O ruído branco da palavra noite*
O espetáculo baseia-se na correspondência trocada entre as principais figuras do Teatro de Arte de Moscou, tais como Tchekhov, Górki, Stanislavski, Dantchenko e Meyerhold, a partir do livro O cotidiano de uma lenda – cartas do Teatro de Arte de Moscou, de Cristiane Layher Takeda.
Aí está o principal mérito da montagem, buscar dar voz a homens e mulheres que compuseram um dos mais belos e profícuos momentos da história do teatro. Os ensaios, as buscas, as formas de interpretar e escrever, os anseios e inquietações que moveram estes artistas ousados e profundos.
Para tanto, as cartas são ditas pelos atores em cenas de ensaio, leituras e conversas. Entremeadas a elas, fragmentos das obras de Anton Tchekhov, A gaivota, Tio Vania, As três irmãs e O jardim das cerejeiras.
A paixão que mobilizou estes homens e mulheres e que, provavelmente, move também a Companhia Auto-Retrato, de SP, na busca do germe da criação e sua relação com as circunstâncias do mundo, está, porém, ausente do espetáculo.
Cartas trocadas refletem as sensações do momento, apresentam outra forma de narrativa, trazem a possibilidade de traduzir-se para o outro através de uma reflexão íntima posta em palavras escritas. Ao revelá-las em cena, os atores o fazem de forma quase sempre igual, propondo uma secura que não convida, não afeta o espectador. Há momentos, no entanto, em que é permitido sair deste aprisionamento e é aí, nestas brechas, que escapa a paixão daquela e desta gente de teatro.
É o caso em que uma atriz vem à plateia e, através da fala de Meyerhold, expõe a necessidade do teatro de rever-se e o faz com energia corporal vibrante. Outro bom momento é aquele em que um ator através de carta de Dantchenko, expõe a profunda relação deste com Stanislavski, ambos parceiros na criação do Teatro de Arte de Moscou. Aqui, percebe-se uma entrega ao instante, ao agora da cena. O ator deixa-se emocionar, traz isto a sua voz e atrai-nos.
Ao entremear cenas das peças com cenas de vivência das cartas, a companhia compõe uma narrativa interessante para a cena. É necessário, entretanto, avivá-la, inserir rupturas, assumir as quebras, dando ao espectador a possibilidade de, através das fissuras, entrever a intensa inquietação daqueles momentos de criação.
O que se desenrola a nossa frente passa a ser um desfile de cenas, quase sempre no mesmo tom. Personagens tchekhovianas e criadores russos se sucedem na mesma energia e pulsação. Desta forma o espetáculo padece de um andamento linear e cansativo.
Os corpos em cena pedem intensidade, necessitam de vozes que flutuem que sejam certeiras como flechas, que tragam nuances para a atuação. Ansiamos por ver em cena a pulsação daqueles tempos, a inquietação vivida no cerne da criação. A iluminação poderia favorecer mais os atores e a cena, tornando-se menos escura, variando mais, inserindo mais focos. Quando isto acontece, atuação e encenação brilham.
Da mesma forma, os figurinos deixariam de lado a isenção, a pretensa neutralidade ou certo tom de cotidiano indefinido, para assumir mais as diferenças propostas. Às vezes, um único elemento pode trazer a ênfase desejada.
Tudo está posto, todos os elementos inseridos, a companhia precisa então, deixar-se apaixonar e viver o aqui-agora do teatro. Como certamente fizeram aqueles bravos homens e mulheres de teatro, na Rússia da virada dos séculos XIX e XX.
* Mirna Spritzer é atriz e professora do Departamento de Arte Dramática da UFRGS
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