Dueto para um*
Dueto para um, enquanto produção cênica, justamente por ser bastante bem feito, discute algumas velhas ideias de que teatro é ação. Ao final, concorda: teatro é, sim, ação. O ator, sem dúvida, quando está interpretando um personagem, está colocando-se em relação a outro ator enquanto coloca o seu personagem em relação a outro personagem. O ator situa-se numa parte da produção e diante de um público. O personagem fica numa parte da história e diante de quem a percebe visual, sonora e presencialmente. Justamente por não ficarem nas posições em que foram postos inicialmente é que é possível identificar a ação existente em produções como essa. Dueto para um, texto escrito em 1980 por Tom Kempinski (Inglaterra, 1938), participa do 18º Porto Alegre em Cena numa montagem dirigida por Mika Lins e interpretada por Bel Kowarick e Marcos Suchara. Os personagens Stephanie Abrahams e Dr. Feldmann, diante um do outro e nada mais, colocam-se (ou veem-se) diante de si mesmos nas diferentes e sequentes sessões de psiquiatria em que ela é paciente e ele é o especialista.
Kowarick, vencedora do Prêmio APCA de melhor atriz em 2010, interpreta a sarcástica violinista que, por sofrer de esclerose múltipla, precisa enfrentar as dificuldades causadas pelo necessário abandono da prática da música. Suchara dá vida ao psiquiatra, personagem através do qual nós conhecemos a história da protagonista. Ela está numa cadeira de rodas, ele numa cadeira sem rodas. O palco, uma plataforma circular, gira discretamente ao longo da encenação. Em jogo, estão o modo como alguém constrói a sua vida a partir das relações que estabelece entre seus diversos discursos e a fatal presença ou ausência de possibilidades de escolhas que todos temos ou contemplamos no que diz respeito ao nosso futuro. A cada nova sessão, os atores são os mesmos e estão dispostos basicamente da mesma forma no palco, mas os personagens, graças ao excelente trabalho de direção de Lins, cujo mérito não se sobressai diante da técnica apurada de interpretação empregada pelo casal de atores, parecem ser diferentes.
A encenação coloca os dois personagens numa disputa em que, a todo tempo, um persegue o outro. A paciente faz inúmeras perguntas ao médico que responde a apenas algumas delas. O médico faz perguntas à violinista que reage em níveis diferentes de sarcasmo, da sutil ironia à terrível grosseria. O tempo passa e emociona quem se surpreende em vê-lo passar tão depressa. O cenário criado por Cássio Brasil (criador dos figurinos do musical gaúcho Ópera monstra) é delicado e cruel: ao público só cabe contemplar que movimentos já foram e continuam sendo feitos, o que se mostra como uma excelente metáfora para a vida. Talvez a vida só seja mesmo compreendida quando vista por quem sente que a perdeu. E o fato de já não tê-la perdido de todo pode ainda ser mais cruel porque impede de recomeçar uma nova oportunidade, essa com novas possibilidades, mas, quem sabe, com mesma base. A iluminação e a trilha sonora definem os contornos que, ora unem as duas construções, ora as separam, de forma que seja possível identificar o quanto um personagem participa como definidor de reações do outro. O óbvio é que a paciente se sinta influenciada pelo médico. A montagem paulista não se afasta desse óbvio e ganha muitos pontos positivos por isso. O sublime está em ser possível tentar adivinhar as reações do médico diante da influencia que essa paciente em especial lhe faz ter.
Com muito mais chances, creio que a maioria bem aproveitada, de brilhar, Bel Kowarick está excelente em seu trabalho de interpretação. O fato, no entanto, de ter menos chances, não tira Marcos Suchara o mérito de tê-las aproveitado a contento. A dupla providencia à audiência teatro da melhor qualidade, esse construído a partir de muitas mãos talentosas que mostram eficientes resultados.
Vale a pena conferir o filme Sede de viver, a versão cinematográfica da peça Duet for one. Julie Andrews está no papel principal nessa atualização da peça que oferece ao espectador o direito de visualizar algumas das muitas possibilidades que um texto de teatro, rico como é o caso, oferece aos diversos encenadores e, assim, identificar o desafio que a produção da montagem tratada aqui teve, venceu e nos trouxe.
* Rodrigo Monteiro é crítico teatral
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