A
tragédia carioca O beijo no asfalto de Nelson Rodrigues é boa, muito boa, das
melhores peças dele. Não vou descrevê-la, o texto está por aí, é só procurar.
Vou me deter um bocadinho no protagonista, pois foi ele quem me chamou a
atenção nesta montagem sob a direção do conceituado diretor Cláudio Lira, na
encenação pernambucana financiada pela FUNARTE “Nelson Brasil Rodrigues: 100
anos do Anjo pornográfico”.
A
peripécia de Arandir se dá no espaço de pouquíssimo tempo. Ele passa de um
marido realizado e feliz a uma vítima do destino. Tudo porque, num ímpeto de
irracionalidade, ele beija na boca - no meio da rua - um homem moribundo. A
mídia se aproveita do caso para vender notícia e o povo novidadeiro se
empanturra num gozo sádico, cujo clímax só poderia ser a extinção do foco da
peste (no caso, a morte de Arandir, o sobrevivente do beijo
homossexual). Entretanto, quando isso acontece, o sogro de Arandir
se debruça sobre seu cadáver e o beija, mostrando claramente que o beijo no
asfalto não para por aí, mas continua se disseminando até que, 50 anos depois,
milhares de GLS levantam suas bandeiras com as cores do arco-íris, no mundo
inteiro. As coisas mudaram bastante. Vendo por esta ótica, defendo que Nelson
Rodrigues inventou um mártir do amor homoerótico ao escrever esta tragédia.
Mártir na verdadeira acepção do termo, ação de alguém que se entrega a uma
epifania. Realizar o último pedido de alguém que morre é, para Arandir,
alcançar o supremo bem.
Parece-me
que as tragédias de Nelson Rodrigues são a catarse de sua culpa. Culpa por não
ter tido a possibilidade de evitar as tragédias que acometeram sua vida
pessoal. A morte do irmão, a filha cega, suas infidelidades
conjugais. Esses três eventos vão aparecer espelhados inversamente em
Arandir. Vou contar mais ou menos, de memória. O jornal da família
Rodrigues escancarou um caso de adultério de uma socialite, destruindo a vida
da mulher. Ela veio com uma arma em busca de uma desesperada vingança. Não
encontrou o pai, então matou o irmão de Nelson. Semelhantemente, temos o
caso da imprensa se apropriando da vida de Arandir, numa infame e caluniosa
exposição. Arandir encontra o homem que vai morrer uns segundos antes do
acidente, quando ia pedir um empréstimo bancário para que sua mulher fizesse um
aborto. Nelson dizia que o aborto era coisa de Jack, o estripador, mas ele
deve ter ao menos pensado nessa hipótese antes de a filha cega nascer, ou depois, como numa compensação psíquica
retroativa. E por fim, Nelson se envolvia frequentemente com amantes...
A culpa de Nelson gerou Arandir, personagem que é luminoso em sua fanática
adoração ao corpo da esposa. A escuridão do mau tempo (peripécia)
tem início quando ele quer que a sua mulher aborte, para que a gravidez não lhe
estrague a barriga lisinha. O tempo ruim de Arandir (do tupi - Ara‘ni, mau
tempo/temporal) se estabelece por ele querer ser bom demais, ele é o marido
ideal que casou virgem com a
namorada de infância e faz amor com a esposa cotidianamente, que se sente culpado por ter
visto acidentalmente a cunhada nua. Essas virtudes que o dramaturgo não
possuía, mas fantasiava, sempre que iniciava a corte a uma mulher bonita e bem mais
jovem; essas virtudes se
tornam excessivas em Arandir, gerando
sua hibris. Arandir - assim como Nelson - é um fanático pela fidelidade, pelo
amor eterno. Em resumo: Arandir é o que Nelson, em fantasia, gostaria de ser,
um herói da bondade. Um menestrel a serviço de Deus e da donzela amada.
A solução rodrigueana para gerar a tragédia é o genial gatilho que ele
coloca na abertura da peça: o beijo
no asfalto. Um moribundo, atropelado por um ônibus, pede a quem se aproxima de
seu rosto, que lhe beije a boca. Arandir - alter ego de Nelson - foi o primeiro
a correr em auxílio do acidentado.
No beijo de outro homem, Arandir se purificava. Ao contaminar-se com a morte,
ele abandonava a sordidez do mundo. Arandir diz ao final da peça que aquele
beijo o salvara, pois ele não era, ainda, totalmente bom. Com o beijo atingiria
a bondade absoluta. Acontece que, por ninguém atribuir virtude àquele gesto,
nem mesmo a mulher
amada, o próprio Arandir começa a duvidar de sua pureza. Morre o
herói trágico, por sua desmedida; só é possível que ele habite entre os deuses,
não entre nós, humanos comuns, sedentos de espiar tragédias alheias, para que
estas nos distraiam da nossa sordidez.
Nelson Rodrigues (ou Arandir), gênio
autêntico, original e insubstituível, continua nos beijando a boca, em cada
fala de seus textos.
Nessa montagem de Cláudio Lira se destaca Eduardo Japiassu em excelente
atuação, rodrigueanamente histriônica. Os demais atores estão equilibrados no
desempenho, que conta com a coringagem para representar o coro em trajes cinza
e óculos escuros. Bom achado, pelo simbolismo da neutralidade disfarçada, que
tudo observa a serviço de uma moral dominante.
A
montagem usa projeções para mostrar populares comentando o episódio da peça,
fazer alusão à mídia televisiva, além de projetar mulheres mexeriqueiras que
fazem o tradicional coro dos vizinhos, comum nas peças de Rodrigues. O efeito
das projeções em vídeo é bom, torna o espetáculo atual, porém às vezes dispersa
o foco narrativo, diluindo a tensão dramática. A trilha sonora, a luz e o
cenário estão coerentes e são eficazes na agilização das trocas de espaço e
tempo. A direção soube dar impacto às cenas mais violentas, que são os
interrogatórios. Na atuação do elenco vê-se equilíbrio e competência. Uma boa
equipe:
Arthur Canavarro (Arandir), Andrêzza Alves
(Selminha), Ivo Barreto (Amado Ribeiro), Pascoal Filizola (Delegado Cunha),
Sandra Rino (Viúva, D. Judith e Aruba), Daniela Travassos (Dália) e Lano de
Lins (Barros, Werneck e um personagem surpresa ao final). Ainda há a
participação das atrizes Cira Ramos, Clenira Melo, Vanda Phaelante, Renata
Phaelante, Márcia Cruz e Sônia Bierbard, que se mostram “virtualmente” na peça,
numa homenagem a todas as atrizes pernambucanas, como opção do diretor, com
falas da personagem Matilde, vizinha fofoqueira que acompanha o drama de
Arandir, além dos comunicadores Gino César e Cardinot, este um
símbolo da popularíssima imprensa pernambucana.
* Camilo de Lélis é encenador
3 comentários:
...para não gerar interpretação equivocada, na frase : Arandir é o que Nelson, em fantasia, gostaria de ser, um herói da bondade. Um menestrel a serviço de Deus e da donzela amada. Leia-se : a serviço do BEM e da donzela amada. (por ser uma questão mais ética do que religiosa.
Camilo.
Camilo, agradeço as palavras, o seu olhar sobre o nosso trabalho. O melhor de um festival é estreitar laços. Feliz por ser citado, saber que estou contribuindo com um trabalho tão lindo. Nelson sempre será um desafio, gosto disso!
Primeiramente, agradeço pela atenciosa resposta ao meu comentário, ao Eduardo Japiassu que interpretou o sogro no armário, Aprígio, com destaque, na montagem pernambucana de O Beijo no Asfalto.
E, "segundamente", aproveito para referir um encontro com o ator e diretor Fernando Kike Barbosa, que já interpretou o Arandir em montagem do Depósito de Teatro, sob direção de Patrícia Fagundes. Pois, o Kike me revelou que a ideia de Arandir ser o alter-ego de Nelson Rodrigues foi uma coisa assumida publicamente pelo próprio Nelson. Enfim, não escrevi nada de original. Mas, como eu não sabia desse detalhe, fica-me a alegria de não ter sido, apenas, um bom achado de minha parte, mas uma análise certeira da texto - referendada pelo autor. Enfim, de qualquer maneira, quem é do ofício não se atrapalha...
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