quarta-feira, 9 de junho de 2010

Um Navio no Espaço ou Ana Cristina Cesar

Corria o ano de 1982. Paulo José havia sido incumbido pela Rede Globo de criar um programa que concorresse com o líder de audiência da época na “Hora da Ave-Maria” – o popularesco "O Povo na TV", exibido pelo SBT. Nascia assim o "Caso Verdade", que dramatizava e exibia, em minisséries de uma semana de duração, histórias verídicas enviadas pelos telespectadores. Recém chegada de Essex, Inglaterra, onde recebera com distinção o título de Master of Arts (M. A.) em Teoria e Prática de Tradução Literária, Ana Cristina César, que os gaúchos conhecem pela sua troca de cartas com Caio Fernando Abreu, integrava o Departamento de Análise de Textos da Globo. Ela costumava ser implacável com os roteiros do programa: “folhetinesco, superficial, simplório, inverossímil” eram alguns dos adjetivos que povoavam seus relatórios. E assim, em pouco tempo, diretor e analista de roteiros tornaram-se, na definição do próprio Paulo José, “inimigos quase íntimos”.

No mesmo ano, fora já dos quadros da TV Globo, Ana Cristina Cesar lançava "A Teus Pés", seu segundo e último livro de poesia. A sofisticação, a visceralidade e a excelência da poesia produzida pela ex-colega deixaram Paulo José, um amantíssimo do gênero, simplesmente pasmado. Em 29 de outubro de 1983, Ana Cristina punha fim à própria vida, atirando-se do 8º andar pela janela do apartamento de seus pais em Copacabana. Aos poucos, a produção inédita da escritora foi sendo editada, revelando novos conteúdos de sua fina escrita. Além de mais prosa e poesia, ensaios, estudos, reflexões sobre o fazer literário, críticas, traduções[1], correspondências. E quanto mais penetrava no amplo universo da produção literária de Ana Cristina Cesar tanto mais Paulo José lastimava o fato de ter passado “um ano a um metro de distância dela” sem desfrutar do privilégio de conhecê-la melhor.

O espetáculo “Um Navio no Espaço ou Ana Cristina Cesar”, que participa do 17º Porto Alegre em Cena, se apropria desse sentimento e dessa experiência para criar seu arco dramático. Ao rememorar a história que viveu (ou deixou de viver) com Ana Cristina, Paulo José, o personagem que é interpretado pelo próprio ator e diretor, evoca a figura da poeta para tentar entender a mulher por trás do mito. Refaz com ela sua trajetória literária e existencial – dos seis anos de idade, quando tem seus primeiros poemas publicados, aos 31, quando se despede da vida.

Com cerca de 90% do texto extraído de poemas, prosas, cartas e diários da autora, o espetáculo presentifica na cena o vigor, o teor e a dicção singular da palavra poética de Ana Cristina Cesar (l952-l983). Através dela, traz à tona sua busca, suas angústias, suas inquietações. Expõe os seus enigmas. E lança sobre o tabuleiro as incontáveis peças da personalidade cindida e múltipla que a fez descrever uma trajetória de heroína trágica – curta, intensa, incomum, radical. Mas deixa para o público a tarefa improvável de montar o quebra-cabeça.

Com direção de Paulo José, e Ana Kutner no papel-título, Um Navio no Espaço... foi construído a partir de uma peça escrita em 1996 por Maria Helena Kühner. Em parceria com a Caravana Produções, pai e filha acumulam ainda a função de co-produtores do espetáculo.

O palco se projeta como extensão diagonal do tampo de uma mesa – uma espécie de estação de trabalho de Paulo José. Abarrotada de objetos de pesquisa (pilhas de livros, mídias dos anos 70, laptop, caderno de anotações), ela desloca do espaço cênico tradicional o ator-personagem, situando-o no nível da platéia, e reforçando o traçado geométrico e perspectivado da cenografia. O trabalho de videografismo e animação de Rico e Renato Vilarouca simula de forma estilizada a produção em tempo real de desenhos, manuscritos e originais a máquina de escrever de Ana Cristina Cesar, tradutora de, entre outros poetas, T. S. Eliot, Ezra Pound, Emily Dickinson, Mallarmé e Walt Whitman, trazendo para a cena a ‘presença viva’ da palavra escrita e a natureza febril do processo de criação da poeta.

Oito espelhos suspensos de 90 cm X 1m, multiplicam e distorcem as imagens projetadas, sugerindo a ideia de puzzle. A iluminação de Paulo Cesar Medeiros opera uma interação estreita com o videografismo: se apropria das imagens e faz com que a luz dos refletores seja projetada sobre o vídeo, ajudando a criar sensações visuais para a fúria e a delicadeza das palavras de Ana C. Na busca do fino equilíbrio entre não produzir interferências nas projeções, no desenho de luz ou na estética clean do cenário, e, ao mesmo tempo, estabelecer um diálogo rico com eles, Kika Lopes lança mão de diferentes tipos de trama, tons extremos de claro e escuro (como o cru e o marinho) e economia de cores e adereços. E imprime aos figurinos atemporalidade própria da palavra.

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Ficha Técnica:

Texto: Maria Helena Kühner
Dramaturgista: Walter Daguerre
Direção: Paulo José

Elenco: Paulo José e Ana Kutner

Cenário: Fernando Mello da Costa
Figurinos: Kika Lopes
Iluminação: Paulo César Medeiros
Trilha sonora: Alexandre Elias
Videografismo e animação: Rico Vilarouca e Renato Vilarouca
Produção Executiva: Lucia Regina Souza
Direção de Produção: Maria Helena Alvarez
Produção: Carava Produções, Malagueta Produções eAna Kutner
Realização: SESC-SP

Duração: 1h20min
Classificação: 14 anos  

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