A última gravação de Krapp*
O problema maior das produções dirigidas por Bob Wilson, diretor americano cuja fama alcança vários pontos diferentes do planeta ao longo dos últimos quarenta anos, é o fato de que ele aparece demais. Em outras palavras, suas marcas são tão fortes, tão vivas, tão exuberantes que torna possível pensar que todo o resto, e, nesse caso, o resto é Samuel Beckett, é apenas um motivo, uma desculpa, algo dispensável. O resultado é que cristaliza-se a certeza: viu uma peça de Bob Wilson, viu todas.
Krapp’s last tape ou A última gravação de Krapp, escrita em 1957, é considerada a peça mais autobiográfica do dramaturgo irlandês, autor de Happy days, espetáculo participante do 17º Porto Alegre em Cena, também dirigido por Bob Wilson. Nesse texto, como nos outros, o tom trágico também pode ser visto. O diferencial é que não se tratam de personagens presos ao próprio destino (Fim de partida), ao próprio tempo (Esperando Godot) ou presos à própria condição (Dias felizes). Aqui o personagem está preso ao próprio presente e sem a possibilidade de mudar nada no seu passado. A palavra last (última) no título tem dois sentidos: a última gravação pode informar que é a gravação mais recente, mas também pode afirmar que não haverá outras. Krapp, o personagem protagonista e o único que se vê em cena, talvez diante da morte, ou não, tem o costume de, no dia do seu aniversário, fazer uma gravação em que se narra os acontecimentos daquele ano. Na peça, está-se no aniversário de sessenta e nove anos de Krapp. E, mais uma vez, ele vai em busca de si próprio nas antigas recordações gravadas em velhos rolos (spools).
(Para os interessados no texto, é possível fazer relação entre esse personagem e o seu homônimo em Eleutéria, primeiro texto de Beckett, escrito nos anos 40).
Bob Wilson mantém o tom intimista do texto quando cria uma chuva muito forte a cair do lado de fora do escritório. O som é altíssimo e o jogo de luzes está excelentemente posto, de forma, que o clima realista, embora com significantes bastante distantes do real, está plenamente estabelecido. O cenário, no entanto, é bastante impessoal: deixa de ser uma única mesa em que o personagem se encontra com várias versões de si próprio, em especial aquela em que ele completa trinta e nove anos, e passa a ser uma espécie de repartição pública com várias mesas, uma grande prateleira, muitas luminárias. O tragicomicidade clownesca da máscara branca e do nariz roxo, rubrica do texto, dá lugar a um personagem estilizado e que parece ser a própria máscara, ou seja, a sua inexistência. Os movimentos elípticos tomam o lugar de várias passagens do texto que não aparecem na versão de Bob Wilson que, nessa montagem, também é o ator. Para quem não conhece o texto, fica difícil estabelecer relações entre as memórias gravadas na fita ouvida e aquele que a ouve. Considerando que a encenação dura pouco mais de setenta e cinco minutos, boa parte deles, empregados na exploração da iluminação e do recurso do som de chuva, o interessante encontro em Krapp de sessenta e nove anos com os antigos Krapp não acontece. Em substituição, está um homem ouvindo uma gravação de si mesmo há muitos anos e nada muito mais além.
Krapp’s last tape, espetáculo participante do 18º Porto Alegre em Cena, é uma maquiagem que deixa ver muito pouco do rosto ao invés de embelezá-lo, realçá-lo, abrilhantá-lo. Pela sua importância, Bob Wilson é bem vindo à capital gaúcha, mas vale dizer que Beckett também o seria.
* Rodrigo Monteiro é crítico teatral
Um comentário:
Bela crítica Rodrigo ! Parabéns !
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