A voz é corpo. Atua.
Fui
assistir duas das seis tragédias do Peep Classic Ésquilo, da Cia. Club Noir,
dirigida por Roberto Alvim.
Antes,
alguém comenta comigo “Assisti ontem. Retornei hoje. Bem contemporâneo”. Penso:
o contemporâneo é uma caixa. E me parece que ela está lotada. De pedaços, de
fragmentos que resistem, de partes extirpadas daqui e de lá. A
contemporaneidade e seu registro antropológico: pequenas partes desgarradas
tentando ser em suas individualidades, buscando aderências para ser, de fato,
algo.
O
ontem, foram duas tragédias de Ésquilo. O hoje, quando estou, Sete conta Tebas
e Prometeu. O tempo para ambas, uma hora.
Antes
do início Roberto Alvim anuncia um pequeno manual. As tragédias transcorrerão
em 30 minutos, cada. O intervalo será breve. Portanto, não será possível deslocamentos
no entreato. Não pense em ir ao banheiro. Um minuto e meio para troca de
elenco. Apenas isto. Nada mais.
Roberto
Alvim ainda pede que nos certifiquemos de que os aparelhos eletrônicos
permanecerão desligados. A luz dos displays pode atrapalhar o vizinho de plateia
e aos atores. Pode atrapalhar o que está por vir. O que se vai tentar
materializar.
A
luz da plateia se apaga. A estrutura metálica insinua uma caixa. Uma frágil
caixa. Talvez um compartimento que deseja relevo dentro do todo. Uma luz fria,
única, de contra, se acende no palco.
Emergem das páginas de Ésquilo, as tragédias. Emergem como silhuetas.
Estáticas, elas emitem sonoridades. A palavra é o corpo da tragédia. A voz é o
corpo que entra em ação. A voz exibe texturas, relevos, contornos. É ela, a
voz, que busca sua materialidade. A voz se arrisca. Ameniza, dói, enfrenta,
grita, apequena, agiganta-se. O Homem está petrificado. Tem peso, volume, contraste,
constância. Resta-lhe a voz.
Na
penumbra de uma única e especial lâmpada fria vozes de silhuetas criam espaço
para o nosso imaginário, criam a hipnose. Um jogo no qual se busca dar imagem às emissões sonoras que despertam de
um lugar inóspito, estático, onde as palavras podem ser a única possibilidade
de habitação.
No
breve intervalo, poucos na plateia arriscam-se ao enfrentamento do olhar. Nada
fala. Pouco se move. Alguma coisa, dentro, tenta se acomodar. Como reverberam
em mim essas palavras, esses corpos, o não gesto?
Ao
final dessa uma hora, as silhuetas se diluem. Desmaterializam-se antes de
acender a luz da plateia. Voltam à obscuridade. A direção não nos permite ver
os atores para o aplauso final. Ficamos com nosso Prometeu, aquele que
imaginamos no escuro, que se construiu de uma voz. Única, por que desdobrada em
mil.
Neste
tempo, exageradamente de imagens transbordando a cada segundo nas redes, foi a
voz que desenhou no palco. O traço foi nosso. A cor foi a voz. Foi a palavra
que nos levou ao desenho. Ela, a palavra, criou o discurso, criou a cena,
iludiu o ato, fez-se gesto. Ela foi o movimento. Atemorizou. Tocou. A palavra
foi o corpo. O corpo é o lugar que pensa, que diz. A ação foi interna, tanto lá
quanto cá. A dialética houve sem grandiloquentes malabarismos físicos. O
espetáculo foi o exercício do que ficou suspenso no entre da platéia e atores:
a escuta. Tão fundamental e necessária em tempos de imagens esfacelando a
percepção do todo feito de outros ao redor. Estamos no não gesto? Petrificados,
reverberando sem voz que se expanda para além do dentro de nós mesmos.
* Hermes Bernardi Jr. é escritor e ilustrador
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