O espetáculo Esta criança, da Cia Brasileira de Teatro, traz a Porto Alegre mais
um texto do prestigiado dramaturgo francês Jöel Pommerat, recentemente levado
ao palco gaúcho com o espetáculo Estremeço,
da Cia Stravaganza.
Esta criança se constrói ao longo de dez cenas independentes entre
si e que frequentemente não possuem começo nem fim, situando-se no clímax de cada
ação, apresentando fragmentos de conflitos que criam um discurso temático
unificador – próprio dos procedimentos dramatúrgicos de Pommerat – nesta peça
centrado nas relações entre pais e filhos.
A bem-sucedida direção de Marcio
Abreu aponta para um espetáculo onde os diferentes elementos da cena são de fundamental
importância para a composição da peça como um todo. Pequenas dissonâncias que
ampliam o real fugindo de qualquer tentativa realista: atores dizendo o texto
de costas para o público, textos ditos no escuro ou “fora da luz”, luz na
plateia em diversos momentos, não proporcionalidade dos objetos em relação ao
espaço cênico, trocas de figurinos diante do público enquanto outra cena já se
esboçava, uso de microfones, etc. Cabe destacar o início do espetáculo, quando
uma futura mãe (Renata Sorrah) começa a falar no escuro sua “carta de intenção”
como mãe e a luz vai pouco a pouco revelando seu rosto. Na cena seguinte, ela
aparece como uma menina de 5 anos sentada em uma cadeira alta afirmando com uma
frieza e sinceridade quase cômicas que não se importa de não voltar a ver seu
pai (Ranieri Gonzalez), sentado em uma cadeira pequena e baixa, numa bonita
inversão de papéis.
O trabalho dos quatro atores que
se multiplicam em mais de vinte personagens chama a atenção pela agilidade com
que essas mudanças ocorrem, dando a impressão de que estamos diante de um
elenco maior, mostrando o quão afinados eles estão. A versatilidade da atuação
centra-se muito nos diferentes modos de dizer o texto, que ajudam na composição
destes personagens sem nome, caracterizados pelo seu papel social (mãe, pai,
filho, policial, etc.). O espetáculo apresenta cenas tocantes em seu absurdo
próprio da vida real, como quando uma mãe (Giovana Soar) coloca seu bebê no
colo de um vizinho (Edson Rocha) e lhe dá de presente o seu filho para que ele
e sua esposa (que não podem ter filhos) possam criá-lo. Igualmente, a cena em
que uma mãe precisa fazer o reconhecimento de corpo daquele que pode ser seu
filho, ganha força por meio das risadas nervosas das atrizes que contagiam a
plateia em um momento de grande tensão.
A primorosa iluminação criada por
Nadja Naira, que deixa o palco muitas vezes na penumbra, mostrando apenas as
silhuetas dos atores que vão pouco a pouco se revelando, contribui de modo
decisivo para a estética do espetáculo. A luz se desenha sobre o cenário
criando diferentes nuances de espaço que geram as atmosferas próprias para cada
cena. A utilização de recursos sonoros também colabora para a construção do
universo ficcional da peça. A cena em que Giovana Soar representa uma mulher
dando à luz a um bebê é toda construída com sonoridades gravadas, que se
equalizam com os corpos dos atores no palco. Assim, temos um espetáculo integrado
no qual os diferentes elementos da cena acabam sendo de vital importância à construção
do todo, sustentando com êxito uma dramaturgia fragmentada e complexa.
* Camila Bauer é encenadora e professora do Departamento de Arte Dramática da UFRGS
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