Com o Rei, morre uma oportunidade
Num cenário com clima onírico se desenvolve a trama de El rey se muere, espetáculo uruguaio criado a partir do texto de Eugène Ionesco, no qual o personagem central (rei Berenguer) tem seu encontro com a morte marcado desde o início da peça.
Elementos cênicos cujos materiais são leves e claros nos remetem imediatamente a um tempo passado, no qual o contato com o onírico era entendido frequentemente como um acesso do homem a uma dimensão desconhecida e, mesmo, próxima do divino. Daí, creio, seja proveniente a escolha deste ambiente para a ocasião de tratar deste tão caro tema ao ser humano que é o da morte.
Com um elenco notavelmente experimentado, o espetáculo tem marcações precisas e soluções de cena bastante funcionais.
A velocidade sempre ágil da encenação é sustentada de forma competente pelos seis atores, desde a abertura da peça – constituída pela apresentação do rei Berenguer. A decisão por este ritmo que se constrói sob o olhar do espectador foi tomada, ao que pude observar, na busca pelo tempo da comédia de Ionesco. Esta, por sinal, é composta por uma estrutura muito particular. Considero o humor do autor romeno tão específico quanto difícil de ser alcançado e executado com primor. O absurdo de suas comédias precisa ser procurado nos detalhes. O texto sinaliza aos criadores, muitas vezes, por uma linguagem metafórica aquilo que poderá ser aproveitado em cena, e se faz necessário estarmos atentos às suas indicações.
Um dos principais traços da obra de Ionesco é a proposta de levar os personagens e cenas a extremos. E é aí que, em minha opinião, El rey se muere do grupo uruguaio deixa um pouco a desejar. As atuações são um misto dos estilos farsesco, naturalista e melodramático. Porém, falta brilho (na falta de palavra melhor) no desempenho – e nos olhos – dos atores. Talvez isto tenha ocorrido apenas na ocasião em que assisti, por se tratar de uma apresentação em uma noite extremamente chuvosa, com um público que não preenchia a lotação do teatro. Nunca saberei, pois eis a tão complexa fatalidade do teatro, com a qual todos nós, que a este ofício nos dedicamos, temos de lidar: ele existe de forma única a cada noite. O que passou não se resgatará jamais. Por isso não tenho como afirmar se o aparente desânimo em alguns momentos dos atores se deve às condições singulares da noite em que presenciei a obra uruguaia. O fato é que, durante a encenação, tive a sensação de que a escolha pelo exagero, condizente com o texto original, não chegou a se concretizar em alguns momentos. Existe uma proposta de busca pelos extremos a cada cena, mas por vezes não atinge seu grau máximo. As marcações são muito bem executadas pelos atores, mas nem sempre o jogo acontece. As cenas não apresentam grandes surpresas de uma para a outra, então não vi também evolução na encenação.
O conflito cênico se estabelece a partir da evidência da morte do rei: este já não tem direito ao seu poder e não consegue se conformar. Neste personagem aparecem questões humanas de grande valor, e nisto consiste um dos dois maiores méritos do espetáculo: a validade de seu tema. A ruína, a caminhada rumo ao fim e o desejo de deixar um legado são abordados de forma comovente em alguns momentos. Da rainha à empregada, todos acusam Berenguer de suas injustiças enquanto governou. Em instantes já o estão tratando com glórias demasiadas (muitas delas nem mesmo verdadeiras dentro da ficção estabelecida), devido à hipocrisia que socialmente prevalece frente à morte de alguém. Enquanto isso, o moribundo pergunta à sua corte (e em verdade não querendo enfrentar a crueldade da resposta): “Por quanto tempo vão lembrar-se de mim?”. Complexa e comovente abordagem.
O segundo (e fundamental) mérito do espetáculo é o momento em que, sob meu ponto de vista, o acontecimento teatral atinge seu ápice na encenação criada. O ponto alto do espetáculo é a reflexão sobre o fardo do poder, significativamente trabalhada pelas palavras “isto não és tu”, tão bem ditas por Carla Moscatelli a Roberto Bornes. É neste momento em que o discurso aborda questões como imagem e máscaras que se vê o teatro que a atriz sabe fazer com excelência: até sua respiração consegue nos comover.
Paradoxalmente, a cena mais forte é exatamente o ponto mais frágil da encenação, pois é aí que percebemos que talvez a decisão inicial possa ter sido equivocada. O teatro que a grande atriz sabe fazer de melhor é outro, que não o estilo de peça adotado pela trupe. Anne Bogart diz que a escolha é sempre um ato de violência, no teatro. Afirma, no entanto, que esse ato violento é uma condição necessária para todos os artistas. Fico pensando, após assistir El rey se muere, o quanto, por vezes, sem consciência, mergulhados em nossos processos, somos fragilizados por nossa própria sensibilidade artística. Naquele que considero o melhor momento desta peça, ela nos revela a oportunidade que perdemos de assistir uma montagem de excelência, não fosse a escolha feita.
Simbolicamente, o grande clímax do espetáculo é justamente neste estilo tão diverso daquele em que o todo se desenvolve: quando o rei se vê abandonado por todos, é a primeira esposa a única que o acompanha no fatídico momento. Com a mão estendida, é ela que o conduz à morte. É o momento mais intimista desta obra. O silêncio eleva a plateia e a suspende. Há apenas uma luz recortada. O restante do palco, todo o tempo muito iluminado, agora é invadido por uma escuridão sombria. Aprecio este momento, especialmente, e volto satisfeita para casa.
*Desirée Pessoa é diretora de teatro e atriz. Diretora do Grupo Neelic e mestre em Artes Cênicas pela UFRGS
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