A metafísica da fecalidade ou Quem não tiver pecado, que atire a primeira granada
Vou começar pelo fim. Este
ano, o Porto Alegre em Cena organiza,
ao final de algumas peças, um debate psicanalítico. Assim, com a mediação de um
psicanalista, uma tradutora e três integrantes da equipe italiana, o público
pode manifestar suas dúvidas e ouvir algo sobre o processo de criação da peça.
A coisa mais interessante foi saber que o tema da peça, o ícone sobre o qual
ela foi criada, foi uma reprodução da face de Jesus pintada por Antonello de
Messina (c.1430 - c. 1479), que o diretor Romeu Castellucci encontrou numa
revista de arte. Ele ficou tocado pelo olhar de Jesus e se perguntou o que o
público sentiria se tivesse esse olhar reproduzido no palco numa dimensão
gigante. A partir daí, ele concebeu um roteiro, e os atores criaram as ações
que reproduzem a relação entre um pai e um filho.
Depois da ótima análise do
psicanalista Jair Rodrigues Escobar, ouviu-se os atores falarem sobre o
processo e a dificuldade técnica para dar realismo às cenas fecais que
respondem por 80% da representação e são realmente muito fortes. Eu também fiz
uma pergunta, algo que para mim era a segunda coisa em importância (sendo a
primeira, a escatologia cênica): como o público italiano e a mídia reagiram ao
espetáculo que agredia, sujava e rasgava a face do filho de Deus. A resposta
foi que na Itália não houve problemas, nem em Roma, nem em outras localidades,
até que eles foram à França e, lá sim, uma ala conservadora da Igreja Católica
invadiu o palco. A repercussão do fato chamou a atenção da mídia para a peça,
gerando alguns manifestos da direita católica. Entretanto, homens da Igreja,
mais progressistas, acharam o espetáculo humano e exemplar na exposição de
relações amorosas entre pais e filhos.
Agora vou para o meio, pois
estou às avessas. Descrição da peça. Num trabalho naturalista e realista, com
uma fuga simbolista ao final, o espetáculo conta, durante uma hora, a relação
de um filho extremoso com um pai sem condições de cuidar de si. O ancião, com a
mobilidade muito restrita, usa fraldas geriátricas e tem a TV por companhia. A
ação inicia com o filho dando remédios e se preparando para sair, provavelmente
para trabalhar. Então, o velho suja as fraldas, pela primeira vez, com fezes semissólidas.
Suja mesmo. O sofá, as pantufas, o chão em volta, tudo, pior do que uma criança
recém-nascida. O trabalho do filho se assemelha ao de um cuidador profissional,
com baldes, luvas, fraldas, roupas limpas etc.; porém com um desvelo verdadeiramente
filial. Em seguida, o velho se suja de novo - fezes mais líquidas - e, por fim,
a excreção se torna totalmente líquida, quando ele vai para a cama e derrama sobre
si e nas cobertas um líquido da cor das fezes, dando a entender que, cada vez
mais, a sua vontade e autossuficiência vão se liquefazendo. Desesperado, depois
de esbravejar contra o pai, o filho chora, demonstrando sua impotência e culpa,
indo ao encontro da face de Jesus e, com sua cabeça na altura da boca da imagem,
faz uma espécie de súplica que, certamente, nunca será ouvida. O velho fica
solitário, sentado na cama, no meio da merda. Mudança de luz e de cena com
contrarregragem à vista do público. Epílogo: oito crianças entram em cena e atiram
granadas na figura de Jesus, numa cena magnifica pelo impacto causado. Depois
de apedrejar a figura sacra, meninos e meninas sentam-se no proscênio, de
costas para a plateia. O velho levanta da cama e vai cambaleando em direção ao
quadro, derramando o que resta de seu galão de merda pelo palco. Por fim, três
homens de preto descem do urdimento por cabos de aço e destroem o que sobra da
figura de Jesus. Rasgam a tela e, por trás dela, revela-se uma inscrição em
inglês: You are (not) my shepherd - Tu (não) és o meu pastor.
Terminando pelo começo. O
que originou toda essa conversa foi o efeito da peça sobre minha pessoa. Sou,
contraditoriamente, um iconoclasta religioso. Por isso, interessei-me por este
espetáculo da Socìetas Raffaello Sanzio, cujo nome já propõe uma questão
filosófica: Sobre o conceito da face no
filho de Deus. Fiquei tocado, impressionado, pela face do homem, que está
retratada no rosto de Deus. É de uma beleza e tristeza imensas. Essa é a
tragédia que a peça aponta - a inocuidade da mensagem cristã. Em troca de todo
o seu amor, este filho, Jesus, só recebeu de seu pai o desespero e a dor. Ele
morreu na cruz e não conseguiu limpar a cagada do pai eterno, que foi ter
criado o mal. Logicamente, não vou aderir ao subterfúgio de Santo Agostinho,
para explicar a existência do mal como a ausência do bem. O mal é uma presença real.
E a peça mostra isso de maneira contundente, pela metafísica da fecalidade. Ver
um ente querido demenciado, com mal de Parkinson e outras sequelas da velhice é
profundamente doloroso, e o pior, é que não podemos nos entregar à raiva e ao
parricídio, pois a mensagem cristã nos bloqueia por todos os lados e nas
profundezas de nossa alma. Assim, mesmo fazendo o bem, nos tornamos culpados.
Culpados por não sermos deuses, mesmo sendo filhos de Deus. Entendo o final da
peça como uma vingança, uma revolta do homem (na figura do encenador, dos personagens
e do público, se assim o quisermos), quando as crianças, que não têm pecado,
atiram granadas (ou, metaforicamente, pedras) na face do filho de Deus - negando,
assim, o bom pastor.
Uma peça curta, com um texto
que cabe em meia lauda. Para mim, isso é um bom sinal, num tempo em que o
teatro anda muito prolixo e não diz nada.
Não usei a palavra Cristo,
de propósito. O rosto pintado por Antonello de Messina não reproduz um rei
(Messias/Khristós/Ungido), mas uma face humana, sem nenhuma dignidade especial
- simplesmente, Jesus.
* Camilo de Lélis é encenador
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