sábado, 14 de setembro de 2013

Não sobre o amor por Jacqueline Pinzon

 
Não sobre o drama ou A experiência da gravidade zero 

Se de fato a dimensão de obra de arte pode ser avaliada devido à qualidade de questionamentos que ela nos apresenta, bem como pela forma como esta  nos leva a  estranhar o mundo e a experiência  do vivente, então Não sobre o amor é sem dúvida uma obra maior, tanto na trajetória do encenador Felipe Hirsch como no teatro brasileiro como um todo. Primeiro e antes de tudo, está a impactante instalação/cenário de Daniela Thomas a qual propõe uma ambientação inquietante onde o alvoroço sensorial é intenso. Digo isso pelo modo como tal instalação/cenário nos faz duvidar do próprio ambiente proposto, fato responsável por me causar uma das experiências estéticas mais desafiadoras das quais participei. Neste sentido, mesmo que não entremos para dentro da caixa cênica, como seria esperado na dinâmica de uma instalação audiovisual, a quantidade de perguntas são tantas, que nos pomos em modo ativo o tempo todo, de maneira a podermos vivenciar   tudo que se passa neste ambiente.
Consequentemente, ao aceitar o desafio oferecido pela cenografia, Felipe Hirsch e a equipe de criadores envolvidos deixam claro que o palco é o lugar da invenção, e a leitura frontal, classicamente adotada na caixa cênica com moldura fixa - de herança renascentista, pode e deve ser posta em cheque. Talvez eu precisasse explodir os limites bidimensionais desta tela, para propor ao leitor alguma similitude canhestra com o estranhamento que sucede ao espectador do espetáculo. No entanto, este meu recurso literário pouco hábil ainda estaria longe do desamparo instaurado pela encenação. O que vemos talvez se aproxime da experiência de subtração da gravidade, na qual chão, teto e parede nunca estão onde costumamos compreendê-los. Assim, quando durante o espetáculo, os atores entram ou saem da instalação/cenário, nós nunca  nos sentimos em repouso ou transição, uma vez que a ludicidade da configuração espacial de Daniela Thomas continua ainda  nos oferecendo  indagações de caráter cinestésico.
No entanto, tal subversão do sistema de coordenadas tridimensionais que herdamos do  cartesianismo  não se traduz como ponto focal da cena, surpreendentemente ela está justaposta a uma infinidade de recursos expressivos que concorrem para o encantamento causado pelo espetáculo. Exemplo disso é  a maneira como Hirsch integrou os atores ao espaço. Como resultado, surgem na cena - através de diferentes momentos “fotográficos”, poemas visuais  de grande potência e rigor.  Logo, grande parte do que vemos é a presença do teatro que se auto referencia enquanto categoria de pós-drama, e que abandona a ideia de narrativa causal e imagética figurativa em prol da autonomia de sua própria linguagem.
Neste contexto de plenitudes expressivas, é adorável ver o modo como a iluminação de Beto Bruel consegue ainda sugerir para a cena novas perspectivas espaçotemporais, bem como o modo como a luz se articula com a mídia videográfica, a qual também pode operar como fonte luminosa da cena ou como uma espécie de sombra, aportando vestígios de um tempo passado/presente concomitante. Perspectivas  tornadas  possíveis através das múltiplas entradas da mídia na cena, seja na forma de projeção auto referente das palavras do texto, seja no modo fantasmático e borrado da percepção ausente de certeza do protagonista, transferida igualmente ao espectador que a observa.
Por fim, mas não menos importante, há que se destacar o trabalho dos atores, Leonardo Medeiros, essencial e elegante, que num  grande acerto expressivo, procura se manter longe da armadilha grandiloquente sugerida pelo portento cenográfico, e Julia Feldens,  que atua numa tonalidade que ora se afirma e ora se desvanece quase por completo, compondo de modo muito perspicaz uma figura idealizada e ausente. 
Assim, o impacto do que testemunhamos diante de todas essas configurações imagéticas é profundamente humano, uma vez que  a mimese ainda está lá. Entretanto, a ideia de ação como uma interferência possível que transforma o mundo, já não é mais factível, na medida em que a ficção não avança ou retrocede, fazendo com que o espectador se mantenha, tal como o protagonista, num  permanente estado de “ser estrangeiro de si mesmo”, pairando sem gravidade nos planos do multiverso de uma encenação de maravilhamentos.
 
* Jacqueline Pinzon é atriz, encenadora e pesquisadora teatral. Atualmente é professora substituta do Departamento de Arte Dramática da UFRGS

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