terça-feira, 25 de setembro de 2012

Estamira- beira do mundo por Mauricio Guzinski


Estamira é mulher-mistério, é “beira-do-mundo”, indecifrável, inexplicável. E é melhor, mesmo, nem tentar decifrar, sequer explicar seus enigmas; basta aceitar sua existência, deixar-nos ser tocados pelo olhar, pela mirada desta pobre, “ignorante e sábia” mulher, para cruzarmos a ponte, experimentada e oferecida por ela a todos nós, entre aquilo que mais tememos – loucura, doença e morte – e o que mais ansiamos – transcendência. 
Mulher sofrida e lúcida, como a Dolor de Jorge Andrade, em Vereda da salvação. Santificada, como essa, pelo martírio da vida dos “sem nada” – nem terra, nem teto – pra chamar de seu. Pura, como a Virgem Santíssima, mas estuprada, como tantas outras Marias. Delirante, como o “filho de Dolor” (filho da dor, das dores do mundo); transtornada, como aquele Joaquim, Cristo das Roças, que via o Demônio, em tudo e todos, naquela vereda, e que enxergava Deus somente dentro de si mesmo (sem outra salvação do que aquela prometida pelo “Santo Livro”). 

Dolor: (Em Vereda da salvação) Botei tanto filho no mundo! (...) Carpi roça com filho pendurado nos peito. Velei filho, com filho pendurado nos peito. Foi o que deixei nas fazenda: um filho em cada uma. Mas, deixei embaixo da terra! Meus olho e meu corpo deitou mais água na terra que as nuvem do céu. Sou! Sou Maria das pureza. (...) Sofri pra meus filho nascer... e agoniei mais ainda pra eles morrer. A Maria do livro perdeu um filho na cruz. Eu perdi oito! Na cruz tenho vivido eu.
A "lucidez” de Dolor vem de seu criador, vem da poesia-dramática de Jorge Andrade, um gênio da dramaturgia brasileira (o maior de todos, em minha opinião, até o momento), inspirado pela tragédia real de Catulé, em que agregados de uma fazenda que jejuavam, durante a semana de penitências de sua religião – o Adventismo da Promessa – passaram a ter visões da “Terra Prometida”; e foram todos (homens, mulheres e crianças) assassinados pelos capangas do dono das terras, no interior de Minas, em 1955.
De onde vem a “lucidez” de Estamira? Sua fala “delirante”? Quem fala, através dela? Demônios, Anjos, extraterrestres que a abduziram para implantar um chip em seu cérebro (um “controle remoto”); após o segundo estupro do qual ela foi vítima, aqui, na Terra? Estupro que trouxe à luz sua filha (invisível) Sirena e, mais tarde, outros tantos filhos (visíveis): Marcos Prado, Dani Barros, Beatriz Sayad e a mim mesmo. Herdeiros ansiosos por propagar o legado de “nossa santa mãezinha”. Onde (e como?) a “santinha do lixão” encontrou meios de desenvolver sua “sabedoria”? Teria ela projetado sua consciência para acessar seus “arquivos akáshicos”, seus registros etéricos?
Estamira teria encontrado, no lixão de Gramacho, em algum cantinho escondido de seu “prejudicado e privilegiado” cérebro, a morada de seu próprio poder, o poder Superior, Deus?! O Todo, o Tudo, o Universo, o Infinito Astral, a Unidade, o Divino em Si Mesma, em Nós? ou...O Nada, o Grande Vazio? Como Buda, Jesus, Francisco de Assis, Teresa de Ávila, Agostinho, Joana D’Arc e tantos outros homens e mulheres iluminados? Através de um jejum prolongado? Do automartírio? Ou da simples loucura? Todas ou nenhuma dessas possibilidades? 

Ela, como Dolor (fictícia) e Artaud (real), parece ter decidido “acabar com o juízo de Deus”, rebelar-se contra o poder dele, para acessar o seu, a sua própria divindade. Não fosse o seu “desequilíbrio”, sua “falta” de conhecimento e estrutura, talvez pudesse ter sido uma líder religiosa, como Antônio Conselheiro ou Jacobina; uma filósofa, como Nietzsche; uma santa, como Teresa de Ávila ou Joana D’Arc. Poderia ser canonizada por sua atitude ecológica, frente ao “descuido” de todos com a vida do planeta. O seu amor pelos “bichinhos” da Terra lembra, de perto, a pureza, a beatitude de Chico de Assis. Que beleza “o sabiá”, segundo o olhar de Estamira! Que poder, o de um simples coqueiro! Pura poesia, como a poesia pura de Manoel de Barros. Mesmo assim, creio que o Vaticano e o Papa jamais irão reconhecer nossa catadora de lixo como a Santa Padroeira do Jardim Gramacho, Santa Protetora dos loucos mansos, das margens do Guaíba às do Sena.

Segundo seu próprio filho, Estamira tinha “um encosto” (o do “coisa ruim”, do “bicho caviloso” visto só pelo Joaquim, na obra de Andrade). Segundo os médicos (aqueles que só sabem dizer: “Fala!”, diante da angústia de seus pacientes), ela teria esquizofrenia paranoide (que se trata com um “dopante”, só pra esconder os indesejáveis sintomas).
De acordo com um artigo psiquiátrico (publicado no webartigos.com), “Estamira é tachada como louca, porém, apresenta muitos momentos de lucidez e crítica social, fazendo com que se torne possível mudar a perspectiva e visão sobre a esquizofrenia. Estamira trabalha, cozinha, pega ônibus, convive com seus filhos, sua esquizofrenia não faz dela um monstro. Falamos (...) de como a psicanálise vê esse distúrbio da ordem do delírio e da cisão entre o ego e o real”. 

Tempos atrás, ela poderia ter sido enquadrada, também, na tese ultrapassada de Michael Persinger, cientista que tentou provar a existência de um compartimento, no cérebro, responsável por nosso misticismo e a consequente criação dos deuses, por nós, humanos e mortais. Células que poderiam ser estimuladas por um impulso elétrico; quiçá também pelo uso do peyote (experimentado por Artaud e Castaneda), a ayahuasca (pelos xamãs, desde os Incas), os cogumelos, o LSD (pesquisado por Timothy Leary) ou outros tantos enteógenos (do grego: en = dentro ou interno + theo = deus ou divindade + genos = gerador; ou seja, gerador do deus interno, da divindade dentro de nós) ou pela loucura, em si. 

Segundo a diretora do espetáculo, Beatriz Sayad, (em entrevista concedida a Fernanda D’Angelo, para a Revista Personalité): “Ela tinha capacidade de refletir, poeticamente, o que pensava de Deus, da saúde, dos médicos, do lixo e da sociedade burguesa. Usava um vocabulário espetacular e muito claro sobre estas questões que, na nossa cabeça, às vezes se confundem.
Marcos Prado perpetuou “a mensagem” de Estamira em uma verdadeira obra de arte, seu documentário (imperdível) que já recebeu 25 prêmios, entre nacionais e internacionais (e que me faz chorar, quase do princípio até o fim, a cada vez que o assisto; obra que parece contradizer a teoria brechtiana de que o envolvimento do espectador prejudica sua tomada de consciência. Neste caso, ao contrário, potencializa!).
A releitura pós-dramática do documentário, feita por Beatriz Sayad e Dani Barros, ainda vai além ao misturar o resultado do encontro da atriz com “a doença” de Estamira e a de sua própria mãe, na vida real. O resultado de tantos encontros (incluindo o do histórico teatral da atriz com o da diretora) é uma outra obra de arte de extrema potência, poesia, delicadeza, sensibilidade, envolvimento e, até mesmo, do “verdadeiro” distanciamento crítico, postulado por Brecht. Méritos da atriz que, com sua incrível “mímesis corpórea”, traz Estamira, novamente, à vida, diante de nossa mirada estarrecida; ela sabe transitar, com perfeição, entre a incorporação da persona à narrativa dos acontecimentos de três histórias de vida (da visionária do lixão, a sua própria e a de sua mãe esquizofrênica); sabe orquestrar, com absoluto domínio, sua emoção e a nossa; e, acima de tudo, atinge uma “presença cênica” impressionante em momentos muito especiais do roteiro dramático. Entram para o meu rol de “antológicas”: a cena com a vassoura/cajado/cetro que traduz a imensa força da personagem, e a espetacular transformação do pavoroso lixão de Gramacho (um verdadeiro inferno), no próprio paraíso, na ascensão de Estamira aos Céus, em sua viagem através do Cosmo. Méritos da diretora e da atriz que merecem receber todos os prêmios e a consagração do público e da crítica, como já vem acontecendo.
É tudo muito simples (uma atriz, um banco, sacolas plásticas e muita dedicação) parece inacreditável que resulte neste belíssimo espetáculo! BRAVO!
Estamira Gomes de Souza morreu, aos 70 anos, em 26 de setembro de 2011, vítima do “descuido” do SUS, por septicemia, além de tantos outros “descuidos”, durante seu longo calvário. Entretanto, sua “delirante lucidez” terá longa vida na Arte (assim como a obra cinematográfica, de Prado, e a teatral, de Barros e Sayad. Ambas as versões já alcançaram a eternidade). Já canonizada pelo poder do artista, Estamira, assim como a personagem de Apocalipse segundo Santo Ernesto de la Higuera na peça do dramaturgo gaúcho Júlio Zanotta (texto sobre Che Guevara que irá a público, em leitura encenada, por mim, com “a nata” dos atores, bailarinos e músicos de Poa, dia 9 de outubro, às 20h, no Teatro de Câmara, com entrada franca), continua a oferecer rico e complexo material para a criação artística, podendo ser vista por estas e tantas outras diferentes miradas. Posso vê-la, desde já, ressuscitar na pele de muitas outras personagens, na ficção literária, cinematográfica e dramática. Posso ouvi-la dizendo palavras semelhantes às criadas por outro dramaturgo gaúcho, nosso genial Ivo Bender, para uma outra santinha (do fantástico Cabaré do autor): Erica Schmitt, no momento em que esta interrompe, revoltada, seu sono de morte, para interpelar seus fiéis (de forma sensacional e surpreendente):
Erica Schmitt: ...nem o demônio, nem Deus podem me socorrer. Os milagres que concedo a meus fiéis, não posso conceder a mim mesma. Todos pensam que morri virgem. Mentira. (...) morri nas mãos de um pai enfurecido! (...) Se existe inferno, é dentro de mim que ele arde. (...) Escutem: façamos um trato. Voltarei a cobri-los de milagres, atenderei o mais mesquinho desejo de quem me trouxer o meu camponês (o meu negro, de volta!). Quero ele vivo, porém. Jovem, inteiro. Esta gruta tem muitos nichos, desvãos escuros onde os sexos podem se cruzar. Agora, andem, saiam daqui, fora! Rolem pelas campinas, trepem com a simplicidade dos bichos e fiquem sabendo: milagre de hoje em diante, só depois de me trazerem o meu negro! Vamos, fora daqui! Fora daqui!
Onde estará Deus? Fora? Dentro de nós? Em toda a parte ou em lugar algum? Estas são questões que nos assaltam e assombram diante de Estamira, a mulher, o filme, a peça. Depende da mirada, do olhar de cada um. NA ARTE! O Divino em nós está, “pelo menos”, na ARTE. Esse é apenas “um” dos meus pontos de vista!
BRAVO! BRAAVO! BRAVÔÔÔ! Muito mais prêmios e aplausos para Estamira! Gratidão eterna a Prometeu que nos deu a chama e a Dionísio que a transformou em Teatro!
*Mauricio Guzinski é ator, diretor e professor de teatro

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