terça-feira, 25 de setembro de 2012

Antes do silêncio por Tatiana Cardoso


Antes do silêncio, montagem mineira, é uma livre adaptação da obra de Samuel Beckett., em que o excelente ator Rodolfo Vaz contracena com a atriz Kelly Criffer. A imagem inicial é sugestiva: o ator sentado de costas pra plateia, com o chapéu apoiado nos ombros, parecendo um espécie de homem sem cabeça ou então de uma cabecinha esmagada pelo peso do mundo. O cenário, um amontoado de cadeiras, cama, objetos empilhados, lembram uma casa abandonada, um beco ou um lugar em ruínas. Uma grande janela atrás, que serve de sugestão de interior e algumas vezes também de exterior, de onde a mulher aparece aos olhos do homem.  
No início da peça o homem, ainda de costas, levanta lentamente o chapéu e no lugar da cabeça, o vazio. Em seguida leva a cabeça ao chapéu, criando um gesto potente de significados, por ser exatamente o contrário do habitual.  
O personagem conta quando seu pai diz: Chegou a hora de você ter seu chapéu. E o filho homem, narrador de sua história, comenta diretamente ao público: Como se o chapéu já existisse antes, como se já estivesse em um lugar determinado. E lemos que talvez o vazio do buraco do chapéu ou o oco do seu mundo já esperasse sua cabeça, de antemão. Um bom começo que é amassado por um texto sem fim.  
O ator personagem muito próximo do proscênio dirige-se diretamente à plateia narrando fragmentos de sua vida e destrinchando sua visão de mundo, sua condição  diante de sua história e sobretudo diante das lembranças de uma mulher.  
Os momentos em que a cena sugere a lembrança do velho, quando a lembrança se torna corporificação de um encontro impedido pela própria impotência diante do amor, em jogos de sensualidade e desconforto do homem são os momentos mais potentes da peça, criando imagens que quase chegam a nos lembrar da realidade árida do mundo de Beckett.  
Mas o texto é o mais importante na peça, sendo apresentado o tempo todo numa narração do personagem com o público, num discurso direto. Alguém que fala, fala e fala e justamente por isso cria uma incongruência entre o discurso e a ação - a ideia de criar espaços entre as palavras – de criar espaço para o silêncio ou de prepará-lo.  
Antes do silêncio é fala e uma fala fechada, toda dada pela voz do personagem que não gera suporte para os vazios e para o inusitado de personagens presos em um mundo sem saídas, que o próprio Beckett propõe o tempo todo em sua obra. O silêncio do título, o silêncio irreversível da escuta e do acontecimento quase não tem vez na peça, o que gera uma espécie de previsibilidade e monotonia restritiva e não potente, apesar de ser claro que não é isso que o grupo quer passar. Sou posta mais como ouvinte passiva das palavras do homem que como testemunha de um pensamento, de um movimento que estaria escondido por detrás destas palavras. Isso não me permite criar relações com um outro tempo, com um outro mundo, ou seja, com a de outros homens ou com a  minha própria realidade de espectadora, que não aquela daquele homem específico e suas voltas com suas lembranças. Essa restrição do discurso, tão direta, leva a lugares predeterminados, ou seja de um teatro fechado, dado, previsível.  
Mas claro, nem tudo é só formalmente fechado, acontecem boas escolhas de algumas ações que são mais abertas simbolicamente, como o giro do homem com um braço nas costas como a de um cachorro correndo atrás do próprio rabo, o jogo quente e sensual entre os atores e a imagem final do homem assistindo imobilizado o vulto distante da mulher pela janela, um não amor, um não encontro, uma não realização diante da vida.  
Destaco o desenho incrivelmente sensível da luz, que engrandece as intenções da montagem criando um clima denso, quente, profundo. A iluminação sim estimula nossa imaginação e nos transporta prum mundo mortalmente vivo, humano, cheio de contornos, arestas, sombras e mistério.  
Apesar de em alguns momentos as palavras de Beckett se elevarem e retumbarem aos nossos ouvidos diante do aparato cênico, em Antes do silêncio o texto é dado - como encenação e não como atuação - num ritmo monótono e linear perdendo sua força justamente porque é um texto que deveria ser ouvido, visto, sentido, como um corpo por si só. Confesso que pra mim o resultado final beira mais a um filme noir – sem querer menosprezar os filme noir, que adoro, mas simplesmente porque parece que aquele espaço vazio preenchido pela encenação não parece que toca no ponto que se inspira, o de um mundo sem saída, sem lugar, tragicômico e delirante de Beckett.  
Gostei muito do seu poeminha disse alguém a Mario Quintana. Obrigada pela sua opiniãozinha respondeu o poeta. Pois essa é minha opiniãozinha: Assisti à peça sem me deixar afetar – apesar de ter querido. 
 
*Tatiana Cardoso é atriz, professora da graduação em Teatro: Licenciatura da UERGS e diretora do Teatro Torto

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