Estamira
é mulher-mistério, é “beira-do-mundo”, indecifrável, inexplicável. E é melhor,
mesmo, nem tentar decifrar, sequer explicar seus enigmas; basta aceitar sua
existência, deixar-nos ser tocados pelo olhar, pela mirada desta pobre, “ignorante
e sábia” mulher, para cruzarmos a ponte, experimentada e oferecida por ela a
todos nós, entre aquilo que mais tememos – loucura, doença e morte – e o que
mais ansiamos – transcendência.
Mulher
sofrida e lúcida, como a Dolor de Jorge Andrade, em Vereda da salvação. Santificada, como essa, pelo martírio da vida
dos “sem nada” – nem terra, nem teto – pra chamar de seu. Pura, como a Virgem
Santíssima, mas estuprada, como tantas outras Marias. Delirante, como o “filho
de Dolor” (filho da dor, das dores do mundo); transtornada, como aquele
Joaquim, Cristo das Roças, que via o Demônio, em tudo e todos, naquela vereda, e
que enxergava Deus somente dentro de si mesmo (sem outra salvação do que aquela
prometida pelo “Santo Livro”).
“Dolor: (Em Vereda da salvação) Botei tanto filho
no mundo! (...) Carpi roça com filho pendurado nos peito. Velei filho, com
filho pendurado nos peito. Foi o que deixei nas fazenda: um filho em cada uma.
Mas, deixei embaixo da terra! Meus olho e meu corpo deitou mais água na terra
que as nuvem do céu. Sou! Sou Maria das pureza. (...) Sofri pra meus filho
nascer... e agoniei mais ainda pra eles morrer. A Maria do livro perdeu um
filho na cruz. Eu perdi oito! Na cruz tenho vivido eu.”
A "lucidez” de Dolor vem
de seu criador, vem da poesia-dramática de Jorge Andrade, um gênio da
dramaturgia brasileira (o maior de todos, em minha opinião, até o momento),
inspirado pela tragédia real de Catulé, em que agregados de uma fazenda que
jejuavam, durante a semana de penitências de sua religião – o Adventismo da
Promessa – passaram a ter visões da “Terra Prometida”; e foram todos (homens,
mulheres e crianças) assassinados pelos capangas do dono das terras, no
interior de Minas, em 1955.
De onde vem a “lucidez”
de Estamira? Sua fala “delirante”? Quem fala, através dela? Demônios, Anjos,
extraterrestres que a abduziram para implantar um chip em seu cérebro (um
“controle remoto”); após o segundo estupro do qual ela foi vítima, aqui, na
Terra? Estupro que trouxe à luz sua filha (invisível) Sirena e, mais tarde,
outros tantos filhos (visíveis): Marcos Prado, Dani Barros, Beatriz Sayad e a
mim mesmo. Herdeiros ansiosos por propagar o legado de “nossa santa mãezinha”.
Onde (e como?) a “santinha do lixão” encontrou meios de
desenvolver sua “sabedoria”? Teria ela projetado sua consciência para acessar
seus “arquivos akáshicos”, seus registros etéricos?
Estamira
teria encontrado, no lixão de Gramacho, em algum cantinho escondido de seu “prejudicado
e privilegiado” cérebro, a morada de seu próprio poder, o poder Superior, Deus?!
O Todo, o Tudo, o Universo, o Infinito Astral, a Unidade, o Divino em Si Mesma,
em Nós? ou...O Nada, o Grande Vazio? Como Buda, Jesus, Francisco de Assis,
Teresa de Ávila, Agostinho, Joana D’Arc e tantos outros homens e mulheres
iluminados? Através de um jejum prolongado? Do automartírio? Ou da simples
loucura? Todas ou nenhuma dessas possibilidades?
Ela, como Dolor (fictícia) e Artaud (real), parece ter decidido
“acabar com o juízo de Deus”, rebelar-se contra o poder dele, para acessar o
seu, a sua própria divindade. Não fosse o seu “desequilíbrio”, sua “falta” de
conhecimento e estrutura, talvez pudesse ter sido uma líder religiosa, como
Antônio Conselheiro ou Jacobina; uma filósofa, como Nietzsche; uma santa, como
Teresa de Ávila ou Joana D’Arc. Poderia ser canonizada por sua atitude
ecológica, frente ao “descuido” de todos com a vida do planeta. O seu amor
pelos “bichinhos” da Terra lembra, de perto, a pureza, a beatitude de Chico de Assis.
Que beleza “o sabiá”, segundo o olhar de Estamira! Que poder, o de um simples
coqueiro! Pura poesia, como a poesia pura de Manoel de Barros. Mesmo assim,
creio que o Vaticano e o Papa jamais irão reconhecer nossa catadora de lixo
como a Santa Padroeira do Jardim Gramacho, Santa Protetora dos loucos mansos,
das margens do Guaíba às do Sena.
Segundo seu próprio filho, Estamira tinha “um encosto” (o do “coisa ruim”, do “bicho caviloso” visto só pelo Joaquim, na obra de Andrade). Segundo os médicos (aqueles que só sabem dizer: “Fala!”, diante da angústia de seus pacientes), ela teria esquizofrenia paranoide (que se trata com um “dopante”, só pra esconder os indesejáveis sintomas). De acordo com um artigo psiquiátrico (publicado no webartigos.com), “Estamira é tachada como louca, porém, apresenta muitos momentos de lucidez e crítica social, fazendo com que se torne possível mudar a perspectiva e visão sobre a esquizofrenia. Estamira trabalha, cozinha, pega ônibus, convive com seus filhos, sua esquizofrenia não faz dela um monstro. Falamos (...) de como a psicanálise vê esse distúrbio da ordem do delírio e da cisão entre o ego e o real”.
Tempos atrás, ela poderia ter sido enquadrada, também, na tese
ultrapassada de Michael Persinger, cientista que tentou provar a existência de
um compartimento, no cérebro, responsável por nosso misticismo e a consequente
criação dos deuses, por nós, humanos e mortais. Células que poderiam ser
estimuladas por um impulso elétrico; quiçá também pelo uso do peyote (experimentado por Artaud e Castaneda),
a ayahuasca
(pelos xamãs, desde os Incas), os cogumelos, o LSD (pesquisado por Timothy
Leary) ou outros tantos enteógenos (do grego: en = dentro ou interno + theo = deus ou divindade + genos = gerador; ou
seja, gerador do deus interno, da divindade dentro de nós) ou pela loucura, em si.
Segundo a diretora do
espetáculo, Beatriz Sayad, (em entrevista concedida a Fernanda D’Angelo, para a
Revista Personalité): “Ela tinha
capacidade de refletir, poeticamente, o que pensava de Deus, da saúde, dos
médicos, do lixo e da sociedade burguesa. Usava um vocabulário espetacular e
muito claro sobre estas questões que, na nossa cabeça, às vezes se confundem”.
Marcos Prado perpetuou “a
mensagem” de Estamira em uma verdadeira obra de arte, seu documentário
(imperdível) que já recebeu 25 prêmios, entre nacionais e internacionais (e que
me faz chorar, quase do princípio até o fim, a cada vez que o assisto; obra que
parece contradizer a teoria brechtiana de que o envolvimento do espectador
prejudica sua tomada de consciência. Neste caso, ao contrário, potencializa!).
A releitura pós-dramática
do documentário, feita por Beatriz Sayad e Dani Barros, ainda vai além ao
misturar o resultado do encontro da atriz com “a doença” de Estamira e a de sua
própria mãe, na vida real. O resultado de tantos encontros (incluindo o do histórico
teatral da atriz com o da diretora) é uma outra obra de arte de extrema
potência, poesia, delicadeza, sensibilidade, envolvimento e, até mesmo, do
“verdadeiro” distanciamento crítico, postulado por Brecht. Méritos da atriz
que, com sua incrível “mímesis corpórea”, traz Estamira, novamente, à vida,
diante de nossa mirada estarrecida; ela sabe transitar, com perfeição, entre a
incorporação da persona à narrativa dos acontecimentos de três histórias de
vida (da visionária do lixão, a sua própria e a de sua mãe esquizofrênica);
sabe orquestrar, com absoluto domínio, sua emoção e a nossa; e, acima de tudo,
atinge uma “presença cênica” impressionante em momentos muito especiais do
roteiro dramático. Entram para o meu rol de “antológicas”: a cena com a vassoura/cajado/cetro
que traduz a imensa força da personagem, e a espetacular transformação do
pavoroso lixão de Gramacho (um verdadeiro inferno), no próprio paraíso, na
ascensão de Estamira aos Céus, em sua viagem através do Cosmo. Méritos da
diretora e da atriz que merecem receber todos os prêmios e a consagração do
público e da crítica, como já vem acontecendo.
É tudo muito simples (uma
atriz, um banco, sacolas plásticas e muita dedicação) parece inacreditável que
resulte neste belíssimo espetáculo! BRAVO!
Estamira Gomes de Souza
morreu, aos 70 anos, em 26 de setembro de 2011, vítima do “descuido” do SUS,
por septicemia, além de tantos outros “descuidos”, durante seu longo calvário.
Entretanto, sua “delirante lucidez” terá longa vida na Arte (assim como a obra
cinematográfica, de Prado, e a teatral, de Barros e Sayad. Ambas as versões já
alcançaram a eternidade). Já canonizada pelo poder do artista, Estamira, assim
como a personagem de Apocalipse segundo
Santo Ernesto de la Higuera na peça do dramaturgo gaúcho Júlio Zanotta
(texto sobre Che Guevara que irá a público, em leitura encenada, por mim, com “a
nata” dos atores, bailarinos e músicos de Poa, dia 9 de outubro, às 20h, no
Teatro de Câmara, com entrada franca), continua a oferecer rico e complexo
material para a criação artística, podendo ser vista por estas e tantas outras
diferentes miradas. Posso vê-la, desde já, ressuscitar na pele de muitas outras
personagens, na ficção literária, cinematográfica e dramática. Posso ouvi-la
dizendo palavras semelhantes às criadas por outro dramaturgo gaúcho, nosso
genial Ivo Bender, para uma outra santinha (do fantástico Cabaré do autor): Erica Schmitt, no momento em que esta interrompe,
revoltada, seu sono de morte, para interpelar seus fiéis (de forma sensacional
e surpreendente):
“Erica
Schmitt: ...nem o demônio, nem
Deus podem me socorrer. Os milagres que concedo a meus fiéis, não posso
conceder a mim mesma. Todos pensam que morri virgem. Mentira. (...) morri nas
mãos de um pai enfurecido! (...) Se existe inferno, é dentro de mim que ele
arde. (...) Escutem: façamos um trato. Voltarei a cobri-los de milagres,
atenderei o mais mesquinho desejo de quem me trouxer o meu camponês (o meu
negro, de volta!). Quero ele vivo, porém. Jovem, inteiro. Esta gruta tem muitos
nichos, desvãos escuros onde os sexos podem se cruzar. Agora, andem, saiam
daqui, fora! Rolem pelas campinas, trepem com a simplicidade dos bichos e
fiquem sabendo: milagre de hoje em diante, só depois de me trazerem o meu
negro! Vamos, fora daqui! Fora daqui!”
Onde
estará Deus? Fora? Dentro de nós? Em toda a parte ou em lugar algum? Estas são
questões que nos assaltam e assombram diante de Estamira, a mulher, o filme, a
peça. Depende da mirada, do olhar de cada um. NA ARTE! O Divino em nós está,
“pelo menos”, na ARTE. Esse é apenas “um” dos meus pontos de vista!
BRAVO!
BRAAVO! BRAVÔÔÔ! Muito mais prêmios e aplausos para Estamira! Gratidão eterna a
Prometeu que nos deu a chama e a Dionísio que a transformou em Teatro!
*Mauricio Guzinski é ator, diretor e professor de teatro
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