quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Preferiria não? por Laura Backes


A que você preferiria dizer não?
 
Antes de ir assistir Preferiria não? de Denise Stoklos perambulei pela internet para saber um pouco mais sobre o espetáculo. Baseado no conto Bartleby, o escrivão, do estadunidense Melville, o personagem título dá eco a um tema que há muito tem me atraído: a necessidade de agir no mundo de forma desapegada. Desapegada de convenções, desapegada do comércio de afetos, desapegada do consumo. Em um tempo que nos impõe diversos must have, must do, must see - que nos oferece uma avalanche de imagens, textos, ideias - criar espaços vazios para si, para o mundo, é imensamente necessário. A que preferiríamos dizer não? 
No conto - que Denise reproduz no palco mesclado a comentários pessoais sobre política e sobre as exigências impostas a artistas no mundo dos editais e patrocínios - Bartleby é um funcionário de um escritório que começa a dizer “Preferiria não [fazer]” às diversas tarefas que lhe são pedidas. Entre intrigado e encantado, alternando raiva e pena, seu patrão é incapaz de confrontá-lo.  
Há algum tempo tenho me dado conta que também eu tenho me encantado com personagens que apresentam essa recusa às convenções mundanas. Eles aparecem nos filmes que mais me marcaram ao longo da minha vida, apresentando esse desapego sob diversas facetas.
Há o sábio ermitão arquetípico Dersu Uzala (do Kurosawa), que vive em meio às florestas. Ou o jovem retratado por Sean Pean em Na natureza selvagem – baseado em uma história real - que recusa seu passado burguês e queima todo o seu passado em busca de um contato desapegado com o mundo e a natureza, mas cuja ingenuidade em dimensionar sua pouca experiência lhe reserva um fim fatal. 
Um outro personagem marcante é a mochileira vivida por Sandrine Bonnaire em Sem teto nem lei, de Agnès Varda, que em seu caminho recusa qualquer comércio afetivo, qualquer dever de civilidade: reage ao presente, somente isso. Há ainda aqueles o que recolhe para se dedicar à arte como o músico de Todas as manhãs do mundo, de Alain Corneau. 
Entretanto, a recusa de Bartleby é mais extrema. Ele não almeja nenhuma sabedoria, nenhuma transcendência, nenhuma aventura. Até chegar ao extremo de recusar comida, recusar à vida: morrer. Denise alerta na peça que psicanalistas o veem como esquizofrênico: nem desejo sequer ele tem. E filósofos como um ícone da desobediência civil, o exercício do livre arbítrio em sua totalidade: parar o sistema. Mas ele não quer ser ninguém e espelha nossa vontade de também abrir mão de tudo. De não querer ter uma utilidade, um fim. Sua loucura expõe nossas feridas. Desconfia daquele que se encaixa demasiadamente ao sistema doentio do mundo.
Ao começar o espetáculo não se tem dúvida nenhuma do domínio que Denise tem de seu corpo (ela desenha gestos no espaço absolutamente precisos) e voz (projetada, clara, cheia de nuances). Ela nos transporta para onde ela quer transportar. O palco é quase nu: estantes de partituras espalhadas, com livretos no qual se lê o nome de Bartleby; uma mesa. O domínio se estende ao tempo cômico. Vários aplausos em cena aberta. Como quando ela diz que cagar e andar é o suprassumo da maturidade.
Também eu ri. Mas aos poucos parei. O excesso de piadas passou a me incomodar. Parecia-me que os gestos eram excessivos, que eram demasiadas as piadas, que elas não estavam ali para ajudar a penetrar na beleza da recusa de Bartleby: a beleza de ser inútil, de NÃO SERVIR. A sensação que tenho é que Denise não conseguiu se despojar totalmente de suas muletas, não abriu mão do riso fácil do público.Que ainda não consegue dizer não a muitas coisas às quais ela gostaria. Não ousou se entregar totalmente à beleza selvagem da inutilidade.
Bartleby pede menos. Ele pede um despir-se de qualquer excesso. O essencial: um lugar pra dormir, um pequeno pedaço de queijo envolto no jornal. É justo na cena na qual o narrador/patrão examina os humildes pertences de Bartleby que o espetáculo revela sua alma. 
Ao final da peça, resisti um pouco, mas por fim levantei pra aplaudir. Mas não estava aplaudindo por estar revigorada com a peça. Aplaudi a imensa atriz que estava à minha frente. Agora que já se passaram alguns dias, sei que aplaudo também a escolha de Bartleby. Mas ainda não sei se só aplaudi de pé por que não tive coragem de dizer que preferiria não.
 
*Laura Backes é atriz

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