A que você preferiria dizer
não?
Antes de ir assistir Preferiria não? de Denise
Stoklos perambulei pela internet para saber um pouco mais sobre o espetáculo. Baseado
no conto Bartleby, o escrivão, do
estadunidense Melville, o personagem título dá eco a um tema que há muito tem me
atraído: a necessidade de agir no mundo de forma desapegada. Desapegada de
convenções, desapegada do comércio de afetos, desapegada do consumo. Em um
tempo que nos impõe diversos must have,
must do, must see - que nos oferece uma avalanche de imagens, textos, ideias
- criar espaços vazios para si, para o mundo, é imensamente necessário. A que
preferiríamos dizer não?
No conto - que Denise reproduz no palco mesclado a
comentários pessoais sobre política e sobre as exigências impostas a artistas
no mundo dos editais e patrocínios - Bartleby é um funcionário de um escritório
que começa a dizer “Preferiria não [fazer]” às diversas tarefas que lhe são
pedidas. Entre intrigado e encantado, alternando raiva e pena, seu patrão é
incapaz de confrontá-lo.
Há algum tempo tenho me dado conta que também eu
tenho me encantado com personagens que apresentam essa recusa às convenções
mundanas. Eles aparecem nos filmes que mais me marcaram ao longo da minha
vida, apresentando esse desapego sob diversas facetas.
Há o sábio ermitão arquetípico Dersu Uzala (do Kurosawa), que vive em meio às florestas. Ou o jovem
retratado por Sean Pean em Na natureza
selvagem – baseado em uma história real - que recusa seu passado burguês e
queima todo o seu passado em busca de um contato desapegado com o mundo e a
natureza, mas cuja ingenuidade em dimensionar sua pouca experiência lhe reserva
um fim fatal.
Um outro personagem marcante é a mochileira vivida
por Sandrine Bonnaire em Sem teto nem lei,
de Agnès Varda, que em seu caminho recusa qualquer comércio afetivo, qualquer
dever de civilidade: reage ao presente, somente isso. Há ainda aqueles o que
recolhe para se dedicar à arte como o músico de Todas as manhãs do mundo, de Alain Corneau.
Entretanto, a recusa de Bartleby é mais extrema. Ele
não almeja nenhuma sabedoria, nenhuma transcendência, nenhuma aventura. Até
chegar ao extremo de recusar comida, recusar à vida: morrer. Denise alerta na
peça que psicanalistas o veem como esquizofrênico: nem desejo sequer ele tem. E
filósofos como um ícone da desobediência civil, o exercício do livre arbítrio
em sua totalidade: parar o sistema. Mas ele não quer ser ninguém e espelha
nossa vontade de também abrir mão de tudo. De não querer ter uma utilidade, um
fim. Sua loucura expõe nossas feridas. Desconfia daquele que se encaixa
demasiadamente ao sistema doentio do mundo.
Ao começar o espetáculo não se tem dúvida nenhuma
do domínio que Denise tem de seu corpo (ela desenha gestos no espaço
absolutamente precisos) e voz (projetada, clara, cheia de nuances). Ela nos
transporta para onde ela quer transportar. O palco é quase nu: estantes de
partituras espalhadas, com livretos no qual se lê o nome de Bartleby; uma mesa. O
domínio se estende ao tempo cômico. Vários aplausos em cena aberta. Como quando
ela diz que cagar e andar é o suprassumo da maturidade.
Também eu ri. Mas aos poucos parei. O excesso de
piadas passou a me incomodar. Parecia-me que os gestos eram excessivos, que eram
demasiadas as piadas, que elas não estavam ali para ajudar a penetrar na beleza
da recusa de Bartleby: a beleza de ser inútil, de NÃO SERVIR. A sensação que
tenho é que Denise não conseguiu se despojar totalmente de suas muletas, não
abriu mão do riso fácil do público.Que ainda não consegue dizer não a muitas
coisas às quais ela gostaria. Não ousou se entregar totalmente à beleza selvagem
da inutilidade.
Bartleby pede menos. Ele pede um despir-se de
qualquer excesso. O essencial: um lugar pra dormir, um pequeno pedaço de queijo
envolto no jornal. É justo na cena na qual o narrador/patrão examina os
humildes pertences de Bartleby que o espetáculo revela sua alma.
Ao final da peça, resisti um pouco, mas por fim
levantei pra aplaudir. Mas não estava aplaudindo por estar revigorada com a
peça. Aplaudi a imensa atriz que estava à minha frente. Agora que já se
passaram alguns dias, sei que aplaudo também a escolha de Bartleby. Mas ainda
não sei se só aplaudi de pé por que não tive coragem de
dizer que preferiria não.
*Laura Backes é atriz
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