A minha saudade de
Dois perdidos numa noite suja*
Dois perdidos numa noite suja*
Fui assistir a Dois perdidos numa noite suja, célebre texto de Plínio Marcos, encenado pela Cia. Triptal de Teatro de São Paulo, neste Porto Alegre Em Cena de 2011. E me deu saudade. Em 2008, o grupo do qual faço parte atualmente como ator e produtor, a Cia. De Teatro Gato&Sapato, montou seu primeiro espetáculo que foi, justamente, Dois perdidos numa noite suja, tendo sido esse também meu trabalho de conclusão no Curso de Bacharelado em Teatro da UFRGS. O que mais me encanta nesse texto é a forma crua e visceral como o autor coloca dois homens de personalidades completamente diferentes vivendo num mesmo quarto de pensão e trabalhando no mesmo mercado como carregadores. E também me encanta o que esses personagens escondem um do outro e até de si próprios. Pois, a montagem dirigida por André Garolli poupa no cenário, no figurino e nos acessórios cênicos para colocar o texto em primeiro lugar, dissecando-o e revelando esses “segredos” dos personagens ao público, através das impecáveis interpretações dos atores Igor Kovalewski (como Tonho) e Renaldo Taunay (como Paco).
Outro momento em que senti saudade foi recordar que já havia assistido a uma maravilhosa montagem da Cia. Triptal para um texto de Eugène O’Neill, intitulada Zona de guerra, que participou de uma edição anterior do Porto Alegre Em Cena. Pois foi justamente uma cena dessa montagem que sugeriu a forma de conduzir o final da nossa encenação de Dois perdidos...,naquele mesmo ano. Havia uma rápida passagem em Homens ao mar que mostrava um marinheiro arrancando o coração de outro, de uma forma simples e eficiente, e, por isso, extremamente poética, teatral. Fizemos algo parecido em nosso primeiro espetáculo, na cena em que Tonho atira em Paco, no final da peça, revelando o afeto escondido entre os dois personagens. E, durante todo o tempo do Dois perdidos... da Cia. Triptal, eu me lembrava, com muitas saudades, de cada cena, cada fala, cada olhar que eu e meu querido colega de cena, Patrick Peres, executávamos ao jogar com os personagens de Plínio Marcos.
Eu interpretava Paco, um sujeito malandro, que só quer saber de se dar bem na vida, e de ser respeitado como um sujeito perigoso por todos (a partir do segundo ato), e que também é misterioso, escondendo o jogo várias vezes sobre diversas coisas. Eu o fiz de uma forma mais sinuosa, maliciosa, oportunista e mesquinha. Renaldo Taunay interpretou-o de forma leve, quase infantil e doce, com uma maldade de criança, na qual a humanidade e a pureza do personagem prevaleceram aos instintos de sobrevivência. O meu Paco não mostrava seus sentimentos; o de Taunay mostrava. O Tonho de Igor Kovalevski, da mesma forma, deixava-se verbalizar seus sentimentos de forma extremamente lúcida e coerente, mostrando um interiorano de boa família, que não se adequa àquele modo de vida, àquele quarto sujo e fedorento; já o Tonho de Patrick Peres, meu colega, não sentia o fedor do quarto, pois estava acostumado com ele, era parte dele, estava inserido naquele mundo até à raiz dos cabelos e não tinha consciência de como sair daquela situação.
De um modo geral, os personagens de Plínio Marcos foram entendidos pela Cia. Triptal de Teatro em suas formas humanas, tendo consciência do mundo em que vivem, conseguindo, por vezes, até mesmo verbalizar seus sentimentos. Já o meu grupo, a Cia. De Teatro Gato&Sapato, entende os mesmos personagens em suas formas animalescas, agindo por instintos, sem qualquer consciência ou distanciamento de seus mundos, pois encontram-se inebriados deles, numa bola de neve que nunca para de rolar, e que só aumenta, até explodir, causando as consequências extremas comuns a quase todas as peças de Plínio Marcos. E é este o grande jogo do teatro: as inúmeras possibilidades de interpretação de uma mesma obra, as múltiplas visões que essa arte pode dar às tramas e aos personagens a serem colocados no palco. Não existe certo ou errado. Só existe o diferente! Parabéns à Cia. Triptal pela belíssima montagem, e muito obrigado pelos momentos prazerosos que proporcionaram a esse ator, saudoso de interpretar o instigante texto de Plínio Marcos.
* Douglas Carvalho é ator
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