A última banda sonora*
Em sua biografia sobre Samuel Beckett, com quem conviveu por mais de vinte anos, o escritor James Knowlson identifica nos acontecimentos pessoais do dramaturgo, ocorridos no início de 1958, a gênese criadora de A última gravação. De todos, o principal teria sido a doença de Ethna MacCarthy, o amor de juventude de Beckett, diagnosticada com câncer de garganta, a quem ele passa a escrever longas cartas, cheias de sentimento, para demonstrar o afeto profundo que nunca deixara de sentir. As lembranças de Ethna, a quem amou jovem e cheia de vida, se justapõem, como afirma Knowlson, à certeza terrível dela estar doente e condenada à morte.
Ainda que não se procure compreender qualquer criação artística pela vida do autor, e, no teatro, que seja necessário partir do texto dramático para examinar o espetáculo, a maneira como se alternam o claro e o escuro, o desejo e a perda, a nostalgia ou as lembranças, a ambição e o fracasso fazem da montagem de Krapp´s last tape, de Robert Wilson, uma espécie de exumação. O velhaco Krapp, aos 69 anos, ouve a gravação que fizera há trinta anos e traz à tona um tempo em que “tudo estava lá”, tal qual o olhar da mulher que o fascinava na época. O estranhamento do vocabulário que havia empregado no passado, o escárnio em relação a quem ele foi, tudo faz com que se desvende um Krapp de 39 anos, que, por sua vez, acabara de ouvir uma gravação de quando tinha 27 anos, criando não a exumação de um cadáver, efetivamente, mas das situações de sua vida sintetizadas em momentos, em instantes durados, vistos através da moldura das bandas sonoras.
A última gravação, em sua origem, era uma peça radiofônica sobre o passado, mas a intensidade da montagem teatral de Bob Wilson capta os sentidos do espectador, direcionando-os para o aqui-e-agora da representação. Houve quem espiasse em direção ao urdimento do teatro, para ver de onde vinha tanta água. Se choveu e alternadamente se fez silêncio no palco do Theatro São Pedro, é porque cada elemento da rigorosa composição cênica do diretor estava fundado na plenitude da retratação daquela situação. O que mais admiro nos seus trabalhos é um tratamento de estilo, a maneira como ele desnaturaliza os gestos mais cotidianos, excluindo a forma mais costumeira da retratação psicológica sem, no entanto, romper com os princípios comportamentais da realidade. É claro que assistimos à exumação do passado de Krapp, mas o mais importante parece ser a forma como ele articula como linguagem o que representa para o velhaco o retorno ao passado: como se fosse sempre a última respiração de um velho pulmão, prestes a não mais funcionar, o som metálico da banda sonora era como o afiar da foice antecipando a chegada da morte. Seria esse o verdadeiro realismo?
* Clóvis Massa é ator e professor do Departamento de Arte Dramática da UFRGS
Nenhum comentário:
Postar um comentário