Por todas as
crianças, inclusive as que já não são mais
Penso.
Penso não do verbo pensar, mas daquilo que está penso,
torto, como se diz lá no Nordeste.
Foi como arranjaram a caixa sobre o palco, com seus
quatro planos deslocados à direita e projetados um tanto na direção da plateia.
Esse é o cenário alto e nítido como são, em geral, os dos espetáculos da
Companhia Brasileira de Teatro (o de Esta
criança foi concebido por Fernando Marés).
A caixa pende em angulação de uns poucos graus –
sutil, mas incômoda. Dela, podem derrapar o mínimo de objetos que contém: duas
ou três cadeiras e uma poltrona. Não derrapam. Mas, há outra coisa que está na
beira, no ato da queda, a ponto de atirar-se peito afora e ecoar pelas quatro
superfícies (pintadas com um verde doentio), e de lá por cada fileira da
plateia do Theatro, por cada galeria.
Essa coisa atira-se e ecoa da boca dos atores nos sucessivos
quadros em que são filhos, pai e mãe. A grande caixa que, na verdade,
representa o espaço tão limitado onde se cozinham as relações entre essas
figuras, nos é escancarada, e os atores fogem dela em dados momentos, olham
para nós, querendo confirmar certezas, como quem diz “mas, de que outro jeito
eu poderia agir?”; vem até nós, misturam-se para lembrar que também exercemos
essas funções sociais: pai/mãe/filho(a).
Isso não antes de, numa das primeiras cenas, chamarem
a atenção (mais pela negação que por uma falsa tomada de consciência: “Estamos
só nós dois aqui, não? Tem mais alguém aqui?”) para o fato de estarmos observando
tudo, não pelo buraco mágico da fechadura por onde assistíamos ao teatro naturalista
doutros tempos, mas com o consentimento dos atuadores. Com
algum esforço para a gravidade não arrastá-los para baixo (para o fundo?),
também as personagens agarram-se às paredes que – supõem – as abrigam das
desventuras lá de fora. Mas são paredes que, com o tempo, fazem as vezes de panela
de pressão e, como dissemos acima, cozinham as relações daqueles que habitam o
seu interior. Já diria Tchékhov que é no seio familiar que as irritações do
homem manifestam-se. Nem sequer os vizinhos conseguem enxergá-las, a não ser
que, num encontro fortuito de elevador, já no ápice do sufocamento (ou na beira
do cenário-precipício), explodam em voz e queixa e assumam a sua incapacidade
ou a sua inabilidade com o outro. Mas,
também de luz e sombras são feitas essas relações, reconhecidas nos discursos
contraditórios das personagens e desenhadas pela iluminação sempre
personalíssima de Nadja Naira. A mãe que, num dos quadros, desejou que a filha
reluzisse para a vida, que fosse brilhante, não reconhece aquela que, resignada
para estas questões, apaga-se entre os cuidados da casa e do marido. Elas
abrigam duas formas de estar no mundo que não se compreendem, não se aceitam.
As mesmas atrizes voltam no quadro final: uma nova mãe desdiz as suaves
(maternas) ofensas que deixou escapar e deseja a reconciliação; a filha
simplesmente agradece a atitude, o reconhecimento do erro, mas só nós a
ouvimos. E esse é dos momentos em que uma luz bruxuleante ilumina as relações.
Enfim, embora a temática não seja lá muito original
(mas, afinal, não se diz por aí que todos os temas de que podemos falar são
contados nos dedos de uma mão?), uma nova visada é sempre necessária. Nesse
caso, para que observemos os calos das nossas próprias mãos, cansadas de
agarrar-se às paredes pensas de nossas relações. Uma atitude, alguma atitude
precisa ser tomada.
* Nayara Brito é jornalista, mestranda em Artes Cênicas na UFRGS
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