Neva*
O espetáculo Neva, trazido ao Porto Alegre em Cena deste ano em uma encenação de Álvaro Correa, apresenta-nos um pequeno fragmento da Rússia de 1905, quando as manifestações populares foram violentamente reprimidas pelas tropas militares. O texto de Guillermo Calderón mostra ao espectador o interior de uma companhia teatral russa que reflete sobre a situação política de seu país, ao mesmo tempo em que expressa suas inquietudes quanto ao próprio fazer artístico.
As relações estabelecidas entre estes dois contextos, o teatral e o político, são construídas pelo encenador uruguaio por meio de dois recursos distintos: sempre que a situação social deseja ser delineada na obra de modo mais evidente, ela é representada através de sombras e técnicas de manipulação de bonecos, projetados em uma tela que ocupa lugar central no cenário (dentro da moldura de uma janela). Por outro lado, quando o foco é a condição teatral da companhia e de seus membros, o discurso se constrói a palco aberto, por meio do diálogo entre os três atores que representam Masha, Aleko e a famosa atriz do Teatro de Arte de Moscou, Olga Knipper. Este mecanismo enfraquece a obra, posto que a repressão militar que invade São Petersburgo é mais violenta quando expressa por meio de palavras e pequenos signos implícitos no todo da encenação do que quando se manifesta de modo mais evidente, através da projeção de sombras de bonecos-soldados e de outros ícones que nada mais fazem do que sublinhar o discurso verbal, construindo um enunciado redundante e que pouco enriquece o texto que é levado à cena. O contexto revolucionário já está bastante presente no texto e na construção metateatral que propõe, dispensando este tipo de ilustração.
O cenário de madeira com um sofá ao centro parece uma tentativa de reconstrução do que poderia ser uma ambientação para aquele contexto, sem deixar claro se representa uma sala, um quarto ou o porão de um teatro. Ainda que a parede de madeira construída ao fundo deixe a cena demasiado pesada e fechada, nada indica ter sido esta uma escolha que não corresponda aos interesses da encenação. Os figurinos de Verônica Lagomarsino também contribuem para a sóbria reconstrução que é feita em cena, formando um todo harmônico entre luz, cenário e figurino, que podem agradar aos olhos daqueles que se interessam por este tipo de estética mais historicizante e conservadora.
Quanto à atuação, Bettina Mondino me pareceu notória – tanto em Neva como em Music hall (espetáculo este com direção de Diego Arbelo e também incluído na programação do 18º Poa em Cena). Com um bom toque de humor ao estilo “teatrão realista”, a atriz encontrou um ponto interessante para encarnar Olga Knipper, aqui representada como uma estrela insegura e traumatizada pela morte de seu marido, o famoso dramaturgo Anton Tchekhov, falecido em julho de 1904. Em Neva, Olga não se cansa de pedir a seus colegas que representem os minutos que antecederam a morte de Tchekhov. A meu ver, é ela quem sustenta a obra, sendo o ponto de conexão dos demais elementos da encenação, incluídas as atuações de Moré e de Paola Venditto quem, apesar de oscilatória, tentando manter-se verossímil durante quase toda a obra, dilui-se nos gritos e movimentações excessivas que compõem sua atuação no fragmento final do espetáculo.
A obra, ainda que frágil como encenação, apresenta um recorte do que pode haver sido fazer teatro em tempos de revolução, outorgando uma considerável dose de humor ao politicamente engajado texto de Calderón. Porem, se em alguns momentos isso torna o texto mais ácido, na maioria das vezes termina por dissolver sua força. Eu prefiro sempre o vigor e a chamada do espectador à imaginação do que a ilustração e univocidade cênica, o que neste espetáculo poucas vezes aconteceu, posto que quase nunca foi valorizada a polissemia, sendo uma escolha da direção trabalhar com signos fechados e uníssonos. Evidentemente, isso é apenas um recorte e os méritos da encenação variam de acordo com o olhar.
* Camila Bauer é professora do Departamento de Arte Dramática da UFRGS
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