A lua vem da Ásia*
Baseado no romance surrealista A lua vem da Ásia, de Campos de Carvalho (1916-1998), publicado pela primeira vez em 1956, e já traduzido em diversas línguas, o espetáculo dirigido por Moacir Chaves (também diretor de Labirinto) e interpretado por Chico Díaz é um dos melhores espetáculos do 18º Porto Alegre em Cena. Em uma hora e meia de um discurso pra lá de verborrágico o ator, num monólogo em noventa e cinco minutos, estabelece várias situações sem jamais perder o foco sobre a própria situação, ou melhor, sobre o lugar em que se encontra seu personagem: preso em si mesmo.
O espetáculo se divide em dois momentos. No primeiro, o personagem, cujo último nome dado a ele por ele mesmo é Astrogildo, está num quarto onde tudo parece menor que ele. Um piano, uma cama, uma prateleira: os móveis parecem servir a um anão. Não há paredes, mas o público percebe uma diferenciação entre o piso desse quarto e o além. A iluminação de Renato Machado, bastante significativa, marca não só a divisão entre esses dois espaços, como define um terceiro. Há um corredor onde o prisioneiro pode estar em alguns momentos do seu dia (para pegar sol). Em várias ocasiões, os movimentos de luz, através do jogo de cores, vai auxiliando o ator na narrativa e o espectador na interpretação dela de forma esteticamente valorosa. Em um determinado momento, um homem entra em cena e alcança para o Díaz um prato de sopa. O signo será repetido mais adiante e ganhará, assim, grande importância. A situação inicial e os pontos fundamentais a partir dos quais a história ganhará força estão dados nesse primeiro momento. Há ainda que se destacar a divisão da peça em capítulos: desde o início, a linguagem surreal, gênero no qual o texto se insere, marca a encenação uma vez que, por exemplo, as partes surgem numa ordem sem lógica, ou numa organização paralela. Capítulo um, capítulo quartorze, capítulo CLXXXIII, capítulo (sem número) e assim por diante, são os números que, projetados, marcam a passagem das cenas ou o seu perpetuar.
Na segunda parte do espetáculo, aparentemente, a história já não é contada no mesmo lugar em que o fora na abertura. O espaço é outro, um não-espaço talvez. A falta de continuidade dos fatos narrados prossegue numa verborragia ilimitada cheia de imagens, rica exploração da sonoridade (mérito do ator que dá esse tom às palavras do autor) e forte apelo à atenção da audiência pelas bem executadas pausas. É como se fosse incrível não compreender a lógica que une os fatos, esses não-ligados ou continuados em outra esfera de compreensão que não a natural. É quando Díaz, através de seu personagem já despido de qualquer segredo, parece estar intimamente relacionado ao público que o assiste. Apresentada no Theatro São Pedro, espaço formal e privilegiado das artes cênicas em solo gaúcho, a peça, nesse ponto, ganha ares intimistas que quebram o distanciamento existente entre o ator e quem lhe assiste. O teatro, nesse contexto especial, celebra o encontro, o convívio entre quem conta histórias e quem as ouve com carinho. O segundo se relaciona com o primeiro a partir da entrada do mesmo homem com um novo prato de sopa. Sem qualquer outro gesto, ao público é permitido pensar que o lugar de narração continua sendo o mesmo e que o seu desaparecimento é, na verdade, um ponto de vista de quem narra. Nessa direção, o surrelismo conversa com o impressionismo, gênero estético anterior na cronologia das obras de arte, em um excepcional modo de conduzir a organização dos signos imagéticos.
A lua vem da Ásia: projeções, figurinos, adereços e cenários, iluminação e trilha sonora são elementos que, magnificamente bem arranjados, constroem um belíssimo objeto artístico que celebra a arte, o artista e os simpatizantes. O texto, que se fosse um pouco mais curto, esbarraria menos no perigoso tédio, também é um elemento utilizado a contento, ainda que, nessa montagem, adquira tão nobre responsabilidade. Em todas as possibilidades de construção do sentido, o espetáculo ganha, mas quem recebe o prêmio é quem lho assistiu.
* Rodrigo Monteiro é crítico teatral
2 comentários:
O texto de Campos de Carvalho, tornado dramático pelo ator e direção, trazem ao Porto Alegre em Cena uma outra opção estética em que não se faz necessáro grandes acrobacias corporais, mas um domínio total do que trata o texto. Certamente Chico Diaz o tem vívido em sua mente como se ele próprio houvesse vivido tal experiência. Neste espetáculo, a fragmentação faz total sentido. nnao serve apenas para alinhar-se ao mmodismo do discurso pós-dramático. Resgatar Campos de Carvalho, aproximando nosso teatro de nossa literatura (ou vice e versa), é um dos grandes méritos deste trabalho, pelas palavras bem ditas e sentidas no palco e plateia. Hermes Bernardi Jr.
Fiz anotações. Vim do espetáculo querendo escrever um texto mas a vida me levou para outros lados e sabia que alguém acabaria por fazê-lo, escrevendo quase tudo que penso. Rodrigo, como sempre, não é tão impressionista quanto eu costumo ser. Nem por isso menos interessante. Porém, gostaria de acrescentar que, as projeções das próprias atuações do ator me fizeram pensar que, talvez, não fosse tão alucinante uma vida como aquela do personagem. Afinal, a vida dos atores é composta de infinitas realidades, vivências, experiências e, entre muitas coisas do espetáculo com as quais me identifiquei (o assassinato do professor de lógica - meu pai era professor de matemática, a vida em uma ponte do rio sena - minha mãe era professora de francês e o personagem que escreve todo o tempo - sou jornalista)e as muitas frases incríveis, ficou uma que reverberou: "Muitas verdades se degladiam dentro de mim".
Postar um comentário