Não sobre o drama ou A experiência da gravidade zero
Se de
fato a dimensão de obra de arte pode ser avaliada devido à qualidade de
questionamentos que ela nos apresenta, bem como pela forma como esta nos leva a
estranhar o mundo e a experiência
do vivente, então Não sobre o amor é sem dúvida uma obra maior,
tanto na trajetória do encenador Felipe Hirsch como no teatro brasileiro como
um todo. Primeiro e antes de tudo, está a impactante instalação/cenário de Daniela Thomas a qual propõe uma ambientação
inquietante onde o alvoroço sensorial é intenso. Digo isso pelo modo como tal
instalação/cenário nos faz duvidar do
próprio ambiente proposto, fato responsável por me causar uma das experiências
estéticas mais desafiadoras das quais participei. Neste sentido, mesmo que não
entremos para dentro da caixa cênica, como seria esperado na dinâmica de uma
instalação audiovisual, a quantidade de perguntas são tantas, que nos pomos em
modo ativo o tempo todo, de maneira a podermos vivenciar tudo que se passa neste ambiente.
Consequentemente, ao aceitar o
desafio oferecido pela cenografia, Felipe Hirsch e a equipe de criadores
envolvidos deixam claro que o palco é o lugar da invenção, e a leitura frontal,
classicamente adotada na caixa cênica com moldura fixa - de herança
renascentista, pode e deve ser posta em
cheque. Talvez eu precisasse explodir os limites bidimensionais desta tela,
para propor ao leitor alguma similitude canhestra com o estranhamento que sucede ao espectador do espetáculo. No
entanto, este meu recurso literário
pouco hábil ainda estaria longe do desamparo instaurado pela encenação. O que vemos talvez se
aproxime da experiência de subtração da gravidade, na qual chão, teto e parede nunca estão onde
costumamos compreendê-los. Assim, quando durante o espetáculo, os atores entram
ou saem da instalação/cenário, nós nunca
nos sentimos em repouso ou transição, uma vez que a ludicidade da
configuração espacial de Daniela Thomas continua ainda nos oferecendo indagações de caráter cinestésico.
No
entanto, tal subversão do sistema de coordenadas tridimensionais que herdamos
do cartesianismo não se traduz como ponto focal da cena,
surpreendentemente ela está justaposta a uma infinidade de recursos expressivos
que concorrem para o encantamento causado pelo espetáculo. Exemplo disso
é a maneira como Hirsch integrou os
atores ao espaço. Como resultado, surgem na cena - através de diferentes
momentos “fotográficos”, poemas visuais
de grande potência e rigor.
Logo, grande parte do que vemos é
a presença do teatro que se auto referencia enquanto categoria de pós-drama, e que abandona a ideia de narrativa
causal e imagética figurativa em prol da autonomia de sua própria linguagem.
Neste contexto de plenitudes
expressivas, é adorável ver o modo como a iluminação de Beto Bruel consegue
ainda sugerir para a cena novas perspectivas espaçotemporais, bem como o modo
como a luz se articula com a mídia videográfica, a qual também pode operar como
fonte luminosa da cena ou como uma espécie de sombra, aportando vestígios de um
tempo passado/presente concomitante. Perspectivas tornadas possíveis através das múltiplas entradas da mídia na cena, seja na forma de projeção auto referente das
palavras do texto, seja no modo fantasmático e borrado da percepção ausente de
certeza do protagonista, transferida igualmente ao espectador que a observa.
Por fim, mas não menos importante,
há que se destacar o trabalho dos atores, Leonardo Medeiros, essencial e
elegante, que num grande acerto
expressivo, procura se manter longe da armadilha grandiloquente sugerida pelo
portento cenográfico, e Julia
Feldens, que atua numa tonalidade que ora se afirma e ora se desvanece quase por completo,
compondo de modo muito perspicaz uma figura idealizada e ausente.
Assim,
o impacto do que testemunhamos diante de todas essas configurações imagéticas é
profundamente humano, uma vez que a
mimese ainda está lá. Entretanto, a ideia de ação como uma interferência
possível que transforma o mundo, já não é mais factível, na medida em que a ficção não avança ou retrocede, fazendo com
que o espectador se mantenha, tal como o protagonista, num permanente estado de “ser estrangeiro de si
mesmo”, pairando sem gravidade nos planos do multiverso de uma encenação de
maravilhamentos.
* Jacqueline Pinzon é atriz, encenadora e pesquisadora teatral. Atualmente é professora substituta do Departamento de Arte Dramática da UFRGS
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