Vi, vivi Viúvas*
Quando tentei ver o espetáculo Viúvas no início deste ano estava acompanhada do meu namorado. O primeiro depois de muitos anos. Hoje, ainda tenho amigos que me perguntam pelo “falecido”, mas não me sinto Viúva. Até porque não éramos casados e ele não morreu. Mas, com certeza, não está tão bem quanto eu que agora consegui assistir ao espetáculo. Espetáculo? Não. É mais do que isso. É um acontecimento.
Com medo de perder novamente a oportunidade de assistir Viúvas, e com o sistema de ingressos não acusando minha compra, acabei com cinco ingressos. Convidei desta vez para ir comigo uma amiga que recém começou a ir ao teatro. Os outros, revendi para pessoas que ficaram extremamente gratas, antes mesmo de assistir.
A expectativa de ir para uma ilha naquele dia de vento já mexia comigo muitas horas antes. Apesar das tardes de calor, era hora de voltar as mantas, casacos e boinas. Pelo meu imaginário chegava a passar a possibilidade de eu me ver sendo obrigada a ficar a noite na ilha. Exagero da minha parte, mas era bom se precaver contra o frio e a fome.
Não tinha muitas informações sobre o espetáculo em si, mas sabia que pegaríamos um ônibus, depois um barco para chegar até o local. Lá, vi Laura Backes subindo para sua poltrona e fui atrás e, naquele pequeno trajeto, já começamos a partilhar opiniões sobre as amizades, sobre moda, sobre o nosso jeito de ser. Convívio.
Desde o início, recebemos instruções que demonstravam organização e controle e nos passavam segurança. A caminho da ilha porém, ao ver a água alta quase chegando a janela e vendo os coletes salva-vidas sobre as nossas cabeças a lembrança de catástrofes veio a minha mente. Este misto de tensão e curiosidade já me preparava para o que estava por vir. Lembrei meu pai (que já se foi) contando diversas vezes que fazia a travessia todos os dias para ir trabalhar em uma agência bancária do outro lado do rio.
Ainda no barco, um dos atores começa a falar sobre a importância da pátria. De onde ele veio? Ele já estava entre nós? “Lá, onde até mesmo os cachorros latem diferente”. Penso no meu sobrinho que está na Austrália e que defende que nos vejamos como seres universais.
A chegada na ilha é impactante. Não só pela beleza das pedras iluminadas, mas pelos atores, comandados por Paulo Flores, que apontam armas em nossa direção. Já não parecemos tão poucos. Tiro da minha sacola um bloco e uma caneta para registrar algumas impressões. Faço isso com certo medo de ser advertida. O clima do espetáculo que mal começou já está introjetado em mim.
Vamos sendo conduzidos pelos caminhos e pela história desta memória de uma época ainda tão recente. Em uma galeria de celas sem grades, Tânia Farias promove um dos momentos mais tocantes do espetáculo. Afirma, aos gritos e aos prantos, que não vai parar enquanto não juntar todos os pedaços do pai, todas as cinzas. E por entre o público, olhando nos olhos marejados de algumas pessoas presentes, questiona: onde está Mario, onde está João, onde está Roberto, onde está Fernando, onde está Paulo, onde está...A cada nome uma emoção cada vez mais contundente. Sua atuação é tão profunda que tenho vontade de abraçá-la. Ela toca em mim e me puxa para dentro da sua agonia. Nunca as palavras esperar e desesperança tiveram tanto nexo como ali.
Somos levados para outro espaço que na ilha vazia e fria se enche de música. Enquanto eles dançam, eu me pergunto (com olhos de pesquisadora), o porquê da festa. Reconheço o trecho da história que eles relatam ali, mas ainda estou sacudida pela força da tragédia, da perda, do desaparecimento daqueles que amamos. São os sorrisos, o pão, o vinho compartilhado e as danças que diminuem um pouco (não completamente) a minha angústia. É a personagem de Tânia que, mais uma vez, se aproxima e agora me conforta com seu sorriso e seu toque meigo. Passo a mão em sua cabeça e suspiro.
A cena mais forte é vista a distância, entre uma luz negra piscante, fogos e ruídos. Sinto um certo alívio por isso. Percebo que já não sei onde estou. Se já passei por ali. Neste “cenário” de pedras, verde e água, em uma noite de lua cheia e estrelas, eu fui transportada no tempo. Para um momento da história em que corpos nus, empilhados uns sobre os outros significavam o fim da tortura, mas não o fim da espera dessas Viúvas. Saio da ilha com a certeza de que acabo de assistir e de viver momentos que serão inesquecíveis e o grupo Oi nóiz aqui traveiz registra em mim para sempre uma história que precisa ser lembrada para que jamais se repita. A efemeridade daquelas vidas perdidas foram transformadas pelo grupo Terreira da Tribo em algo eterno.
* Helena Mello é jornalista
Um comentário:
Helena, muito sensível a tua resenha como também é o espetáculo. Tive muita sorte de ter vivido esse acontecimento!
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