Presença,
encontro. Estas palavras sempre são associadas ao artesanato teatral. Também
passaram a ser utilizadas de maneira específica a toda uma parcela da produção
em artes visuais que elegeu a presença e seu caráter de efemeridade desde as propostas
dadaístas e, com entonação próxima mas diferente, a partir da arte da década de
60. Começo por esse ponto pois presença e encontro foram duas das palavras que
me afetaram durante todo o tempo que estive diante do Monoblock do mexicano
Juan José Gurrola na noite chuvosa deste domingo na Sala Bruno Kiefer da Casa
de Cultura Mario Quintana. Estar presente diante de um trabalho apresentado
unicamente em 1971, em um dos importantes capítulos da trajetória fértil do
ator, cineasta, encenador, coreografo, poeta, músico e artista plástico coloca
o público em um dos mais interessantes lugares do pensamento artístico
contemporâneo: o que não se aloja, o que
não se enquadra, o que não se aprisiona em disciplinas. A fronteira, o entre,
dentro-fora, o inter, o multi.
Gurrola,
faz parte de uma geração que arrebentou as fronteiras (foi do grupo de Arrabal
e outros artistas), que arregaçou os limites, os objetos, as possibilidade do
campo da criação. Seu Monoblock é parente de uma longa lista de procedimentos artísticos
que ao invés de se perguntar quais os materiais específicos de seu fazer, souberam
lançar mão dos mais diferentes recursos, desde a imagem, o som, o texto, o
corpo, a presença. Seu trabalho é multilinguístico desde os idiomas adotados
que passaram aqui pelo inglês, espanhol e português, até as diferentes
linguagens que se mesclam para dar a ver um comentário sobre o mundo, o tempo,
o estado das coisas. Claro que ainda há naqueles pontos que o texto propõe um
resíduo da utopia moderna. Mas muito do que aprendemos como pauta necessária
para o encontro e o pensamento com e sobre a vida e a arte contemporânea se
deixam ver na costura que se expõe no trabalho que ganhou luz na casa do poeta.
Durante
os 45 minutos de duração fiquei me perguntando qual o lugar adotado pelo
público para sossegar dentro de si o visto. Seria desde o teatro? Desde as artes visuais? Em pouco tempo
percebi que seria no deslimite que se daria o ponto de onde deveriam partir os
olhares. Percebi que o visto não sossegaria. No palco, um painel de fundo
criado pela artista americana que durante mais de 20 anos atuou no México,
Barbara Wasserman. No centro, um freezer que, coberto nos primeiros momentos,
revela a presença do Monobloco. Dada a iluminação, pode ser pensado como algo
que expõe, dá a ver. O freezer pode ser vitrine, expositor, lugar de
conservação e por si só, já desloca o sentido da peça mecânica entre a arte e
o mero objeto, entre o que é passível de ser conservado e o que é efêmero,
entre a invenção humana que é mero produto e aquela que cria a arte. O olho
encontra e investiga o Monobloco, peça automotiva de um caminhão encontrada por
Gurrola e mote, ponto de partida e disparador das questões que vão desde o
lugar do amor, da beleza, da arte, de Duchamp, de Warhol, de Picabia, da
economia, dos comércios, das trocas, dos símbolos, dos deslocamentos, do estar
vivo. O monoblock é objeto, poesia, interrogação, arte.
Há
de se citar alguns ruídos enfrentados pelo público na noite deste domingo.
Antes da apresentação e infelizmente durante, alguns sons de uma atividade que
acontecia na CCMQ acabaram por interferir chegando mesmo a criar uma certa
dúvida se faziam parte do trabalho e exigindo um exercício de concentração
ainda maior por parte do público. Nada grave. Afinal a presença, o aqui, o
agora também é feito de adversidades.
A
nova parceria entre a Fundação Bienal e o Porto Alegre Em Cena não poderia ter
sido mais feliz. Por si só, já é um ato que aponta a convergência e oferece ao
público a possibilidade de pensar sobre os inúmeros deslocamentos que se abrem
na arte quando ela abandona as suas fronteiras e se apresenta no seu estado
mais puro enquanto vontade de criação e intervenção no mundo. Já havia
acontecido este movimento com a exposição Video Portraits (2011) de Bob Wilson,
também fruto do alinhamento entre dois dos mais importantes eventos artísticos
do país que se conta desde o sul. Que dure, que seja presente, que se firme.
Ganhamos todos. Ganha aquilo que talvez seja o mais importante em uma Bienal ou
em um festival: criar brechas que possam ser encharcadas de novas interrogações
e novos encontros entre a arte e a vida que entram (e saem) pelo corpo-mente do
público.
* Igor Simões é ator e professor de História, Teoria e Crítica da Arte na graduação em Artes Visuais- Licenciatura da Uergs
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