sábado, 14 de setembro de 2013

Esta criança por Nayara Brito

 
 
Por todas as crianças, inclusive as que já não são mais
            Penso.
Penso não do verbo pensar, mas daquilo que está penso, torto, como se diz lá no Nordeste.
Foi como arranjaram a caixa sobre o palco, com seus quatro planos deslocados à direita e projetados um tanto na direção da plateia. Esse é o cenário alto e nítido como são, em geral, os dos espetáculos da Companhia Brasileira de Teatro (o de Esta criança foi concebido por Fernando Marés).
A caixa pende em angulação de uns poucos graus – sutil, mas incômoda. Dela, podem derrapar o mínimo de objetos que contém: duas ou três cadeiras e uma poltrona. Não derrapam. Mas, há outra coisa que está na beira, no ato da queda, a ponto de atirar-se peito afora e ecoar pelas quatro superfícies (pintadas com um verde doentio), e de lá por cada fileira da plateia do Theatro, por cada galeria.
Essa coisa atira-se e ecoa da boca dos atores nos sucessivos quadros em que são filhos, pai e mãe. A grande caixa que, na verdade, representa o espaço tão limitado onde se cozinham as relações entre essas figuras, nos é escancarada, e os atores fogem dela em dados momentos, olham para nós, querendo confirmar certezas, como quem diz “mas, de que outro jeito eu poderia agir?”; vem até nós, misturam-se para lembrar que também exercemos essas funções sociais: pai/mãe/filho(a).
Isso não antes de, numa das primeiras cenas, chamarem a atenção (mais pela negação que por uma falsa tomada de consciência: “Estamos só nós dois aqui, não? Tem mais alguém aqui?”) para o fato de estarmos observando tudo, não pelo buraco mágico da fechadura por onde assistíamos ao teatro naturalista doutros tempos, mas com o consentimento dos atuadores. Com algum esforço para a gravidade não arrastá-los para baixo (para o fundo?), também as personagens agarram-se às paredes que – supõem – as abrigam das desventuras lá de fora. Mas são paredes que, com o tempo, fazem as vezes de panela de pressão e, como dissemos acima, cozinham as relações daqueles que habitam o seu interior. Já diria Tchékhov que é no seio familiar que as irritações do homem manifestam-se. Nem sequer os vizinhos conseguem enxergá-las, a não ser que, num encontro fortuito de elevador, já no ápice do sufocamento (ou na beira do cenário-precipício), explodam em voz e queixa e assumam a sua incapacidade ou a sua inabilidade com o outro. Mas, também de luz e sombras são feitas essas relações, reconhecidas nos discursos contraditórios das personagens e desenhadas pela iluminação sempre personalíssima de Nadja Naira. A mãe que, num dos quadros, desejou que a filha reluzisse para a vida, que fosse brilhante, não reconhece aquela que, resignada para estas questões, apaga-se entre os cuidados da casa e do marido. Elas abrigam duas formas de estar no mundo que não se compreendem, não se aceitam. As mesmas atrizes voltam no quadro final: uma nova mãe desdiz as suaves (maternas) ofensas que deixou escapar e deseja a reconciliação; a filha simplesmente agradece a atitude, o reconhecimento do erro, mas só nós a ouvimos. E esse é dos momentos em que uma luz bruxuleante ilumina as relações.
Enfim, embora a temática não seja lá muito original (mas, afinal, não se diz por aí que todos os temas de que podemos falar são contados nos dedos de uma mão?), uma nova visada é sempre necessária. Nesse caso, para que observemos os calos das nossas próprias mãos, cansadas de agarrar-se às paredes pensas de nossas relações. Uma atitude, alguma atitude precisa ser tomada.
 
* Nayara Brito é jornalista, mestranda em Artes Cênicas na UFRGS
 
           

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