O curandeiro*
Não dá pra segurar, rasga coração! Queria ficar só com o sentimento, não escrever nada. Afinal, é uma peça que o público, na noite em que assisti, estava meio indiferente. Algumas pessoas saíram no meio do espetáculo...Sério, é verdade. Influenciado pela peça, vou escrever, assim, sob efeito da memória emocional.
A começar pelos intérpretes. Walter Breda é um ator que participa de muitas novelas de sucesso na televisão. Trabalha também como dublador. O seu estilo de usar a voz é muito peculiar e dá um sabor especial ao seu personagem, que é um misto de charlatão e milagreiro. Essa mistura é, precisamente, o drama do personagem, pois não podendo usar seu dom paranormal, segundo a sua vontade, fica à mercê do acaso, e do uísque, para realizar suas apresentações. Ele é o protagonista. Mariana Muniz, atriz, coreógrafa e bailarina, com muitos prêmios em sua carreira, representa a esposa do curandeiro. Alguém que abandona a família rica para segui-lo. Mariana é tão dedicada em sua entrega ao papel, que quase não percebemos que estamos diante de uma maravilha. Ela é uma diva. Fernando Paz, ator que trabalhou na Companhia do Latão e Grupo Tapa. É, também, clown na equipe dos Doutores da Alegria. Nesta peça, ele faz o papel do empresário do show de curas místicas.
A autoria da peça é do irlandês Brian Friel, considerado um expoente da dramaturgia irlandesa atual. Uma mesma história (equipe mambembe viaja por cidadezinhas da Escócia, País de Gales e Irlanda, realizando sessões de cura), é contada sob o ponto de vista de cada um dos integrantes do trio: Frank - o bruxo; Grace - sua esposa; Teddy – empresário de artistas decadentes. Eles nunca se encontram em cena. São monólogos.
Não há cenário, só uma faixa com o nome do show, que é o mesmo nome da peça: O Fantástico Reparador de Feridas. Há três cadeiras e uma mesa com uma vitrola e outros pequenos elementos. Que eu me lembre, mais nada. A luz é branca. Um foco pontua um episódio, que se repete, exatamente igual, nas três narrativas: o episódio trágico, que dará fim às peripécias da trupe. Três histórias diferentes e, entretanto, uma mesma história. Não se trata de que cada um dos personagens recria, inventa o passado. O que acontece é uma coisa mais interessante, pois ninguém mente, e as narrativas se complementam entre si, na verificação de uma única verdade inexorável: o dom especial - que um homem traz de berço (a cura), mas que depende de algo fora de seu controle (a fé) - imantará o destino de três criaturas, numa mesma direção.
Eu teria muitas outras coisas para escrever, eu que não queria escrever nada. A peça me tocou, porque o dramaturgo criou uma história muito boa (nem pós-dramática, nem transumana, apenas uma história), e ela foi interpretada por três ótimos atores, sob regência de uma direção sutil, precisa e erudita de Domingos Nunez.
No entanto, teve gente saindo no meio do espetáculo...Talvez, por estar com o cérebro superexcitado por montagens com muito “glamour” e muita “purpurina”, não tiveram paciência para um trabalho que exige algum esforço de quem assiste: escutar uma história, juntar seus pedaços, acompanhar...Não é garantido, mas a cura de nossas feridas pode se realizar, também, através do teatro.
* Camilo de Lélis é encenador
Um comentário:
Tenho certeza que - inúmeras vezes, de formas muito diversas, às vezes imperceptíveis, outras vezes incompreensíveis - o teatro é um grande reparador de feridas.
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