Cordel do amor sem fim*
No dia 8 de setembro, às 23h, na sala Álvaro Moreyra, assisti a um espetáculo de Pernambuco, dentro da programação do Poa em Cena. O texto de Claudia Barral narra uma lenda do sudoeste baiano, que se passa na cidade de Carinhanha às margens do rio São Francisco.
A peça conta com a direção de Samuel Santos, que soube traduzir em imagens o romance de um amor impossível, no estilo das tragédias de cordel, que sempre têm algo de surreal ou feérico em seu entrecho.
A trilha sonora com instrumentos convencionais, como violão e flauta doce, e apetrechos de atividade doméstica do meio rural, tais como pilão, raladores, tamancos, enxada etc, é executada ao vivo por um músico no palco, e por todos os quatro atores que, em alguns momentos, também cantam.
A preparação corporal dos interpretes – Agrinez Melo, Eliz Galvão, Naná Sodré e Thomas Aquino – permite-lhes suspender a ação em posições inusitadas e em posturas corporais que trazem referências do candomblé, ou de outras religiosidades de transe, muito comuns no Brasil, de norte a sul, principalmente pela contribuição das etnias indígenas e africanas na formação de nosso povo.
A plástica de iluminação, que utiliza lâmpadas dentro de objetos em cena, e os elementos cênicos, que são movidos e metamorfoseados pelos atores, criam ricas possibilidades visuais para tecer a urdidura cênica do Cordel do amor sem fim, sempre magnetizando, galvanizando, sugestionando, com os encantamentos da voz ou dos guizos de sementes.
Chama a atenção o fato de que o texto é muito bem falado, pronunciado de forma tão clara, que a prosódia regional do nordeste torna-se um adorno, e não um obstáculo para a nossa compreensão da história. Outra coisa a ressaltar, é que o português correto, nas concordâncias, nos plurais e singulares, não interfere na credibilidade das personagens, que seriam pessoas simples, talvez semi-analfabetas. O que demonstra que a convenção teatral não deve nada ao realismo; personagens podem falar com correção, seja qual for sua classe social. O melhor, contudo, é que o público sulista não foi privado das saborosas expressões e interjeições típicas do Nordeste.
Os atores contam a história de três irmãs e um pretendente, ora vivendo-os, ora se utilizando do distanciamento narrativo dos rapsodos. É uma história de amor, onde o destino e o acaso dão-se as mãos, para transformar a vida miúda de três irmãs, em uma grande tragédia.
Um espetáculo encantatório, em que a plateia deve deixar a razão à parte e desfrutar de uma viagem onírica. Constata-se, com Cordel do amor sem fim, que os mitos são um patrimônio comum da humanidade, e são atemporais, pois ainda há mulheres virando pedra, por não terem podido realizar o grande desejo de seus corações. Um belo espetáculo mostrando que o Brasil é grande. E o teatro brasileiro, também.
* Camilo de Lélis é encenador.
Um comentário:
Muito orgulho desse espetáculo que só engrandece nosso estado. Parabéns ao grupo que tem levado este belo trabalho aos 4 cantos do Brasil e a sensível crítica feita neste blog.
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