Se não havia “estremecido”, ainda, diante de um
texto do dramaturgo francês Joël Pommerat, que eu só conhecera há muito pouco,
através da recente montagem da Cia. Stravaganza, com seu talentoso e expressivo
elenco (dos quais sou fã, de carteirinha), além de tudo, muito bem conduzidos
pela jovem e muito talentosa Camila Bauer (diretora, totalmente arrebatada pela
escrita desse autor que ela havia conhecido, através de estudos recentes, na
França), reconheço minha ignorância, preciso admitir que, agora sim:
“ESTREMEÇO” (com maiúsculas, como no título dessa encenação gaúcha).
Literalmente: estremeci! Rendo-me! Entrego-me!
Curvo-me! Fiquei, absolutamente, perturbado com a contundência e a oportunidade
das palavras desse autor, diante das dez cenas, de tirar o fôlego, que ele
propõe para abordar as mazelas das relações entre pais e filhos.
O dramaturgo e encenador Joël Pommerat nasceu, há
50 anos, em Roanne, na França. Aos 12,
descobriu sua grande paixão, o Teatro. Começou a escrever, em 1985; fundou a Louis Brouillard, sua própria companhia,
em 90; buscou um sistema de trabalho para construir, conjuntamente, texto e
encenação, até se tornarem indissociáveis. Criou seus primeiros espetáculos no Théâtre de la Main d'Or, em Paris; não
monta senão os seus próprios textos. Suas obras misturam temas sociais
contemporâneos a preocupações metafísicas. Ao todo: vinte seis peças
dramatúrgicas, iniciadas com “Le Chemin
de Dakar” (1990), incluindo “Cet
enfant” [“Esta criança”] (2006) e “Je tremble” [“Estremeço”] (2008). Lamentável (e, ao mesmo tempo,
orgulhosamente), chegam até nós, apenas duas de suas criações, com cinco ou
sete anos de defasagem, através da Cia. Stravaganza, de Porto Alegre, e da
Companhia Brasileira de Teatro, de Curitiba (ambas, fora do eixo!).
A Companhia
Brasileira de Teatro foi criada, por Márcio Abreu, em 1999/2000. Iniciou suas
atividades reunindo um núcleo de profissionais dispostos a trabalhar na criação
de espetáculos, processos, e a pensar o teatro a cada projeto realizado. Um
espaço para a pesquisa, a criação e a produção. Algumas vertentes e linhas de
atuação são identificadas na sua trajetória: criação de dramaturgia original,
releitura de clássicos, encenação e tradução de dramaturgia contemporânea
inédita. Com a encenação de Oxigênio,
a Cia. lançou no Brasil e, depois, trouxe à nossa cidade a obra do dramaturgo siberiano Ivan
Viripaev, completamente inédita no país. A obra de Viriapev tem forte
identificação com o trabalho da companhia. “A musicalidade da palavra expressa
no texto, a forma de se colocar diante do público e a revisão do teatro como
forma de contato com a plateia são apenas alguns dos elementos que nos
conquistaram.”(...) “O texto trata de assuntos contemporâneos como violência,
terrorismo, racionalidade, consumismo. Discute tudo isso investigando sobre o
que é essencial na existência”, revela o diretor, Márcio Abreu, no site oficial
da Cia.
Esta criança, espetáculo que me fez estremecer, ontem,
sete de setembro de 2013, trouxe ao palco do Theatro São Pedro, não apenas as
raízes do teatro francês, centradas no prazer do texto, no gosto pela palavra “bem
escrita”, para ser “bem dita” através do corpo-voz de um ator virtuoso, no
palco, um ator que também aprendeu “a bem pensar”, a filosofar com seus
antepassados. O texto de Pommerat é mais, muito mais, é um tratado, altamente
engenhoso, finamente construído, cenicamente bem desenvolvido e encadeado,
sobre a psicologia das relações humanas,
as mais básicas, as de pais e filhos.
“Finalmente eu vou poder me olhar no espelho.
Todas as manhãs eu vou encontrar forças para ter finalmente o controle sobre a
minha vida. Esta criança vai me dar forças. Eu vou mostrar aos outros quem eu
sou. (...) Meu filho vai ter orgulho de ser meu filho.” Primeiras falas de
Renata Sorrah, na peça, como uma “futura” mãe, “pretensamente”, grávida. Pois
nada é real ou realista, ali, apesar de, extrema e paradoxalmente, verdadeiro. “Não sabemos quem é essa mulher, qual o seu
nome, de onde ela vem, de quantos meses ela está grávida... por acaso ela está
grávida?”. Nada indica isso, afirma Renata, em matéria publicada, em O
Globo/Cultura de 04 de novembro de 2012, para promover a estreia carioca do texto
de Pommerat, estreado, bem antes, em Curitiba. “Não podemos determinar se é ou não verdadeira. E é justamente esse o
objetivo de quem a escreveu”:
“Com meios
que são artifícios, procuro o real, não a verdade” (...) “só a realidade me interessa”, diz o
autor e diretor francês no documentário Teatro
em presença.
Na mesma matéria, confirma Abreu: “Não há a curva dramática do realismo. Não
contamos uma história prévia que leva a tal situação. Simplesmente a situação
está dada. Mostramos o clímax.” Renata prossegue: “No há uma reflexão sequer sobre o tema. Há, em vez disso, um campo de
troca de forças, em que as disputas por espaço, afeto, cumplicidade e
reconhecimento não são elaboradas mentalmente ou verbalizadas, mas reveladas
através da ação ou da inércia, da palavra ou do silêncio dos atores — a
reflexão fica por conta do espectador”.
O texto foi sugerido a Renata por ninguém menos do
que Ariane Mnouchkine, em Paris. O destino aproximou Sorrah e Abreu, na capital
francesa. Sorte nossa. Os dados foram muito bem lançados, eles planejam encenar
juntos, este ano ainda, Krum, do
dramaturgo israelense Hanoch Levin. Longa vida a esta importante parceria! Mais
sorte, ainda, para todos nós.
Lamentei, profundamente, que minha amiga, terapeuta
e psicóloga, Evânia Reichert, autora de Infância,
idade sagrada – obra fundamental para quem se debruça, hoje, sobre o tema
da criação do ego na criança a partir da experiência desta com seus pais; livro
publicado no Brasil, na Espanha e em outros países hispano hablantes – não tenha tido a oportunidade de conhecer esta
obra que está entre as principais atrações do 20º Porto Alegre em Cena (infelizmente, despedi-me dela, no
aeroporto, anteontem! Quando ela embarcava para realizar mais um trabalho da
“Escola Aberta Vale do Ser” (da qual é uma das mentoras), na cidade de Santa
Rosa/RS; jornada em que outra amiga comum, Laura Backes, é uma participante.
Lamento não estar, lá, com elas; mais ainda por elas não estarem, aqui, comigo,
nesse momento tão fecundo, tão fértil para a nossa arte e para a compreensão do
humano).
Em pouco mais de uma hora de performance, o texto
de Pommerat desnuda todos os possíveis ângulos dessa questão que é a base do
modo ocidental de enfrentar a vida. Mostra os desejos de quem vai ser mãe e
quer dar ao filho algo diferente, melhor do que a educação perniciosa recebida por
ela, antes; a rebeldia do filho diante do modelo apresentado por seu pai; a
“indiferença teimosa” de outra filha que não quer atingir “a luz” oferecida pela
“bem-intencionada” mãe; a jovem progenitora que não se sente capaz de amar ao
próprio bebê e, portanto, prefere entregá-lo a um casal de estranhos (que o
fará feliz?!); a incapacidade de perdoar aos erros de nossos pais; a recusa de
duas mães em erguer o lençol, no necrotério, para aceitar o reconhecimento e a
morte do próprio (?!) rebento; a dificuldade de abandonar o útero e/ou de
cortar o cordão umbilical que nos aprisiona, a nós e ao outro.
Não bastasse a excelência do texto, ele vem
embalado, primorosamente, por quatro excelentes atores – Renata Sorrah (também
criadora e realizadora do espetáculo), Giovana Soar, Ranieri Gonzalez e Edson
Rocha – que se revezam, de forma surpreendente e em pé de igualdade com a
parceira ilustre e exímia atriz, entre todas as funções propostas pelo
dramaturgo. Quatro ótimos atores que defendem, igualmente, com unhas e dentes,
cada palavra do autor; todas “as verdades” de suas personagens; e cada proposta
do encenador, o jovem Márcio Abreu.
O cenário, criado por Fernando Marés, com
assistência de Eloy Machado, além de belo, preciso, pertinente e eficiente (ao
deslizar uma parede inteira, acompanhando o movimento de uma das mães,
representada por Renata, enquanto esta busca, desesperadamente, o abraço do
filho de dez anos, que criou apartado do pai) faz parceria perfeita com a
iluminação de Nadja Naira, com o brilhantismo das atuações, com a simplicidade
e eficiência dos figurinos de Valéria Stefani (trocados pelos atores, aos olhos
do público, que também se transforma em personagem, volta e meia, devido às
cenas e à luz na plateia, aumentando, ainda mais, nossa cumplicidade com os
atores e suas múltiplas facetas, personas, máscaras), a trilha de Felipe
Storino e a preparação vocal de Babaya são soberbas e tornam ainda mais
sublimes determinados pontos da encenação, criteriosamente, eleitos pelo
diretor. Tudo e todos, como nos melhores “trabalhos de grupo”, contribuem para
a grandeza do espetáculo, para evidenciar as perspectivas distorcidas que as
personagens de Pommerat oferecem ao espectador, nessa encenação de Abreu.
O riso e as lágrimas de identificação são frequentes.
Não posso deixar de destacar o momento em que o filho violento grita,
verdadeiramente enfurecido, ao pai acomodado: “EU NÃO TE ESCOLHI!”. Ninguém
escolhe (tão óbvio), nem eu (tão perturbador e certeiro)... duas grossas
lágrimas brotaram de meus olhos e escorreram, face a baixo, embaçaram as lentes
de meus óculos. Tive de conter os soluços e aceitar o lenço de papel, oportuna
e prestimosamente, oferecido por minha cúmplice e esposa.
Parabéns a toda a equipe, a Pommerat, a Sorrah (por
estar inteira, ali, humildemente, como condiz aos grandes artistas, ao lado de
seus parceiros de elenco, nessa belíssima e desafiante empreitada que é
trabalhar em grupo para criar algo tão digno, tão inquietante e transformador
como esse Espetáculo Teatral, Teatro Maiúsculo), a Abreu por concatenar tudo
isso com maestria absoluta.
Todas as indicações e prêmios nacionais arrebatados
pela Companhia Brasileira de Teatro, do Paraná e do Rio de Janeiro, em 2012, são
absolutamente MERECIDOS! Não há como não aplaudir de pé a Esta criança (que sua infância, daqui para frente, seja mesmo
“sagrada”, Evânia! Abreu! Renata! Pommerat!), quero continuar gritando,
emocionado, entusiasmado: “BRAVO! BRAVO! BRAVO!”, muitas e muitas vezes,
enquanto houver folego! Obrigado, muito obrigado por mostrarem, a mim e a
todos, que o Teatro continua vivo! Resiste firme! Dignamente, de pé! A despeito
do desinteresse generalizado que demonstram “pais-políticos-bem-intencionados”,
de todos os partidos, diante da Cultura e da Arte de nosso triste país do
futebol, conchavos e falcatruas (A esses pais, manipuladores de marca maior, “agradecemos”:
Obrigado, senhores parlamentares, pela meia-entrada que nós, artistas e
produtores, pagamos de nossos próprios bolsos, e não dos cofres públicos, para os
menos favorecidos! Mais um excelente exemplo do “paiternalismo” hipócrita vigente
nos mecanismos sociais da Cultura Brasileira! Como deixamos passar mais este
decreto?!?). Federico Garcia Lorca, meu ídolo, meu ícone, heroicamente, dizia:
“Um país que descuida seu Teatro está
morto ou moribundo!”. Ele foi fuzilado pelas tropas de Franco, há tanto
tempo... tão distante, daqui...
* Mauricio Guzinski é ator, diretor e professor de teatro
Nenhum comentário:
Postar um comentário