Após a excelente análise formal do espetáculo, escrita pela Jacqueline Pinzon neste mesmo blog, não há necessidade de falar tão tecnicamente da montagem de Felipe Hirsch, que esteve no Theatro São Pedro nesta semana. Minha abordagem é muito mais emocional, embasada nas sensações provocadas pela belíssima encenação que tivemos a oportunidade de vivenciar. Ao contrário de vários espectadores que manifestaram suas opiniões nas redes sociais, não achei nem um pouco "entediante" ou "enfadonha" a hora e meia em que estive exposto a uma sucessão de imagens e palavras (e também imagens de palavras) que transformaram em uma experiência inesquecível uma troca de cartas entre um homem e uma mulher, nas primeiras décadas do século XX. O que mais me impressionou talvez tenha sido o rigor artístico da encenação, a exigência que a equipe do espetáculo traz para o espectador, em direção a uma concentração total no que vê e ouve sobre o palco. Não é possível fruir essa delicada iguaria cênica tossindo (o que ocorreu, enlouquecedoramente, durante toda a encenação, por parte de vários dos espectadores; entendo que tenha sido, essa reação física, uma somatização da recepção truncada: incomodados com a forma exigente proposta por Hirsch, muitos não aguentavam e manifestavam seu incômodo incomodando os outros não-incomodados, como eu).
Tampouco acho que o cenário (incrível, de Daniela Thomas) tenha sido mal aproveitado. Em um espetáculo epistolar, totalmente calcado na força das palavras, não se poderia esperar malabarismos e acrobacias a todo instante. Inclusive acho que Leonardo Medeiros sai-se muito bem nas escaladas que faz à cenografia, demonstrando uma precisão e um controle físico admiráveis. E se o corpo de Leonardo está presente e vivo, sua voz igualmente nos subjuga pela intensidade na emissão e na variedade de significações que oferece. Fiquei impressionado com o volume, a clareza, a teatralidade de sua voz. (Aqui, devo dizer que se instala um contraste não tão positivo com o trabalho vocal da parceira cênica de Leonardo, a atriz Julia Feldens; mas compreendo que seja impossível competir com o ator, que há anos habita o universo do espetáculo, em oposição aos poucos dias que a atriz teve para se preparar para essas apresentações no Porto Alegre em Cena. Luciano Alabarse comentava comigo que Julia teve cerca de uma semana apenas para dar conta da substituição que a trouxe ao Theatro São Pedro).
Sobre a perfeita concretização da ideia do espetáculo - a proibição de falar sobre o amor, imposta pela mulher (a escritora Elsa Triolet) ao homem (o escritor Victor Shklovsky), durante todo o período em que se corresponderam -, não consigo pensar em uma metáfora visual mais poderosa que o mundo virado, literalmente, de cabeça para baixo, quando nos apaixonamos. Sabe aquele chiste sacana que diz "me joga na parede, me chama de lagartixa", querendo dizer que estamos entregues, de corpo e alma ao Outro? Vejam só: o homem da história vira, quase, uma lagartixa mesmo, e dorme grudado na cama, na parede, varado pelo amor não correspondido. Além de homem apaixonado, Victor é escritor (pequena biografia: Shklovsky foi um dos formalistas russos, que na primeira metade do século XX revolucionaram a literatura através de suas teorias. Além disso, publicou um livro de cabeceira para artistas, Arte como técnica, em que escreveu algo que é, simplesmente, o conceito da encenação de Felipe Hirsch, o que fecha o circuito e nos mostra a riqueza que se esconde por baixo das camadas mais superficiais de uma obra de arte. Shklovsky escreveu: "O propósito da arte é promover a sensação das coisas como elas são percebidas e não como elas são conhecidas. O objetivo da técnica na arte é tornar os objetos não familiares, fazer as formas difíceis, aumentar a dificuldade e capacidade de percepção porque o processo de percepção na arte é um fim em si e deve ser prolongado. Arte é sempre um caminho da experiência artística de um objeto; o objeto não é importante").
Um escritor, sentado à máquina de datilografar, em uma posição impossível: pode ser mais significativa uma metáfora como essa, para alguém que vive de escrever palavras e dar significado a elas?
Enfim, Não sobre o amor é um espetáculo realmente superior, onde a "rusticidade" da palavra oralizada ganha corpo e sentidos, em cooperação com a tecnologia utilizada na encenação. Um dos grandes destaques desta edição do Porto Alegre em Cena, sem dúvida.
* Marcelo Ádams é ator e professor da graduação em Teatro- Licenciatura da Uergs
3 comentários:
Marcelo, obrigada pela referência e por todo teu trabalho de anos neste Blog, do qual tenho participado escrevendo algum comentário sobre algumas das montagens vistas nestes anos de PoaEmCena. Concordo que este é um dos grandes espetáculos desta e de muitas edições do festival. Que sorte que me absorvi de tal maneira, que não percebi este descompasso da plateia. Mas como a leitura é sempre um ato particular de interação com a obra, eu, particularmente, me deliciei com tudo o que vi e relatei em meu comentário e que foi corroborado por muitas de tuas colocações. Grande abraço e parabéns pelo fôlego de manter no ar por tanto tempo um blog sobre as artes cênicas, a cidade agradece.
Eu adorei também. E te juro, Marcelo: quem me levou às lágrimas foi a Julia, naquela carta sobre a ama de leite.
Eu adorei, uma hora e meia que não senti passar tal o envolvimento que texto, cenário e interpretação dos atores me levaram. Uma apresentação que recomendo a todos que tiverem oportunidade de aproveitar.
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