O
POA em Cena tem sido um evento na vida cultural de Porto Alegre em que o
público espera ver espetáculos aos quais talvez não teriam oportunidade de
conhecer, se não viajando a outros lugares. Além dos trabalhos locais e
nacionais, ficamos aguardando ver espetáculos importantes da cena cultural
mundial. E como artista da dança, é claro, aguardo especialmente a oportunidade
de conhecer de perto novas propostas coreográficas, que mostrem linguagens
coesamente elaboradas. Hoje, aguardando para assistir o Grupo Dançando com a
diferença na sua estreia em POA, minha inquietude era frenética! Eles
finalmente vieram! Tendo já os conhecido de perto, minha emoção era por saber
que sua participação no em Cena irá proporcionar uma experiência artística que
vejo ainda ignorada na cidade. Ignorada, no sentido de ser desconhecida no seu
potencial e amplo entendimento, não quero dizer ignorada de forma a ser
menosprezada.
O
espetáculo começa com um tempo de espera, e a organização do tempo entre as
ações, foi uma das coisas que me cativou neste trabalho da coreógrafa Clara
Andermatt. O grupo passou por um processo de trabalho em espaços naturais da
belíssima Ilha da Madeira, onde a coreógrafa investiu no tempo de apropriação
dos corpos dos bailarinos às texturas do ambiente. Este processo deixou
registros nos seus corpos, que embasou a criação coreográfica. Dez mil seres
foi construído com quatro personagens. Telmo Ferreira e Mickaella Dantas fazem
o Marterra, no papel de uma paisagem sonora e visual indissociável. Bárbara
Matos, Joana Caetano e Sofia Marote fazem as Trissônicas, representando os
seres da natureza e as naturezas dos seres. Alexis Fernandes é o Foeta,
apresentador do poema fonético. Pedro Silva, o Arquitetor, a instituição do
instante. O duo de Telmo e Mickaella, já no começo da coreografia, nos prende o
olho por trazer uma variação prazeirosa de imagens móveis. Assisti a um
trabalho solo de Mickaella, como intérprete-criadora, no Programa de Estudos em
Performance 2012, em POA. Ela apresentava um estudo das possibilidades cênicas
do uso e relação com sua prótese. Na coreografia de Clara Andermatt, esta
investigação se desenvolveu ainda mais, e também com as muletas, que trouxe o
uso da horizontalidade do corpo e outras possibilidades de movimento que ela
não tinha anteriormente ousado. Telmo e Mickaella constroem uma sinergia
harmônica e bela de movimentos.
A
escolha da coreógrafa de agrupar as três meninas com síndrome de down em um só
personagem me pareceu interessante. De outros trabalhos que vi do GDD, acredito
que este seja o primeiro a dividir o grupo desta forma. Em um trabalho com
bailarinos com e sem deficiências como o do GDD, busca-se evitar as
classificações dos clichês do senso comum, e estéticas estereotipadas. O trio
Trissônicas mostra que é a qualidade do trabalho dos bailarinos e da composição
coreográfica que proporciona um trabalho livre de estereótipos, não unicamente
as sinergias encontrados entre bailarinos com e sem deficiências. O elenco de Dez
mil seres possui apenas um bailarino caracterizado como pessoa sem
deficiência, uma pessoa com deficiência física e, na sua maioria, pessoas com
deficiência intelectual. Eles viajam com o grupo sem mãe, pai, irmã(o), ou cuidador(a). Como sempre este tipo de
explicação se faz necessária... eles não são especiais. Suas singularidades são
reconhecidas e respeitadas, porém eles alcançaram uma independência pessoal e
uma atitude profissional e artística porque não são tratados de forma a
reinforçar a prisão dos clichês socialmente herdados.
O
som do theremin produzido por Alexis, e o seu monólogo que depois se transforma
em uma conversação com Telmo e Bárbara em uma língua criada por eles, fazem uma
parte divertida do espetáculo. A obra possui por vezes uma dramaticidade de
corpos que vivenciam o momento presente com ações de embate físico uns com os
outros e sonorizações que partem do abdômen. A descontração trazida por Alexis
traz uma nova informação mudando o rumo do previamente construído. Ele e Pedro,
os dois mais novos integrantes do grupo, possuem uma presença cênica fortemente
constituída, que vai de encontro a dos integrantes mais antigos. O figurino,
cenografia e desenho de luz é feito por Maurício Freitas, que trouxe uma novidade, um pó que funciona
no lugar da tradicional fumaça de gelo seco.
O
espetáculo termina, e ainda dá vontade de ver mais, postergando o fim daquela
experiência. Como acontece nos espetáculos dessa qualidade, o espectador que se
envolve, deixa de enxergar tão exclusivamente questões sobre deficiência, e
passa a apreciar prioritariamente a experiência artística. Como sempre este
tipo de explicação se faz necessária... isto é dança, nesse caso, dança
contemporânea. Porém, devido ao contexto social atual ainda vigente, com
frequência é preciso nomear: dança inclusiva, dança integrada, dança com grupo
de habilidades mistas, ou pontuar, dança com bailarinos com e sem deficiências.
Se entende por 'danceability' o método criado pelo americano Alito Alessi, que
não engloba a diversidade de grupos e metodologias que envolve todo e qualquer
grupo de habilidades mistas.
Henrique
Amoedo, diretor do grupo, iniciou seu trabalho nos anos 90 em Natal, com o
grupo Roda Viva. Desde então, além de também ter criado os grupos Mão na Roda e
o GDD, ele tem trabalhado e influenciado gerações de pessoas interessadas em
dança e acessibilidade. Entre elas, euzinha! Acompanho seu trabalho desde 2002.
Portanto, é inevitável não terminar este texto de forma pessoal... com minha
admiração pelo trabalho e amor a este amigo querido e também a todo Grupo
Dançando com a Diferença!
* Carla Vendramin é professora temporária na Ufpel e diretora do espetáculo infantil O gato
malhado e a andorinha Sinhá, com elenco de habilidades mistas, que irá estrear em
outubro no Teatro de Câmara Túlio Piva
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