Sobre os olhos de onda
“O frio na
barriga é sempre maior aqui”, ela avisa logo ao final da primeira canção. Não
que fosse necessário dizer. Não que tenha a ver com o frio que dá a estética
desse lugar. Era uma noite até quente de início de primavera. Mas as minhas
mãos, braços e ouvidos tão nervosos quanto os dela logo detectaram a voz
trêmula e os acordes vacilantes da música de abertura. Semanas antes eu ouvira
pela primeira vez a composição de Capiba na voz de outra intérprete que vem
cintilando aqui e ali; e apaixonara-me, coisa comum. Por isso o susto quando
reconheci os primeiros versos e saltei para a ponta da cadeira, como se aqueles
centímetros a menos me aproximasse tanto mais do som e do tudo em volta dele.
De São Paulo, de Luanda
Me trouxeram para cá
Êêê Calunga, Calunga
Me trouxeram para cá
Calunga soa como um belo lamento daquilo
a que tantos compositores nordestinos cantaram: a partida dos homens de sua
terra. E Lourenço Barbosa Capiba, pernambucano, autor desses versos, como ela
dá os créditos, sendo um dos mais conhecidos compositores de frevo do país, famoso
também pela canção Maria Bethânia (gravada
por Nelson Gonçalves em 1945) não foge ao tema. Há sempre o retrato de quem
fica e de quem parte, misturados no mesmo ‘Ai’: Minha mãe chorava, Calunga/ Ai ai, ai ai/ E eu cantava, Calunga/ Ai ai,
ai ai/ Maracatu, maracatu...
E o
retrato de quem chega, na canção seguinte. Um Caetano que a acompanha há muitos
anos, ela anuncia. E adivinho, já com as mãos na cabeça, O nome da cidade... Mas, qual cidade?, eu pergunto, alguém
pergunta. Caetano se refere ao Rio, lugar todo feito contra a Macabéa
clariceana, criatura por quem todos nós certamente guardamos algum carinho. É o
mesmo Rio que recebe Adriana em início de carreira, alguém que, tornando-se bem
sucedida – bem o sabemos hoje – não deixou de compartilhar do sentimento
macabéeano diante das coisas, das ruas voando sobre ruas, das letras demais,
das mulheres nuas. E se pergunta: Será que
pra o meu próprio rio/Esse Rio é mais mar que o mar? E eu respondo: sim.
Eu, vinda da beirada do mar, encontro o rio (Guaíba) margeando a cidade, a tua
cidade, Adriana, que me atravessa.
E
percebo como ela, gaúcha, dialoga tão apropriadamente e tão particularmente com
a música nossa, digo, a nordestina. Adriana Calcanhotto parte logo cedo de sua
cidade natal, Porto Alegre, e vai encontrar paragens para desenvolver seu
trabalho no centro do país, e de lá muito frequentemente para Lisboa. Ela não
se insere, portanto, no conjunto de músicos que, identificados com a cultura
platina, optam por criar a partir de e sobre esse universo tão único que reúne
artistas do Rio Grande do Sul, do Uruguai e da Argentina – o que fazem com
bastante originalidade e qualidade, diga-se de passagem.
De
volta ao show... É só lá pela metade que ela nos apresenta a canção que dá nome
ao espetáculo, Olhos de onda. E mais
uma vez me admira o que ela consegue fazer com tão poucos acordes. Três, neste
caso, que longe de nos enfadar, nos prende. Assim como são três os acordes que
formam Tua, música feita para um dos
últimos discos de Maria Bethânia (2009) batizado com o nome da composição. A
economia de acordes, em geral, é “compensada” pela carga poética com que
elabora as letras das canções. Uns versos,
que não esteve no repertório deste show, é um claro exemplo disso. Dois acordes
e um eu lírico a falar em bardos, eunucos e arautos e a descrever-se em
metáforas sem fim. Tua não fica
atrás. Mas nela, é a própria figura da compositora que se apresenta, revelando,
insegura:
Arde o gás que faz esta canção
Será que você vai me ouvir?
Sabemos também
onde ela está:
Dentro da noite voraz
[...] da noite
feroz
[...] da noite
fugaz
e estes versos, que iniciam cada estrofe, fazem eco a
outra canção sua, já bem conhecida, Vambora,
em que se refere a dois livros de Ferreira Gullar, sendo um deles,
precisamente, Dentro da noite veloz.
Sim,
a relação de Adriana com a literatura e os poetas brasileiros é antiga. Além de
Gullar, de quem já musicou alguns poemas (como a série dos gatinhos, presente
em seu trabalho para crianças como Adriana Partimpim), Waly Salomão é outro
grande parceiro, em vida e mesmo em morte. No show ela conta, sempre
bem-humorada, um pouco do modo como os dois criavam, e canta algo que fez sobre
o começo de um de seus poemas, Motivos
reais banais.
Uma das
primeiras aparições de Waly em seu trabalho acontece no terceiro disco, que
leva o nome de uma poesia deste autor, A
fábrica do poema (1994). Nele, Adriana mostra a sagacidade e a
sensibilidade que possui para musicar letras/poemas que, a princípio, não
pareceriam muito adequados, pela extensão, pela falta de rima (precisa?) – mas nunca
de ritmo! Ela o faz, não sem deixar que a música transpareça essa “dificuldade”
ou esse estranhamento.
tornei-me perito em extrair
faíscas das britas e leite das pedras
acordo!
e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo
acordo!
Outro
momento chave da apresentação é quando ela canta Me dê motivo, conhecida por nós na voz de Tim Maia. E aqui Adriana
surpreende com uma interpretação bem a la
Calcanhotto, com a delicadeza e a fineza que lhe são parte.
E é
com essa delicadeza que ela guia todo o show. Talvez por estar em sua cidade
natal, o que admite já de início causar um certo nervosismo, um ouvinte mais
atento poderia notar que o andamento e o volume das canções estavam um pouco
mais lento e mais baixo que o usual. Mas isso são coisas que o artista de palco
bem conhece: um dia se está assim, noutro dia não se está mais.
O ouvinte atento
também repararia no como Adriana está apostando mais nos graves de seu registro
vocal. Em vinte anos de carreira é natural que o cantor experimente em sua voz
– que, é claro, muda com o tempo – alcances que antes não atingia. E é
maravilhoso quando ele (ela, no caso) descobre novas possibilidades. Além da
voz, o violão de Adriana Calcanhotto também vem se sofisticando. A atenção
dedicada ao instrumento lhe rendeu um machucado no pulso há uns anos, o que lhe
deixou longe do parceiro por um tempo. Agora ela volta com gosto.
E
como estamos em um festival da cena, um último comentário sobre os aspectos
visuais do espetáculo faz-se necessário. A iluminação, lindíssima, eu diria,
completava o palco com cores e texturas, enquanto a cantora ficava no centro
com o seu violão. Vestida com um figurino também admirável, tal qual uma túnica
esvoaçante (como ela gosta de usar em seus espetáculos) que lhe confere um ar
de diva ou de deusa, Adriana nos encanta do princípio ao fim.
* Nayara Brito é jornalista e mestranda em Artes Cênicas na UFRGS
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