Nada del amor me produce envidia*
Ontem tive a sorte e felicidade de assistir, dando início à fruição do 18º Porto Alegre em Cena, a Nada del amor me produce envidia, produção argentina com texto de Santiago Loza, direção de Diego Lerman e atuação de María Merlino.
Se me fosse dada apenas uma única possibilidade de adjetivar esse espetáculo, escolheria a palavra “delicadeza”. Guardo a impressão, desde a primeira cena, no escuro, de escutar uma voz “de rouxinol”, uma emissão sem esforço que permite entrever uma alma luminosa, que se entrega pouco a pouco, durante os sessenta minutos que convivemos. María Merlino tem os olhos úmidos, vivos e radiantes e fala como canta: suavemente. E que beleza sensível, quanta técnica devidamente oculta naquela boca pequena e ágil. Sua capacidade de precisão desafia os cânones genéricos de interpretação dos monólogos, nos quais seguidamente vemos atores “desempenharem”, no sentido de provarem suas capacidades, o que não raras vezes significa uma atuação com exageros e excessos de demonstrações de habilidades, para dizer o mínimo. Não é esse o caso, muito antes pelo contrário: María tem um senso de medida extraordinário, eu diria mesmo exemplar. Sua concentração, desenvoltura e exatidão de articulação, o volume de voz que utiliza, o corpo que desenha no espaço uma gestualidade própria da contenção de “uma simples costureira”, que pertence ao grupo dos que obedecem e são guiados pelos solitários poderosos - e mesmo a condução que organiza do crescendo da situação de tensão do roteiro, tudo isso prima pelo destaque da justa medida que emprega para sua realização. A atriz é tão magnética na apresentação da ficção, que esqueço o objetivo do espetáculo, aristotelicamente contador de uma história, como se acreditasse no compartilhamento da intimidade daquele modelo de discrição ao viver um momento de destaque.
Sabemos, nós atores, que usar uma dose menor de volume (e energia) significa despregar o espectador da sua cadeira, para prestar atenção no que dizemos, mas a dificuldade de confiar nesse recuo, muitas vezes nos impede de estabelecer, em cena, a delicadeza, que Nada del amor me produce envidia nos oferece com maestria. A opção por poucos elementos na cena explicita, no todo do espetáculo, esse princípio de limpeza e economia revelados pelo trabalho da atriz.
As canções escolhidas e como elas contam o que a personagem não vive, apresentando-a pelo contraste, são um destaque na encenação, pois criam uma oportunidade de acompanhamos a musicalidade solitária daquela mulher dotada de bela voz, afinada, clara e limpa, que resta anônima apesar de todos os seus atributos e potencialidade. Como se a vida escorresse por entre seus dedos, como se não houvesse testemunhas de sua beleza. Comprei, na saída do teatro, o CD com a “banda sonora” do trabalho, que escuto e me delicio, porque revivo a emoção que sua voz me provoca.
O único senão que tenho desse trabalho notável é a pouca utilização da máquina de costura Singer presente no palco, como na minha história. Esse elemento participante de tantas existências e cujo som evoca, necessariamente, uma familiaridade para quem o conhece, portanto algo capaz de nos aproximar daquela vida, não aparece, deixando de fora um elemento poderoso, rico e sutil, como o trabalho. Claro que isso não compromete a montagem. Talvez por sua grandeza é que eu queira mais, como quem aprendeu a receber muito.
Muitas horas depois de tê-la assistido continuo com a forte sensação de que Maria reina. Sem qualquer esforço.
* Gisela Habeyche é atriz e professora do Departamento de Arte Dramática da UFRGS.
Um comentário:
Na solidão do seu atelier a personagem "flutua" entre a fala e o canto, do equilibrio à loucura, de uma forma elegante e delicada. Um lindo espetáculo.
Bela e sensivel crítica. Parabéns !
Postar um comentário