Castellucci e o juízo de Deus
A cena é uma porrada.
Desferida bem no centro do rosto, naquele ponto entre os olhos que os místicos
costumam julgar como do terceiro olho. O espectador fica aturdido, sem
respiração, ao final dos sessenta minutos de Sobre o conceito da face no filho
de Deus, uma das emblemáticas encenações de Romeo Castellucci para a Socìetas
Raffaello Sanzio (2010) apresentada como atração maior da vigésima edição do
Porto Alegre em Cena.
Como outras criações da
companhia, também essa coloca em cena não um mero jogo teatral, mas um teorema ontológico
complexo, cuja substância conceitual deve ser perquirida pelo espectador. São
apenas três cenas: na primeira, a mais longa, um filho dedicado cuida de um pai
decrépito que se desfaz em fezes; na segunda, crianças jogam granadas contra a
figura de Cristo; e a derradeira, quando essa mesma figura se auto dissolve.
As cenas não possuem
advérbios ou conjunções cênicas interligando-as ou subordinando-as, de modo que
subsistem isoladas. O que, por si só, resume o aspecto enigmático do conceito
possível, descortinando possibilidades interpretativas as mais instigantes. A
primeira cena (pode-se dizer quase a totalidade do espetáculo, pois ocupa 55
minutos) oferece o fino ambiente de um apartamento de um executivo bem
sucedido, imaculadamente branco, todo branco. Atrás, em desmesurado tamanho, um
recorte da face do Jesus Cristo pintado por Antonello da Messina
(c.1430-c.1479). O pai é nele introduzido através de dois maquinistas que o
amparam desde as coxias e o sentam no sofá branco onde assiste TV com dois
enormes fones de ouvidos também brancos. O filho, ao entrar, logo começa o
diálogo em torno da doença que o acomete, dos remédios que tem de tomar, dos
cuidados que deve observar depois que ele sair. Ele traja impecável terno e
gravata e confere recados no celular.
O velho, contudo,
reclama que fez cocô. O rapaz, com a benemérita alma daqueles que nasceram para
reverenciar os mais velhos, tira o paletó e inicia um longo ritual de troca de
fraldas do vetusto senhor. Com variações de intensidade e com crescente
angústia entre ambos, esse mesmo ritual de purificação ocorre por mais três
vezes, a cada um deles aumentando a diarreia do pai, até o palco ficar transformado,
literalmente, numa enorme poça de matéria fecal. A interpretação dos atores é
acentuadamente naturalista, bem como os recursos cênicos nela empregados, o que
leva a plateia a experimentar dois sentimentos contrários: o asco e o
maravilhamento.
O primeiro resulta dos
momentos iniciais, quando se constata o que a peça vai abordar; o segundo advém
daquele sentido freudiano elementar de fascínio pelos excrementos e, do ponto
de vista cênico, do jogo de teatralidade que Gianni Plazzi (o pai) e Sergio
Scartella (o filho) imprimem às criaturas que lhe foram destinadas por Romeo
Castellucci, autor e encenador desse teorema.
Dada a lentidão da cena
em seu ritmo natural, a plateia tem tempo suficiente para procurar em seus
arquivos mentais outras atribuladas relações pai/filho, tais como a Carta ao
pai, de Kafka, ou os soturnos episódios de Os irmãos Karamazov, de
Dostoiévski. É possível, é claro, regredir à Bíblia e dela selecionar passagens
escolhidas; ou ainda evocar o pantagruélico Gargântua, assim como outras
figuras que a imaginação de cada qual mobilizar. A cena é construída com tal
precisão que não deixa de conter alusões, claros, entradas possíveis ao
devaneio dos espectadores.
Para a teoria do
teatro, não há como deixar de evocar Artaud e seu mais que profético Para
acabar com o juízo de Deus, uma vez que seus princípios centrais informam a
poética de Castellucci em várias acepções. “A palavra teatro soa (...) para mim
(...) como uma palavra de herança bizantina e inflexível: ‘iconoclastia’”,
escreveu ele em “Os peregrinos da matéria”, conjunto de textos onde expôs suas
ideias sobre poética cênica (CASTELLUCCI, Romeo e Cláudia. Les pèlerins de la matière. Besançon: Les Solitaires Intempestifs, 2001, p. 99). Iconoclastia esta que vai se aprofundando ao final de sua realização. Na
segunda cena um garoto entra em cena com uma bola de basquete e uma mochila.
Deposita a bola ao lado, abre a mochila e dela vai retirando granadas para jogar
contra a imagem de Cristo. É seguido por outros colegas, até o palco restar
forrado daqueles petardos. Concluída a agressão, eles abandonam o palco com a
mesma reverencial atitude com que entraram. É então que a cena final descortina
todo um refinado procedimento cênico: a
figura de Cristo começa a escorrer tinta, borra-se toda, agita-se, contorce-se até
restar literalmente despedaçada e, por trás, revelar uma frase em inglês,
profusamente iluminada: you are my shepherd
(você é o meu pastor). Há, contudo, um derridiano
not após o verbo, sem
iluminação, o que altera e introduz a diferença ao sentido bíblico ali
depositado.
Dialética
ou regime?
Como equacionar as três
cenas? De um ponto de vista mais tradicional, poderíamos ser levados a tentar a
dialética: tese, antítese e síntese completando seu ciclo revolucionário e
proponente de uma nova espiral para o real. Se a opção, entrementes, recair
sobre Lacan, os três registros da psique: o real, o simbólico e o imaginário enquanto
irredutível equação da subjetividade. E se tentarmos outras lógicas, talvez
seja possível evocar a desconstrução, onde teríamos uma parábola, um símbolo e
uma epifania, sucessão de regimes narrativos sugeridos pela arquitetura de cada
cena.
Em suas declarações,
Castellucci é vago, impreciso, deixa ao espectador fazer seu jogo mental. Razão pela qual a teatralidade me parece um
percurso menos acidentado e mais condizente com sua natureza. A primeira cena
contrapõe o naturalismo das interpretações ao simbolismo da cenografia, de onde
resulta um choque semântico interessante entre fundo e forma: ainda que com
refinados aparatos técnicos de apoio (fraldas, cadeira de rodas, remédios etc),
o homem não conseguiu ainda resolver ou curar um estágio elementar de sua
fisiologia anômala: o controle intestinal que o acomete na decrepitude. Isso
impõe ao filho um caritativo devotamento, uma irrevogável missão ética da qual
não consegue se safar. Tal interpretação encontra apoio no gesto final do
rapaz, ao aproximar-se da imagem de Cristo e beijar-lhe a boca. É não apenas a
reverência diante do divino, como seu reconhecimento e aquiescência. Razão pela
qual, a cena adquire todos os contornos da parábola.
A segunda cena efetua um
esboço quase épico: o garoto entra, deposita sua bola, com gestos meticulosos e
quase ensaiados retira uma a uma as granadas e as arremete contra a imagem ao
fundo. Secundado pelos demais que vão adentrando, as ações se repetem com
inquebrantável regularidade, materializando um símbolo: a atual onda de
manifestantes e black blocs que se
alastra pelo mundo, a insatisfação contra tudo e contra todos, mas sobretudo
contra a ordem instituída que Cristo imanta como ninguém. É a iconoclastia em
seu ponto ótimo, porém burro e fundamentalista.
A terceira é um
prodígio barroco: três maquinistas são necessários para fazer a enorme figura
estampada em plástico branco suar tinta e borrar-se, contorcer-se e, pouco a
pouco, se desfazer em pedaços, agudo emprego de recursos próprios ao teatro de
máquinas, seguido da inconfundível expressividade digna de grandes musicais e
shows do burlesco: a frase profusamente iluminada por incontáveis lâmpadas
faiscantes, uma epifania cênica das mais potentes. Todos esses recursos não são vagos nem
imprecisos. Foram buscados com meticulosa precisão pelo encenador e evidenciam
signos historicamente legíveis na história do teatro ocidental, a enciclopédia
disponível que a cena contemporânea utiliza.
É nesse sentido que as
cenas obedecem a um regime narrativo, encaixam-se como peças de um puzzle que,
pouco a pouco, vai revelando sua face – a da disseminação -, os múltiplos atributos
e qualidades da face divina. Convém não esquecer que fazer face possui diversas
acepções: estar voltado para; ficar em oposição a; não fugir frente ao perigo;
enfrentar; dar a solução ou o remédio a algo; arcar com os custos de; o que torna o conceito de Castellucci
multívoco e filosoficamente matizado, longe das simplificações.
É o que me é possível concluir
três dias após a ressaca provocada pelo espetáculo, tal sua densidade e impacto
sobre o terceiro olho.
* Edelcio Mostaço é
professor de Estética Teatral na Universidade do Estado de Santa Catarina
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