Maricotinha ilumina a noite no 18º Porto Alegre em Cena*
Com a simplicidade de um sarau, Maria Bethânia encantou com sua presença, poesias e canções a platéia que lotou o Teatro do CIEE na noite de ontem. Acompanhada por dois músicos, o percussionista Carlos Cesar, com um bombo e outros poucos objetos e o maestro Jaime Além nas cordas de viola e violões, ela intercalou poesias de seus poetas preferidos e músicas já conhecidas do seu repertório, num casamento perfeito. Vestindo um figurino simples, mas impecável, que brilhava como ela, Bethânia parecia uma lua cheia de poesia e delicadeza. Os pés nus, emoldurados por delicadas correntes, organizavam equilíbrios curiosos, geralmente com a perna esquerda passeando para os lados e para trás, criando uma dança em harmonia com os braços, que muitas vezes se abriam, oferecendo o corpo em abraço de entrega. Diversas vezes, quando ia cantar, tirava os óculos de ler e fechava os olhos para estar inteira conosco, doce capricho seu, pois ela esteve inteira o tempo todo. Com esse gestual espontâneo e belo, Bethânia era a pura poesia que ela tanto ama.
Contou que o embrião deste trabalho nasceu em Belo Horizonte quando foi convidada a participar de uma leitura de textos na Universidade Federal de Minas Gerais e após, respeitando sua história de sempre recitar poemas nos shows, resolveu inverter essa ordem e criar um trabalho com ênfase na poesia e algumas interferências de canções. Revelou que seu amor pela palavra vem desde cedo, do tempo que estudava numa escola pública de Santo Amaro, onde aprendeu com seu professor Nestor Oliveira, a gostar de poemas. Chegou a cantar uma canção que é um poema desse mestre, musicado por Caetano. Pelo seu exemplo nos fez reverenciar o ensino público de qualidade, o talento dos professores devotados, a necessidade do reconhecimento dos artistas populares: um Brasil rico e amado.
A plateia atenta parecia suspender a respiração, tal o silêncio, para degustar a voz doce e forte que por mais de uma hora desfilou poemas que estudei nas aulas de português: Manoel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Lupicínio Rodrigues, Castro Alves e o ídolo da estrela, Fernando Pessoa, entre outros. Recitou também um tocante trecho de Guimarães Rosa, uma declaração de amor de Riobaldo por Diadorim da obra Grande Sertão: Veredas.
Na escolha dos poemas e canções, foram apresentados temas que nos aproximam de uma realidade que não vivemos aqui no sul, como a seca, o louvor ao rio São Francisco, a força e a beleza do homem do sertão e sua identidade nordestina, tudo isso mesclado ao amor e à religiosidade; assim ela compartilhou sua fé e exaltou Nossa Senhora.
Entre as canções, fomos brindados com trechos de Estranha forma de vida de Amália Rodrigues, Dança da solidão de Paulinho da Viola, Romaria de Renato Teixeira, ABC do sertão de Luiz Gonzaga, Último pau-de-arara de J. Guimarães/Venâncio/Corumbá, Marinheiro só de domínio público e Felicidade, de Lupicínio, que ela homenageou especialmente e contou que ele a recebeu no aeroporto quando ela veio pela primeira vez a Porto Alegre e que a levou para conhecer o centro da cidade.
No final, único momento em que leva o microfone para o meio do palco, a imagem de uma lua cheia foi projetada na rotunda e inscrita na lua, surgiu uma foto de Dona Canô, a quem Bethânia dedica o espetáculo. Fãs entusiasmados cobriram o palco de pétalas de rosas. A estrela saiu sob aplausos calorosos e pedidos de bis. Após alguns instantes os músicos voltaram. Bethânia explicou que leitura não tem bis, não é como um show, mas mesmo assim, generosa, entusiasmada e feliz atendeu às expectativas e de improviso nos brindou cantando “quando o carteiro chegou e meu nome gritou com uma carta na mão...”.
Na saída do teatro, percebi em muitas pessoas sorrisos, o enxugar de lágrimas, gestos expressivos como a mão no peito, tudo a demonstrar a intensa emoção que o espetáculo causou. Lindo, lindo, lindo!
* Shirley Rosário é diretora teatral e iluminadora
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