segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Esta criança por Natasha Centenaro


Esta criança: as relações familiares no espaço da casa
 
            É quando se entra em casa, que se descobre como realmente é o cotidiano de uma família, como são as relações das pessoas, entre si, e com os cômodos, com os móveis, os objetos. Nesse momento, é revelado o psicologismo de cada indivíduo dessa família, num microcosmo. Conforme Gaston Bachelard, em A poética do espaço (1960), toda ação está contida no espaço, mas para que essa se torne efetiva, é necessário permitir à imaginação que recorra ao inconsciente e busque evocá-lo, pois não se trata de uma descrição apenas. Para o autor, a casa, à primeira vista, é um objeto que possui uma geometria rígida, cuja linha reta domina. Funcionaria, assim, como um objeto resistente às metáforas de acolhimento do corpo e da alma. Essa ligação com o humano, entretanto, acontece de imediato, desde que se entenda a casa como um espaço de conforto e intimidade. A casa é um corpo de imagens próprias que garantem aos seus moradores razões ou ilusões de estabilidade. Ela tem sua verdadeira alma e psicologia. Esse estado de alma da casa pode refletir diferentes estágios, dentre esses, a casa-sofrimento pode ser percebida como extensão do corpo do próprio indivíduo refletindo tal espírito.
            As dez cenas curtas, esquetes, ou quadros, de Esta criança, originalmente em francês Cet Enfant, de autoria de Joël Pommerat, acontecem num espaço que poderia encaixar-se na definição de casa de Gaston Bachelard, com uma geometria rígida, mas que abriga a intimidade daqueles 22 personagens e possui alma própria. O retângulo vazado que avança às primeiras filas de assentos da plateia está posto de forma lateral, para que se possa enxergar o interior desta sala de apartamento, quarto de casa, sala de um hospital ou necrotério, hall de um edifício. Ao público é proposto que se aviste tudo assim, lateralmente, cujo olhar enviesado fica na dúvida se deve entrar de vez e penetrar à intimidade desses personagens ou ficar na soleira da porta, no limiar da invasão, do externo para o interno. Os próprios personagens movem-se com essa dinâmica, do exterior para o interior, do interior para o exterior, às vezes sem entrar totalmente, às vezes sem poder sair. As paredes pintadas de verde, como as paredes de muitas residências que eu conheço, os móveis, poucos, a poltrona, algumas cadeiras, que são modificadas de lugar conforme a cena (a sala de espera do necrotério, a sala da casa, o corredor do prédio). De maneira curiosa e ainda mais proposital ao efeito da alma desta casa, os vãos por onde a luz entra estão dispostos como se fossem janelas fixadas no teto. A alma desta casa acontece na peça e é ressaltada pelo cenário de Fernando Marés e pela iluminação, num jogo instigante e cativante de luz e sombra, de Nadja Naira (que faz também a assistência de direção). E é por isso, que esse espaço (a casa-retângulo) se transforma no elemento real buscado pelo texto de Pommerat, conquistado pelas atuações do elenco Giovana Soar, Edson Rocha, Ranieri Gonzalez e Renata Sorrah, e pela direção de Márcio Abreu.
            A busca pelo real. Sem reproduzi-lo. É o objetivo do texto do autor francês e de muitos dos trabalhos da Companhia Brasileira de Teatro, sediada em Curitiba. E que os porto-alegrenses puderam assistir em outras duas ocasiões, em 2012 no Festival Palco Giratório, com a peça Oxigênio, e neste ano, na Cena Paranaense do Festival do Teatro Brasileiro, com Vida, além da reapresentação da primeira. Assim como o texto do dramaturgo francês também é conhecido do público da capital, pois foi encenado pela Cia Stravaganza com Estremeço, ambos traduzidos pela atriz Giovana Soar (o de Esta criança com a colaboração de Lilian Ruth de Sá). A confluência desta procura pelo real parece ter encontrado o ápice nesta montagem. Ainda que sejam dispensados certos recursos característicos da CBT, como o teatro narrativo e a ausência irrestrita da quarta parede, ainda é possível perceber os momentos de interferência e de quebra narrativas, quando, por exemplo, os atores Ranieri Gonzalez e Edson Rocha cantam (uma das marcas da companhia: o uso da música ao vivo), antes de começar outro fragmento, ou nas cenas em que o elenco fala o texto voltado diretamente para o público, ou então, quando a luz, como quinto integrante deste elenco, ilumina a plateia e tenta, com isso, invocar o sentido de alteridade/identidade provocado por essas relações familiares e evocar lembranças: enxerguem-se, olhem-se, avistem-se, é você em casa, é a sua casa, você é mãe, pai, filho.
            A mãe que quer a felicidade e o melhor para o seu filho, esta criança tem que ser feliz, descontando de si mesma as próprias frustrações com a vida; a mãe que entrega o seu filho para que pais com melhores condições financeiras e, aparentemente, psicológicas, possa cuidá-lo; a assistente social que tenta resolver os conflitos de um filho que agride o pai, o qual não pode trabalhar; a mãe que se desculpa com a filha pelo tratamento e as cobranças; a mãe que busca no filho a solução para os seus problemas e a filha que não entende o pedido de um pai e a sua situação. Relações cotidianas. Vivenciadas em cena e fora dela. E por mais que a previsibilidade do desfecho do quadro em que as duas mães estão no necrotério para identificar o suposto corpo do filho de uma delas, o texto de Pommerat atinge o grau máximo de perturbação e revelação do que pode a alma de um indivíduo: o alívio por não ser o meu filho e o pavor por ser o filho da outra. É o riso. Para, em seguida, vir o pranto. Quase que simultâneos.
            Atuações que beiram o real, sem ser realistas. Se o exagero do riso dessa mãe ou o excesso dos gritos da mulher ao parir e da violência do filho para o pai contrastam com os gestos contidos, aprisionados, da mãe na poltrona e da classe, elegância, do casal ao receber a doção do filho pela progenitora, indicam o caminho escolhido pela direção de Márcio Abreu, em que nada é supérfluo, nem a entonação trabalhada ou a mão fechada. Os quatro atores se revezam nos papeis, em opções de equilíbrio (deixando vazar ou não permitindo tal acesso) os conflitos internos, as psicologias, as intimidades e as almas desses pais, mães, filhos. Não é possível destacar uma cena ou um intérprete, pois é o conjunto que prevalece. Embora, as duas cenas que, particularmente, a mim, motivaram-me a vasculhar o inconsciente e fixaram-se como novas referências imagéticas, foram a do parto e a da identificação do corpo. Eu sei que, ao me perguntar sobre partos e necrotérios, a minha mente acionará, instantaneamente, essas duas imagens. E ainda escuto: “Doutor, e se essa criança não quiser sair?”. Como eu tive medo de que, talvez, essas observações não quisessem saltar para o papel.
            Se, para Bachelard a casa pode garantir razões ou ilusões de estabilidade, o texto de Pommerat e a montagem da CBT parecem reafirmar esse discurso. As razões para a estabilidade, em certos momentos, não passam de meras ilusões para aqueles personagens. As paredes verdes, o teto e suas janelas, o aparente conforto da residência, a estabilidade física, a arquitetura rígida, as formas retas, negam a instabilidade emocional, as dúvidas, os desconfortos das relações familiares. Por outro lado, a casa também pode ser a evidência desse sofrimento, a verdadeira casa-sofrimento de Bachelard, e uma fenda surge na casa-retângulo, a parede do fundo se abre, o cenário é movido, já não há mais um ângulo reto entre as paredes, há um espaço aberto, uma lacuna, uma brecha, por onde essa relações de pais, mães, filhos e filhas escorre. É quando o filho fugiu da mãe dominadora. E se esvai pelo espaço. 
* Natasha Centenaro é mestranda em Letras – Escrita Criativa (PUCRS), jornalista e escritora

Um comentário:

Marcio Abreu disse...

Natasha, obrigado pelo seu texto. É raro encontrar a chance dessa qualidade de dialogo e reflexão sobre uma obra. Bravo!
Marcio Abreu.