Histórias de amor líquido*
Baseado no livro Amor líquido – sobre a fragilidade dos laços humanos, do sociólogo alemão Zygmund Bauman, o espetáculo participante do 18º Porto Alegre em Cena sucede o excelente Um navio no espaço ou Ana Cristina César, que participou da edição anterior do mesmo festival, esse também dirigido por Paulo José. No entanto, nem de longe, o espetáculo apresenta o mesmo saldo de aspectos positivos, o que é decepcionante. Histórias de amor líquido tem uma dramaturgia que se divide em três historias: Rua sem saída, A corretora e A casa da ponte, escritas por Walter Daguerre. No elenco, os 13 personagens são interpretados por cinco atores: Ana Kutner, Bel Kutner, Natália Garcez, Alcemar Vieira e Adriano Garib. No palco, em altos paineis, imagens são projetadas. No chão, há três grandes cancelas, um banco de madeira e outro estofado. Nas laterais, cobertas por um tecido negro transparente, uma credencia em cada lado é iluminada por um abajur que deixa ver alguns objetos sobre ela. As cenas das três histórias, bem como seus personagens, se intercalam ao longo da sessão. Os equívocos, no entanto, são contínuos.
Vamos aos fatos.
a) As cancelas não adquirem nenhuma função positiva além de ilustrar. Na mesma medida, atrapalham. Em uma das histórias, há, ao fundo, uma rua sem saída, que é citada num único instante de momento. Em outra história, há uma ponte cujo fim não é conhecido pelos personagens. Não há cancelas nessa ponte. Na terceira história, os ambientes são interiores de apartamentos. As três cancelas, imensas a dominar o palco, sujam a cena sem motivos aparentes. b) Não há uma única projeção realmente interessante em todo o período da encenação. O recurso é usado hoje com o mesmo motivo que, antes dos anos 70, se usavam grandes telões pintados ao fundo do palco. A diferença é que hoje a audiência já não carece desse tipo de sugestão. (Maneco Quinderé, um dos iluminadores mais conhecidos e respeitados do cenário teatral brasileiro, teria resolvido a questão com maestria, acrescentando, sem dúvida, os faltantes pontos positivos nessa abordagem.) c) Histórias de amor líquido apresenta-se um drama. O figurino televisivo, altamente realista, então, empobrece a narrativa, o que é mais um aspecto em que a produção se perde. Essa opção estética irá concordar com a construção de alguns personagens, como, mais adiante será tratado. d) Trilha sonora e iluminação passam despercebidas. Não atrapalham, não se apresentam de forma negativa, mas pouco acrescentam. O tom realista quase televisivo se repete também na concepção da sonorização, enquanto a luz fica sem espaço para evidenciar, talvez, alguns pontos que poderiam ser interessantes.
Sobre a interpretação dos atores e a dramaturgia:
Bel Kutner apresenta o melhor desempenho em cena nos dois personagens que interpreta: a Corretora e a Mãe. Os pequenos conflitos internos são ganham marcas sutis que tornam o trabalho da atriz consistente, evidenciado pela forma como ela faz afirmações às personagens: as nuances, as ironias, os desejos escondidos. Natália Garcez interpreta apenas uma personagem e, ainda assim, com uma participação pequena. Tem, por isso, menos oportunidades de mostrar um bom trabalho, mas, quando pode, exibe uma construção à altura de Bel Kutner, o que torna possível encontrar-lhe mérito. É dessa dupla o mérito pelo melhor momento da encenação, também o único em que a projeção é usada de forma rica. Alcemar Vieira e Adriano Garib, no entanto, não mostram, em momento algum, profundidade na viabilização de seus personagens: os tons de suas vozes são realistas, as movimentações e os ritmos das expressões no desenrolar das cenas são meramente ilustrativos e as construções, todas elas, se mostram rasas, o que destoa do drama expresso pelo texto cenicamente produzido. No elenco, o problema maior é Ana Kutner. Os aspectos negativos já observados nas atuações masculinas se repetem nela, mas têm a dose aumentada em função dos personagens, cujas importâncias são altas, que ela representa. São dois: uma mulher que sofre em relacionamento aberto e uma mulher que foi abandonada pelo marido carreirista que a trocara pela filha do patrão (qualquer referência a Eurípedes, talvez, não seja mera coincidência.). A atriz quase não explora as expressões faciais, seu tom de voz faz poucas modificações e seu andar pelo palco não é seguro. O “tic” de mexer com o rosto em uma das personagens não é corporalizado, enquanto a outra personagem anda de um banco a outro, tão insegura que parece estar para permanecer em pé. O conjunto de atores parece estar perdido na cena em meio aos bancos, cancelas e computadores: trocam objetos, esquecem coisas e pesam o ritmo das cenas, esse cada vez mais lento e monótono. O Vigilante da Rua (Adriano Garib) é um personagem sem história, visivelmente uma “degrau” para a outra personagem (Ana Kutner) se apresentar. Por sua vez, essa personagem, a Mulher Abandonada, tem a possibilidade de evidenciar seus conflitos com personagens que são projetados em vídeo no painel do fundo, num recurso estético que, embora interessante, deixa ver, nesse caso, a falta de função consistente do trabalho do ator que está, nesse momento, em cena. O Cliente da Corretora (Garib) e o Jogador de Futebol (Alcemar Vieira) são também outros personagens cujos conflitos não aparecem a contento, de forma que é evidente ser eles também apenas degraus para a “Corretora” (Bel Kutner), o que, de um modo geral, exibe uma irregularidade negativa na construção dramatúrgica das figuras que contam essas histórias.
Em termos de conteúdo, há pouca ou nenhuma reflexão. A discussão sobre a importância dos laços e dos compromissos num relacionamento contemporâneo se vai quando personagens de outras épocas surgem seguidos de um baú de lembranças. Nesse momento, parece ficar clara a decisão da peça: os acordos feitos por gerações anteriores eram mais cheios de bons valores que os atuais. O triste fim da “Corretora” moraliza e encerra novamente o debate: o sexo sem compromisso não é uma boa alternativa, afirma o espetáculo. Na rua sem saída, fica o choro por um marido que abandonou a sua esposa e por uma esposa que abandonou seu marido.
Histórias de amor líquido paira entre o drama, o realismo televisivo e a peça de auto-ajuda. O benefício é manter presente a certeza de que a realização de bons espetáculos outrora não é garantia de sucesso em produções presentes e futuras. Esperemos, pois, ansiosos pelas próximas produções dos mesmos realizadores.
* Rodrigo Monteiro é crítico teatral
Nenhum comentário:
Postar um comentário