, um encontro com indefiníveis forças da natureza, um encontro com UMA Dama.
* Marina Mendo é atriz
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