Pterodátilos*
A experiência de assistir um espetáculo não começa quando apagam as luzes da plateia, mas muito antes: em nossas referências e expectativas, no caminho e na chegada no teatro. Assistir um espetáculo no Porto Alegre em Cena é um acontecimento em si mesmo, especialmente para quem é do meio, em estreias concorridas em locais imensos como a Reitoria da UFRGS. Há uma dimensão social significativa em estar no teatro, encontros, abraços, saudações, breves diálogos e trocas que conferem uma importância e um prazer singulares no estar-junto que o fenômeno cênico propicia.
Assim, minha experiência ao assistir Pterodátilos não se resume ao espetáculo em si. É antecedida por referências muito positivas sobre a montagem, pelo reconhecimento de um texto excelente, de uma equipe qualificada e aclamada, pelo tom celebratório em sua presença no festival. Infelizmente (porque vou ao teatro para desfrutar), a montagem não correspondeu a minhas expectativas.
Sem dúvida, a produção é profissional e dispendiosa, Nanini é um ator brilhante, Daniela Thomas é uma grande cenógrafa, o texto é ótimo, a equipe é competente. O ritmo acelerado dos diálogos e o desequilíbrio do cenário tentam oferecer a experiência de vertigem e queda que o texto sugere, o visual em tons de chumbo é sofisticado. No entanto, esses recursos parecem servir a efeitos espetaculares que se reduzem à essa dimensão: ser espetacular, brilhar por si mesmo, como anúncios de neon. A iluminação cheia de estilo e recursos sublinha momentos de intensidade dramática, que não chegam a acontecer pelo próprio jogo cênico. A potência que percebo no texto se dispersa em um tom de comédia ligeira, cujo objetivo central parece ser a comemoração das décadas de teatro de Nanini. É nessa comemoração, a propósito, onde encontro o sentido para que o ator represente uma adolescente de 15 anos, em um elenco onde todos os outros personagens são feitos por atores que correspondem ao tipo físico sugerido. Ou seja, a proposta de encenação poderia jogar com corpos estranhos ao papel, desestabilizando as dinâmicas de representação - um homem gordo fazendo a mãe, uma anã de Todd, etc. - empregando um procedimento recorrente na cena contemporânea, que frequentemente revira as estruturas do teatro, questionando a si mesma. Mas não é essa a proposta, já que Nanini é o único corpo estranho ao seu papel, todos os outros estão dentro do horizonte do esperado. É bonito celebrar a trajetória de artistas, mas penso que seria mais fecundo criar um texto próprio para tal celebração. Posso estar enganada, mas penso que a temática de Pterodátilos não trata disso.
Confesso que o caráter de super produção da montagem tampouco me seduz, como no geral super produções teatrais não me seduzem, e claro que essa é uma postura parcial e prévia - não há opinião inocente. O cinema de Hollywood, a Broadway e as cantoras pop já se dedicam a super produções surpreendentes e anestesiantes. Penso que o teatro pode ocupar outro lugar no mundo hoje, fomentando espaços singulares de encontro ou de convívio (como propõe Jorge Dubatti, o pensador argentino que recentemente esteve em Porto Alegre na Reunião Científica da Abrace). Mais do que em objetos e efeitos, me seduz perceber investimentos em condições de trabalho continuado e tempo para o desenvolvimento de processos criativos desafiadores, lembrando que, mais que nunca, tempo é dinheiro em nossa época veloz.
É necessário evidenciar outro antecedente importante em minha recepção do espetáculo: a memória da montagem de Pterodátilos dirigida por João de Ricardo há alguns anos atrás, com seus colegas de DAD. Se chamava Extinção, possivelmente porque o grupo não tinha verba para pagar os direitos de Nicky Silver. Um produção modesta que assisti na Álvaro Moreyra, e que encontrei densa, provocadora, inteligente, atravessada de um humor negro muitas vezes incômodo. Lembro da força de Marcos Contreras no papel de Todd.
Ao escrever esse comentário, penso que provavelmente será uma opinião dissonante em meio à chuva de elogios à montagem. Preferiria escrever sobre algo que me tocou e vibrou como Out of context, para festejar junto com outras vozes a experiência da cena. Mas combinei de escrever sobre Pterodátilos, e aqui estou. Por outro lado, Nelson já nos alertou sobre o perigo da unanimidade, antecipando-se a uma potente linha do pensamento contemporâneo que celebra a diferença, o heterogêneo e o polissêmico. Nesse sentido, a dissonância é necessária. Dissono (? )
* Patrícia Fagundes é encenadora
12 comentários:
Saí do teatro com uma impressão parecida, mas achei que a culpa era das GARGALHADAS da plateia. Aí é a parte ruim dessa "experiência de assistir a um espetáculo". Gosto do texto, de algumas cenas, da Mariana Lima, maaas... fica a lembrança do ótimo trabalho do João Ricardo :)
Parabéns pela qualidade do texto, Patrícia. Nem sempre um texto que reflete sobre teatro consegue ser ao mesmo tempo um texto bem escrito, ainda que muitas vezes o conteúdo seja interessante. O teu é bem escrito e com conteúdo. E, por fim: obrigada por discordar (da massa).
(Eu gostei da montagem. É muito acima da média. Ainda assim, concordo com muito do que tu dizes.)
O comentário do Anônimo acima, ao invés de atacar a crítica, ataca quem la escreveu, sendo ofensivo, grosseiro e covarde. Perde assim a razão de existir e, muito mais, de estar figurando aqui nesse blog. (Eu o deletaria.)
Voltando ao tema, foi ótimo você ter lembrado, Patrícia, do Extinção (tinha um subtítulo imenso...), segunda montagem da Companhia Espaço em Branco. Lisandro Beloto fazia o pai, Sissi Venturin fazia a filha, Evelyn Ligocki fazia a mãe, Rodrigo Scalari o noivo e o Contreras, como vc lembrou, fazia o Filho. Um imenso dinossauro ficava ao fundo do cenário e aparecia no final. De fato, um belíssimo trabalho!
Acho uma pena que o blog do em cena, que deveria servir para termos discussões inteligentes sobre os espetáculos, aceite comentários anônimos carregados de ofensas pessoais.
Bom... em quanto isso no mundo real: quero dizer que a crítica da Patrícia está ótima, bem escrita (isso que minha opinião sobre o espetáculo não é mesma que a dela) e que hoje a noite eu pretendo encontrá-la para tomarmos uma cerveja abraçadas no seu ego oceânico. (adorei o ego oceânico)
Considero a análise crítica feita pela Patrícia Fagundes muito precisa e fundamentada, sem paixões ou preferências pessoais como embasamento. Também lamentei que o excelente texto de Nicky Silver não teve suas qualidades plenamente aproveitadas, numa encenação que se rendeu muitas vezes à busca do riso fácil em detrimento ao humor cáustico, negro e melancólico que Ptérodátilos carrega. Ainda bem que tivemos a oportunidade de assistir à Extinção de João de Ricardo e sua trupe. Esta sim uma montagem mais a altura do que se espera de um teatro superior e inquietante. No entanto reconheço muitas qualidades no espetáculo carioca e recomendaria. Mas ele não é, por assim dizer, nenhuma Brastemp...
Margarida Leoni Peixoto
Morgana, estou sendo o mais democrático possível, ao não bloquear nenhum dos comentários do blog. O "Anônimo" que escreveu criticando a Patrícia perde os argumentos sozinho, o que é demonstrado pelos vários outros comentários (inclusive o teu), sem que seja necessária a minha censura. Obviamente que, se a ofensa fosse maior, eu não publicaria. Aliás, escrever uma crítica sobre um espetáculo é se posicionar publicamente sobre ele. A Patrícia, corajosamente, e como seria de se esperar de alguém que pensa aprofundadamente sobre teatro, assumiu o risco de desagradar a alguns dos leitores do blog. Assim como não somos unânimes como artistas, não somos como críticos.
Abraço,
Marcelo Adams
Penso que a crítica acima é extremamente pertinente.
Sugiro que o cometário hostil seja retirado para que o foco da discussão seja a análise artística e não críticas pessoais.
Putz! O pior é imaginar que este imbecil que postou o comentário covarde e anônimo possa ser um artista e que ele não consiga compreender que o mundo contemporâneo é feito - GRAÇAS AO UNIVERSO! - de opiniões diversificadas! Arrogante é tu que não respeita a opinião dos outros, Mr. Anonimato, se escondendo atrás de posts sem embasamento nenhum. Lamentável!
É a eterna contradição da atual democracia da informação. Ao mesmo tempo que podemos ter opiniões sobre o PoaemCena de pessoas que fazem e vivem o teatro constantemente, podemos ver o que alguns chamam de covardia expressa no anonimato. Pra mim, isso não incomoda, é previsível, comum, e digno de esquecimento. A crítica é maravilhosamente coerente, justa, sincera; uma das poucas que se dá conta de detalhes já "naturalizados" no público, mesmo os mais exigentes. Deixemos o anônimo no anonimato, e comecemos a discutir teatro com a profundidade que esse texto merece.
Bah, que pena, comentei aqui quando ainda não haviam comentários, e ele não foi publicado. Bem, que o seja, assim: Patrícia, gostei muito de suas impressões e de como as expressaste aqui. Extinção, de João de Ricardo, era mais corrosivo, portanto mais próximo, creio eu, do olhar de Nick Silver. Mas tudo pode ser visto, olhado, compreendido por diversos ângulos e através destes interpretados. Uns optam pelo soco no estômago. Outros, pelo show. Ambos tem público. E crítica. Este é o bom aspecto que mantém latente e necessária a Arte.
o que foi legal no comentário anônimo que se dedica a insultar-me é que gerou um fórum sobre a importância do exercício da diferença e da pluraridade de opiniões, desde que, claro, sejam fundamentadas, indo além do "gosto-não gosto" ou de ofensas pessoais. se desde a ciência já se defende a impossibilidade da verdade absoluta(quântica: o ato de observar altera o observado, e diferentes imagens podem ser válidas sobre um sistema, mesmo que se excluam mutuamente!)não seremos nós desde a arte que imporemos visões únicas. Troquemos, pois. Ideias, percepções, contradições, desejos, jantares, brindes! Sendo heterogêneos, polissêmicos, contraditórios e vivos.
Evocando as palavras do mestre Brook:
"o artista deve ser fiel a si mesmo, quase acreditando no que faz, mas fiel também de a verdade está sempre além. Por isso é tão valiosa a possibilidade de estar em si e além de si, num movimento para dentro e para fora que se expande na interação com os outros e constitui a base da visão esteroscópica de vida que o teatro pode proporcionar" (Peter BrooK, em O Ponto de Mudança)
Patrícia Fagundes
Em grande parte - e talvez sem todos os fundamentos de que dispõe a autora do post - concordo com a opinião de Patrícia. Parecia algo preparado pra colocar Nanini num pedestal (talvez merecido) e dar-lhe a chance de mostrar versatilidade (?). Parece que o tema central da peça passou despercebido pela maior parte das cabeças presentes entusiasmadas pelo fato de ver ao vivo o ser que encarna personagens cômicos que toda semana estão dentro de suas casas. Acompanhada de uma amiga que bem lembrou 'Extinção', lembrei-me da ótima sensação que me acompanhou muito tempo depois daquela montagem, me fez realmente pensar. Talvez soe antigo, mas prefiro trabalhos que me movam, façam pensar e isso não exclui a ironia que faz rir, o tropeço engraçado que podem nos conduzir por um caminho cheio de altos e baixos, que mantém o 'pique' do trabalho, prende o interesse de quem assiste.
Elenco excelente - certamente, cenário inteligente sem ser original na forma e na textura mas que eventualmente distraía da 'destruição' que estava em curso. Pergunte a alguém do que se trata e poucos conseguem relatar com precisão.
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