quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Dez mil seres por Carla Vendramin



            O POA em Cena tem sido um evento na vida cultural de Porto Alegre em que o público espera ver espetáculos aos quais talvez não teriam oportunidade de conhecer, se não viajando a outros lugares. Além dos trabalhos locais e nacionais, ficamos aguardando ver espetáculos importantes da cena cultural mundial. E como artista da dança, é claro, aguardo especialmente a oportunidade de conhecer de perto novas propostas coreográficas, que mostrem linguagens coesamente elaboradas. Hoje, aguardando para assistir o Grupo Dançando com a diferença na sua estreia em POA, minha inquietude era frenética! Eles finalmente vieram! Tendo já os conhecido de perto, minha emoção era por saber que sua participação no em Cena irá proporcionar uma experiência artística que vejo ainda ignorada na cidade. Ignorada, no sentido de ser desconhecida no seu potencial e amplo entendimento, não quero dizer ignorada de forma a ser menosprezada.
            O espetáculo começa com um tempo de espera, e a organização do tempo entre as ações, foi uma das coisas que me cativou neste trabalho da coreógrafa Clara Andermatt. O grupo passou por um processo de trabalho em espaços naturais da belíssima Ilha da Madeira, onde a coreógrafa investiu no tempo de apropriação dos corpos dos bailarinos às texturas do ambiente. Este processo deixou registros nos seus corpos, que embasou a criação coreográfica. Dez mil seres foi construído com quatro personagens. Telmo Ferreira e Mickaella Dantas fazem o Marterra, no papel de uma paisagem sonora e visual indissociável. Bárbara Matos, Joana Caetano e Sofia Marote fazem as Trissônicas, representando os seres da natureza e as naturezas dos seres. Alexis Fernandes é o Foeta, apresentador do poema fonético. Pedro Silva, o Arquitetor, a instituição do instante. O duo de Telmo e Mickaella, já no começo da coreografia, nos prende o olho por trazer uma variação prazeirosa de imagens móveis. Assisti a um trabalho solo de Mickaella, como intérprete-criadora, no Programa de Estudos em Performance 2012, em POA. Ela apresentava um estudo das possibilidades cênicas do uso e relação com sua prótese. Na coreografia de Clara Andermatt, esta investigação se desenvolveu ainda mais, e também com as muletas, que trouxe o uso da horizontalidade do corpo e outras possibilidades de movimento que ela não tinha anteriormente ousado. Telmo e Mickaella constroem uma sinergia harmônica e bela de movimentos.
            A escolha da coreógrafa de agrupar as três meninas com síndrome de down em um só personagem me pareceu interessante. De outros trabalhos que vi do GDD, acredito que este seja o primeiro a dividir o grupo desta forma. Em um trabalho com bailarinos com e sem deficiências como o do GDD, busca-se evitar as classificações dos clichês do senso comum, e estéticas estereotipadas. O trio Trissônicas mostra que é a qualidade do trabalho dos bailarinos e da composição coreográfica que proporciona um trabalho livre de estereótipos, não unicamente as sinergias encontrados entre bailarinos com e sem deficiências. O elenco de Dez mil seres possui apenas um bailarino caracterizado como pessoa sem deficiência, uma pessoa com deficiência física e, na sua maioria, pessoas com deficiência intelectual. Eles viajam com o grupo sem mãe, pai, irmã(o), ou  cuidador(a). Como sempre este tipo de explicação se faz necessária... eles não são especiais. Suas singularidades são reconhecidas e respeitadas, porém eles alcançaram uma independência pessoal e uma atitude profissional e artística porque não são tratados de forma a reinforçar a prisão dos clichês socialmente herdados.
            O som do theremin produzido por Alexis, e o seu monólogo que depois se transforma em uma conversação com Telmo e Bárbara em uma língua criada por eles, fazem uma parte divertida do espetáculo. A obra possui por vezes uma dramaticidade de corpos que vivenciam o momento presente com ações de embate físico uns com os outros e sonorizações que partem do abdômen. A descontração trazida por Alexis traz uma nova informação mudando o rumo do previamente construído. Ele e Pedro, os dois mais novos integrantes do grupo, possuem uma presença cênica fortemente constituída, que vai de encontro a dos integrantes mais antigos. O figurino, cenografia e desenho de luz é feito por Maurício Freitas,  que trouxe uma novidade, um pó que funciona no lugar da tradicional fumaça de gelo seco.
            O espetáculo termina, e ainda dá vontade de ver mais, postergando o fim daquela experiência. Como acontece nos espetáculos dessa qualidade, o espectador que se envolve, deixa de enxergar tão exclusivamente questões sobre deficiência, e passa a apreciar prioritariamente a experiência artística. Como sempre este tipo de explicação se faz necessária... isto é dança, nesse caso, dança contemporânea. Porém, devido ao contexto social atual ainda vigente, com frequência é preciso nomear: dança inclusiva, dança integrada, dança com grupo de habilidades mistas, ou pontuar, dança com bailarinos com e sem deficiências. Se entende por 'danceability' o método criado pelo americano Alito Alessi, que não engloba a diversidade de grupos e metodologias que envolve todo e qualquer grupo de habilidades mistas.
            Henrique Amoedo, diretor do grupo, iniciou seu trabalho nos anos 90 em Natal, com o grupo Roda Viva. Desde então, além de também ter criado os grupos Mão na Roda e o GDD, ele tem trabalhado e influenciado gerações de pessoas interessadas em dança e acessibilidade. Entre elas, euzinha! Acompanho seu trabalho desde 2002. Portanto, é inevitável não terminar este texto de forma pessoal... com minha admiração pelo trabalho e amor a este amigo querido e também a todo Grupo Dançando com a Diferença!
 
* Carla Vendramin é professora temporária na Ufpel e diretora do espetáculo infantil O gato malhado e a andorinha Sinhá, com elenco de habilidades mistas, que irá estrear em outubro no Teatro de Câmara Túlio Piva

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