segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Neva por Rodrigo Monteiro

Neva*

Falar do socialismo nesse início de século XXI soa tão mofado quanto da Bíblia, uma vez que ambos os textos refletem um mundo que já não existe. Neva, o primeiro texto do chileno Guilhermo Calderón, não teria muito a nos dizer se parássemos nessa concepção. A encenação do texto, porém e felizmente, prova justamente o contrário. Dirigida por Álvaro Corrêa, a produção uruguaia se estrutura a partir da exploração máxima de jogos linguísticos em que atores interpretam atores que interpretam personagens e é difícil saber quando são os personagens e quando são os personagens interpretados pelos personagens que estão falando. Com vivacidade surpreendente, o trio excelente de atores eleva o texto escrito por Calderón, acrescenta ao teatro e completa uma muito boa participação no 18º Porto Alegre em Cena.
Atrás do palco fictício, três atores estão reunidos na Rússia de 1905 (12 anos antes da Revolução Socialista). Olga Knipper (Bettina Mondino), a primeira atriz do Teatro de Moscou, está ensaiando O jardim das cerejeiras, texto escrito por Antón Tchekov, seu marido falecido seis meses antes. Junto dela, os colegas Masha (Paola Venditto) e Aleko (Moré) a auxiliam nesse ensaio, mas também em outros jogos dramáticos que incluem, entre outros, a interpretação de alguns momentos ocorridos às vésperas da morte de Tchekhov, um dos maiores dramaturgos russos. O realismo do cenário, do figurino, da iluminação, mas, sobretudo, no modo como o diálogo acontece, deixa o espectador com o prazer de acessar as informações do texto, rejuvenescidas pelo contexto em que são realizadas. Os três atores exibem excelências na forma como construíram e dão a ver as suas construções: texto dito de forma clara, pausas bem marcadas, expressões limpas.
Ponto alto do espetáculo, o discurso final de Paola Venditto (Masha) tem o poder de nos fazer refletir sobre o lugar do teatro na abandonada discussão sobre classes sociais. Através da personagem, Venditto e, outrora, Calderón, nos convocam, nos estimulam, nos põem a debater. Antecedido por um excepcional número musical, em que Mondino mostra-se também uma ótima cantora, a cena final, além de ratificar a linguagem estabelecida até o momento, imprime a beleza da simplicidade de um teatro bem feito: uma atriz interpretando uma personagem diante de um público. Nada mais, além de aplauso.
* Rodrigo Monteiro é crítico teatral

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