sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Pterodátilos por Guilherme Nervo

Vidas esburacadas*

Ao final de duas peças do Porto Alegre Em Cena, uma reflexão ficou ressoando dentro do meu corpo, suprimindo toda e qualquer outra sensação. Era mais ou menos assim: “Então é isso o que somos? O ser humano pode chegar a esse ponto? Somos essa podridão?”A imagem de ser humano passada por Histórias de amor líquido, de Paulo José, e Pterodátilos, de Felipe Hirsch, não é nenhum pouco positiva. Estas peças comprovam o peso que a comédia é capaz de carregar, rompendo com a ideia formada de que comédias são feitas para relaxar o público. Leveza é a última coisa que esses espetáculos apresentam. Só fui me dar conta da verdadeira dimensão que elas têm, depois de um ou dois dias. Enquanto ria, no teatro, não me dava conta (ou não queria me dar conta) de que estava rindo de minha própria condição, de minha grosseria, egoísmo, superficialidade e estupidez. Ria, como todos os outros, das minhas falhas e neuroses. Ninguém está imune delas, são companheiras de vida.
Pterodátilos já se apresenta instigante no próprio nome. Um dinossauro voador do período jurássico. Por quê? Mais tarde o cenário e o texto acabam revelando os motivos. O segundo elemento que capta a atenção do espectador é o cenário de Daniela Thomas, um escândalo de funcionalidade e estética. Comunica muito bem o estado de degradação que a família retratada alcança. As relações esburacadas terminam como o cenário: um campo de guerra no qual os personagens ficam literalmente e simbolicamente sem chão. A inclinação da plataforma é outro recurso bem utilizado, como se o núcleo familiar estivesse em constante desequilíbrio. Debaixo da casa existe um cemitério, dentre as folhas secas, fósseis de um dinossauro. Os pterodátilos eram conhecidos por seu tamanho e peso, assim como por seus hábitos canibais. O que deixa clara a relação com essa família: de destruição.
Grace, uma mãe (Mariana Lima) que tem muito tempo livre, preenchido por álcool e tratamentos de beleza, uma eterna bêbada que diz o que pensa, esquece o nome da filha e é tarada pelo filho. Artur (Marco Nanini), um pai ausente e adúltero, que é expulso de casa por ter sido demitido do cargo de presidente no emprego. Ema (Marco Nanini em duplo papel), uma filha que está sempre em estado histérico, engoliu um sapato e está prestes a casar com um homem (Felipe Abib) vestido de empregada. Então, o noivo admite estar apaixonado pelo irmão dela, o filho homossexual (Álamo Facó) que acaba de voltar para a família com o vírus do HIV. Talvez porque esteja apodrecendo com mais rapidez, seja ele o personagem que tira as tábuas do cenário, que prepara as covas dos familiares. É possível acreditar nessa história? Garanto que o texto do norte-americano Nicky Silver é ainda mais sem sentido do que isso, por isso os personagens possuem um tom farsesco. É possível inclusive duvidar da condição de seres humanos, afinal eles não apresentam um passado. O presente é uma desgraça. O que se espera do futuro? Para mim essa é uma família de fantasmas, o que de forma nenhuma a torna distante de nós. As semelhanças não são poucas, inclusive.
O texto está repleto de piadas rápidas, de humor barato e instantâneo. Essa é a pior característica da peça, o que ameaça a qualidade de Pterodátilos, mas a não a popularidade. O que ficou muito explícito pelo ruído incessante das gargalhadas que ecoavam no Salão de Atos da UFRGS, que parecia a ponto de explodir de público. Diante de tanto riso, houve espaço para a perturbação? Não senti a violência ou a contração nervosa na recepção do público de domingo, dia 18 de setembro. Bastava Marco Nanini abrir a boca ou sacolejar o corpo para o público cair da cadeira de tanto rir. Não estou questionando o trabalho do ator, que incomoda somente quando produz uma voz muito forçada, quase trancada e inaudível, mas antes problematizando a calorosa recepção. Marco Nanini constrói a filha com esmero, acreditava em cada palavra que ele dizia, enxergava uma garota desesperada sem que ele precisasse apelar ou afeminar suas características. Quanto a Mariana Lima, posso dizer que ela encarna a personagem com muita vontade, ela se entrega àquela mãe desnaturada, podre, que regurgita as falas como uma legítima bêbada. Nanini e Lima proporcionam uma aula de atuação.
Existe uma cena em que Artur deseja conversar com o filho de forma íntima. Então o filho responde: “Fodi com homens. Por quê? Porque é bom”. Ele detalha suas relações sexuais com um linguajar baixo, admitindo ter ciência de que isso não era seguro, mas alguma coisa o impelia a essa atitude. O pai levanta e diz: “Me sinto muito melhor depois de termos conversado”. Ele adota a mesma postura que a mulher, de negação. Ela diz que a homossexualidade do filho ficou no passado. Isso, quando ele está se envolvendo com o noivo da própria filha! A filha nega o fim do noivado, decide se tornar lésbica e dá um tiro na cabeça. Volta para o palco feliz, dizendo que a morte deu certo para ela. A notícia não abala ninguém, assim como não o faz o suicídio do noivo. A família escuta apenas o que quer escutar, estão todos escravizados na tentativa de saciar os desejos violentos de uma existência medíocre. E enquanto isso, o chão abre suas valas, a iluminação é pálida, o cenário é negro e metálico e a trilha sonora é assombrosa.
* Guilherme Nervo é estudante de Teatro no Departamento de Arte Dramática da UFRGS

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