quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Peep Classic Ésquilo por Hermes Bernardi Jr.

A voz é corpo. Atua.

Fui assistir duas das seis tragédias do Peep Classic Ésquilo, da Cia. Club Noir, dirigida por Roberto Alvim.

 

Antes, alguém comenta comigo “Assisti ontem. Retornei hoje. Bem contemporâneo”. Penso: o contemporâneo é uma caixa. E me parece que ela está lotada. De pedaços, de fragmentos que resistem, de partes extirpadas daqui e de lá. A contemporaneidade e seu registro antropológico: pequenas partes desgarradas tentando ser em suas individualidades, buscando aderências para ser, de fato, algo.

 

O ontem, foram duas tragédias de Ésquilo. O hoje, quando estou, Sete conta Tebas e Prometeu. O tempo para ambas, uma hora.

 

Antes do início Roberto Alvim anuncia um pequeno manual. As tragédias transcorrerão em 30 minutos, cada. O intervalo será breve. Portanto, não será possível deslocamentos no entreato. Não pense em ir ao banheiro. Um minuto e meio para troca de elenco. Apenas isto. Nada mais.

 

Roberto Alvim ainda pede que nos certifiquemos de que os aparelhos eletrônicos permanecerão desligados. A luz dos displays pode atrapalhar o vizinho de plateia e aos atores. Pode atrapalhar o que está por vir. O que se vai tentar materializar.

 

A luz da plateia se apaga. A estrutura metálica insinua uma caixa. Uma frágil caixa. Talvez um compartimento que deseja relevo dentro do todo. Uma luz fria, única, de contra, se acende no palco.  Emergem das páginas de Ésquilo, as tragédias. Emergem como silhuetas. Estáticas, elas emitem sonoridades. A palavra é o corpo da tragédia. A voz é o corpo que entra em ação. A voz exibe texturas, relevos, contornos. É ela, a voz, que busca sua materialidade. A voz se arrisca. Ameniza, dói, enfrenta, grita, apequena, agiganta-se. O Homem está petrificado. Tem peso, volume, contraste, constância. Resta-lhe a voz.

 

Na penumbra de uma única e especial lâmpada fria vozes de silhuetas criam espaço para o nosso imaginário, criam a hipnose. Um jogo no qual se busca dar  imagem às emissões sonoras que despertam de um lugar inóspito, estático, onde as palavras podem ser a única possibilidade de habitação.

 

No breve intervalo, poucos na plateia arriscam-se ao enfrentamento do olhar. Nada fala. Pouco se move. Alguma coisa, dentro, tenta se acomodar. Como reverberam em mim essas palavras, esses corpos, o não gesto?

 

Ao final dessa uma hora, as silhuetas se diluem. Desmaterializam-se antes de acender a luz da plateia. Voltam à obscuridade. A direção não nos permite ver os atores para o aplauso final. Ficamos com nosso Prometeu, aquele que imaginamos no escuro, que se construiu de uma voz. Única, por que desdobrada em mil.

 

Neste tempo, exageradamente de imagens transbordando a cada segundo nas redes, foi a voz que desenhou no palco. O traço foi nosso. A cor foi a voz. Foi a palavra que nos levou ao desenho. Ela, a palavra, criou o discurso, criou a cena, iludiu o ato, fez-se gesto. Ela foi o movimento. Atemorizou. Tocou. A palavra foi o corpo. O corpo é o lugar que pensa, que diz. A ação foi interna, tanto lá quanto cá. A dialética houve sem grandiloquentes malabarismos físicos. O espetáculo foi o exercício do que ficou suspenso no entre da platéia e atores: a escuta. Tão fundamental e necessária em tempos de imagens esfacelando a percepção do todo feito de outros ao redor. Estamos no não gesto? Petrificados, reverberando sem voz que se expanda para além do dentro de nós mesmos.
 
* Hermes Bernardi Jr. é escritor e ilustrador

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