segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Esta criança por Mauricio Guzinski

 
Se não havia “estremecido”, ainda, diante de um texto do dramaturgo francês Joël Pommerat, que eu só conhecera há muito pouco, através da recente montagem da Cia. Stravaganza, com seu talentoso e expressivo elenco (dos quais sou fã, de carteirinha), além de tudo, muito bem conduzidos pela jovem e muito talentosa Camila Bauer (diretora, totalmente arrebatada pela escrita desse autor que ela havia conhecido, através de estudos recentes, na França), reconheço minha ignorância, preciso admitir que, agora sim: “ESTREMEÇO” (com maiúsculas, como no título dessa encenação gaúcha).
Literalmente: estremeci! Rendo-me! Entrego-me! Curvo-me! Fiquei, absolutamente, perturbado com a contundência e a oportunidade das palavras desse autor, diante das dez cenas, de tirar o fôlego, que ele propõe para abordar as mazelas das relações entre pais e filhos.
O dramaturgo e encenador Joël Pommerat nasceu, há 50 anos, em  Roanne, na França. Aos 12, descobriu sua grande paixão, o Teatro. Começou a escrever, em 1985; fundou a Louis Brouillard, sua própria companhia, em 90; buscou um sistema de trabalho para construir, conjuntamente, texto e encenação, até se tornarem indissociáveis. Criou seus primeiros espetáculos no Théâtre de la Main d'Or, em Paris; não monta senão os seus próprios textos. Suas obras misturam temas sociais contemporâneos a preocupações metafísicas. Ao todo: vinte seis peças dramatúrgicas, iniciadas com “Le Chemin de Dakar” (1990), incluindo “Cet enfant” [“Esta criança”] (2006) e “Je tremble” [“Estremeço”] (2008). Lamentável (e, ao mesmo tempo, orgulhosamente), chegam até nós, apenas duas de suas criações, com cinco ou sete anos de defasagem, através da Cia. Stravaganza, de Porto Alegre, e da Companhia Brasileira de Teatro, de Curitiba (ambas, fora do eixo!).
A Companhia Brasileira de Teatro foi criada, por Márcio Abreu, em 1999/2000. Iniciou suas atividades reunindo um núcleo de profissionais dispostos a trabalhar na criação de espetáculos, processos, e a pensar o teatro a cada projeto realizado. Um espaço para a pesquisa, a criação e a produção. Algumas vertentes e linhas de atuação são identificadas na sua trajetória: criação de dramaturgia original, releitura de clássicos, encenação e tradução de dramaturgia contemporânea inédita. Com a encenação de Oxigênio, a Cia. lançou no Brasil e, depois, trouxe  à nossa cidade a obra do dramaturgo siberiano Ivan Viripaev, completamente inédita no país. A obra de Viriapev tem forte identificação com o trabalho da companhia. “A musicalidade da palavra expressa no texto, a forma de se colocar diante do público e a revisão do teatro como forma de contato com a plateia são apenas alguns dos elementos que nos conquistaram.”(...) “O texto trata de assuntos contemporâneos como violência, terrorismo, racionalidade, consumismo. Discute tudo isso investigando sobre o que é essencial na existência”, revela o diretor, Márcio Abreu, no site oficial da Cia.
Esta criança, espetáculo que me fez estremecer, ontem, sete de setembro de 2013, trouxe ao palco do Theatro São Pedro, não apenas as raízes do teatro francês, centradas no prazer do texto, no gosto pela palavra “bem escrita”, para ser “bem dita” através do corpo-voz de um ator virtuoso, no palco, um ator que também aprendeu “a bem pensar”, a filosofar com seus antepassados. O texto de Pommerat é mais, muito mais, é um tratado, altamente engenhoso, finamente construído, cenicamente bem desenvolvido e encadeado, sobre a psicologia das  relações humanas, as mais básicas, as de pais e filhos.
Finalmente eu vou poder me olhar no espelho. Todas as manhãs eu vou encontrar forças para ter finalmente o controle sobre a minha vida. Esta criança vai me dar forças. Eu vou mostrar aos outros quem eu sou. (...) Meu filho vai ter orgulho de ser meu filho.” Primeiras falas de Renata Sorrah, na peça, como uma “futura” mãe, “pretensamente”, grávida. Pois nada é real ou realista, ali, apesar de, extrema e paradoxalmente, verdadeiro. “Não sabemos quem é essa mulher, qual o seu nome, de onde ela vem, de quantos meses ela está grávida... por acaso ela está grávida?”. Nada indica isso, afirma Renata, em matéria publicada, em O Globo/Cultura de 04 de novembro de 2012, para promover a estreia carioca do texto de Pommerat, estreado, bem antes, em Curitiba. “Não podemos determinar se é ou não verdadeira. E é justamente esse o objetivo de quem a escreveu”:
Com meios que são artifícios, procuro o real, não a verdade” (...) “só a realidade me interessa”, diz o autor e diretor francês no documentário Teatro em presença.
Na mesma matéria, confirma Abreu: “Não há a curva dramática do realismo. Não contamos uma história prévia que leva a tal situação. Simplesmente a situação está dada. Mostramos o clímax.” Renata prossegue: “No há uma reflexão sequer sobre o tema. Há, em vez disso, um campo de troca de forças, em que as disputas por espaço, afeto, cumplicidade e reconhecimento não são elaboradas mentalmente ou verbalizadas, mas reveladas através da ação ou da inércia, da palavra ou do silêncio dos atores — a reflexão fica por conta do espectador”.
O texto foi sugerido a Renata por ninguém menos do que Ariane Mnouchkine, em Paris. O destino aproximou Sorrah e Abreu, na capital francesa. Sorte nossa. Os dados foram muito bem lançados, eles planejam encenar juntos, este ano ainda, Krum, do dramaturgo israelense Hanoch Levin. Longa vida a esta importante parceria! Mais sorte, ainda, para todos nós.
Lamentei, profundamente, que minha amiga, terapeuta e psicóloga, Evânia Reichert, autora de Infância, idade sagrada – obra fundamental para quem se debruça, hoje, sobre o tema da criação do ego na criança a partir da experiência desta com seus pais; livro publicado no Brasil, na Espanha e em outros países hispano hablantes – não tenha tido a oportunidade de conhecer esta obra que está entre as principais atrações do 20º Porto Alegre em Cena (infelizmente, despedi-me dela, no aeroporto, anteontem! Quando ela embarcava para realizar mais um trabalho da “Escola Aberta Vale do Ser” (da qual é uma das mentoras), na cidade de Santa Rosa/RS; jornada em que outra amiga comum, Laura Backes, é uma participante. Lamento não estar, lá, com elas; mais ainda por elas não estarem, aqui, comigo, nesse momento tão fecundo, tão fértil para a nossa arte e para a compreensão do humano).
Em pouco mais de uma hora de performance, o texto de Pommerat desnuda todos os possíveis ângulos dessa questão que é a base do modo ocidental de enfrentar a vida. Mostra os desejos de quem vai ser mãe e quer dar ao filho algo diferente, melhor do que a educação perniciosa recebida por ela, antes; a rebeldia do filho diante do modelo apresentado por seu pai; a “indiferença teimosa” de outra filha que não quer atingir “a luz” oferecida pela “bem-intencionada” mãe; a jovem progenitora que não se sente capaz de amar ao próprio bebê e, portanto, prefere entregá-lo a um casal de estranhos (que o fará feliz?!); a incapacidade de perdoar aos erros de nossos pais; a recusa de duas mães em erguer o lençol, no necrotério, para aceitar o reconhecimento e a morte do próprio (?!) rebento; a dificuldade de abandonar o útero e/ou de cortar o cordão umbilical que nos aprisiona, a nós e ao outro.
Não bastasse a excelência do texto, ele vem embalado, primorosamente, por quatro excelentes atores – Renata Sorrah (também criadora e realizadora do espetáculo), Giovana Soar, Ranieri Gonzalez e Edson Rocha – que se revezam, de forma surpreendente e em pé de igualdade com a parceira ilustre e exímia atriz, entre todas as funções propostas pelo dramaturgo. Quatro ótimos atores que defendem, igualmente, com unhas e dentes, cada palavra do autor; todas “as verdades” de suas personagens; e cada proposta do encenador, o jovem Márcio Abreu.
O cenário, criado por Fernando Marés, com assistência de Eloy Machado, além de belo, preciso, pertinente e eficiente (ao deslizar uma parede inteira, acompanhando o movimento de uma das mães, representada por Renata, enquanto esta busca, desesperadamente, o abraço do filho de dez anos, que criou apartado do pai) faz parceria perfeita com a iluminação de Nadja Naira, com o brilhantismo das atuações, com a simplicidade e eficiência dos figurinos de Valéria Stefani (trocados pelos atores, aos olhos do público, que também se transforma em personagem, volta e meia, devido às cenas e à luz na plateia, aumentando, ainda mais, nossa cumplicidade com os atores e suas múltiplas facetas, personas, máscaras), a trilha de Felipe Storino e a preparação vocal de Babaya são soberbas e tornam ainda mais sublimes determinados pontos da encenação, criteriosamente, eleitos pelo diretor. Tudo e todos, como nos melhores “trabalhos de grupo”, contribuem para a grandeza do espetáculo, para evidenciar as perspectivas distorcidas que as personagens de Pommerat oferecem ao espectador, nessa encenação de Abreu.
O riso e as lágrimas de identificação são frequentes. Não posso deixar de destacar o momento em que o filho violento grita, verdadeiramente enfurecido, ao pai acomodado: “EU NÃO TE ESCOLHI!”. Ninguém escolhe (tão óbvio), nem eu (tão perturbador e certeiro)... duas grossas lágrimas brotaram de meus olhos e escorreram, face a baixo, embaçaram as lentes de meus óculos. Tive de conter os soluços e aceitar o lenço de papel, oportuna e prestimosamente, oferecido por minha cúmplice e esposa.
Parabéns a toda a equipe, a Pommerat, a Sorrah (por estar inteira, ali, humildemente, como condiz aos grandes artistas, ao lado de seus parceiros de elenco, nessa belíssima e desafiante empreitada que é trabalhar em grupo para criar algo tão digno, tão inquietante e transformador como esse Espetáculo Teatral, Teatro Maiúsculo), a Abreu por concatenar tudo isso com maestria absoluta.
Todas as indicações e prêmios nacionais arrebatados pela Companhia Brasileira de Teatro, do Paraná e do Rio de Janeiro, em 2012, são absolutamente MERECIDOS! Não há como não aplaudir de pé a Esta criança (que sua infância, daqui para frente, seja mesmo “sagrada”, Evânia! Abreu! Renata! Pommerat!), quero continuar gritando, emocionado, entusiasmado: “BRAVO! BRAVO! BRAVO!”, muitas e muitas vezes, enquanto houver folego! Obrigado, muito obrigado por mostrarem, a mim e a todos, que o Teatro continua vivo! Resiste firme! Dignamente, de pé! A despeito do desinteresse generalizado que demonstram “pais-políticos-bem-intencionados”, de todos os partidos, diante da Cultura e da Arte de nosso triste país do futebol, conchavos e falcatruas (A esses pais, manipuladores de marca maior, “agradecemos”: Obrigado, senhores parlamentares, pela meia-entrada que nós, artistas e produtores, pagamos de nossos próprios bolsos, e não dos cofres públicos, para os menos favorecidos! Mais um excelente exemplo do “paiternalismo” hipócrita vigente nos mecanismos sociais da Cultura Brasileira! Como deixamos passar mais este decreto?!?). Federico Garcia Lorca, meu ídolo, meu ícone, heroicamente, dizia: “Um país que descuida seu Teatro está morto ou moribundo!”. Ele foi fuzilado pelas tropas de Franco, há tanto tempo... tão distante, daqui...
* Mauricio Guzinski é ator, diretor e professor de teatro

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