Do texto ao roteiro: um processo de construção dramatúrgica*
Assisti ao espetáculo Cabaré do Ivo, dirigido por Maurício Guzinski, do Grupo Experimental de Teatro (GET), durante a Semana Ivo Bender, que ocorreu em maio deste ano. O evento, promovido pela Secretaria Municipal da Cultura, comemorou os 75 anos de vida e 50 de carreira do nosso querido dramaturgo e escritor Ivo Bender, mestre que eu tive a honra de ter como professor durante minha formação teatral no Departamento de Arte Dramática da UFRGS. Agora que o espetáculo foi exibido novamente no Porto Alegre em Cena e sabendo que a montagem ganhará nova temporada, em outubro, na Casa de Cultura Mario Quintana, aproveito este espaço para fazer algumas considerações sobre um tema que se conecta diretamente a Bender: a construção do texto para a cena.
O assunto esteve, recentemente, na pauta de discussão do projeto Sessão da Classe, reunindo na Sala Álvaro Moreyra o próprio Ivo Bender, a encenadora Jezebel de Carli e o dramaturgo Diones Camargo, com mediação do jornalista e pesquisador Renato Mendonça. Em especial, como sugere o título deste texto, farei considerações rápidas sobre a dramaturgia construída para a cena tendo como referência textos literários e a literatura dramática. A reflexão surgiu a partir do trabalho do diretor Maurício Guzinski, uma trajetória que acompanho, pessoalmente, primeiro como ator de seu grupo e, depois, como amigo e jornalista que cobre a área cultural. Além disso, Guzinski coordena, desde sua primeira edição, o Concurso de Dramaturgia Carlos Carvalho que está em sua oitava edição.
Desde o início dos anos 1980, quando criou o Grupo Pés na Terra, em Porto Alegre, o ator e diretor Maurício Guzinski preocupa-se com a construção de uma dramaturgia própria. Não se trata aqui de pensar em uma dramaturgia da cena, conceito que também grita em seus espetáculos imagéticos-textuais. Mas, sim, de analisar outro aspecto primordial de sua pulsão criativa: o uso da literatura (e da literatura dramática) como ponto de partida para a construção de uma nova dramaturgia.
Em Dona Possança (1982), primeiro espetáculo do Grupo Pés na Terra, Guzinski inspirou-se na tese do sociólogo José Vicente Tavares dos Santos, Colonos do vinho – sobre os difíceis caminhos da imigração italiana no Rio Grande do Sul. Ele e seus atores, através de improvisações na sala de ensaio, transformaram a tese em um espetáculo teatral. A peça foi recebida com entusiasmo pela crítica e, em 1988, o roteiro do espetáculo foi publicado na coleção Teatro: Textos & Roteiros do Instituto Estadual do Livro.
O segundo trabalho do Grupo Pés na Terra, o espetáculo Antônio Chimango, recebeu o Prêmio Açorianos Especial de 1985. O roteiro da montagem foi criado a partir do famoso poemeto-campestre de Amaro Juvenal (pseudônimo de Ramiro Barcelos). O texto original estava praticamente, na íntegra, no palco, com o acréscimo de diversos outros textos criados em improvisações, pelo grupo, a partir da matriz literária.
Depois, Guzinski se aventurou em Shakespeare através de Macbeth (1989). Neste caso, a tragédia do dramaturgo inglês foi levada à cena com tradução assinada pelo grupo. No entanto, o diretor inseriu na peça uma nova cena, na qual misturou diálogos criados por Shakespeare para conferir ao espetáculo o ritmo que necessitava. Com esta experiência, Guzinski começou a experimentar um novo caminho para a produção textual de seus espetáculos. Se, antes, o diretor se valia de textos literários para criar sua dramaturgia, a partir de Macbeth, o processo ganha outra dinâmica.
É o que acontece em Amores e facadas (1991), último espetáculo do Grupo Pés na Terra. Guzinski reuniu fragmentos de cinco peças urbanas de João Simões Lopes Neto que ganharam novo significado a partir do roteiro proposto na encenação. Estava inaugurado, na carreira do diretor, o processo de produção dramatúrgica que viria a lhe acompanhar depois, em 2008, quando ele idealiza e dirige o Grupo Experimental de Teatro (GET), vinculado à Coordenação de Artes Cênicas da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre.
O primeiro resultado cênico do GET, que investiga o uso da palavra em cena, foi o espetáculo Para dentro do labirinto, apresentado no primeiro semestre de 2009. Com trechos de três peças de Jorge Andrade – Pedreira das almas, Vereda da salvação e As confrarias – a montagem mistura personagens e situações de várias obras do dramaturgo paulista, acrescentando trechos da biografia escrita pelo autor, com o título Labirinto. No segundo semestre do mesmo ano, o diretor orientou a montagem Nelson mítico, exercício cênico a partir de fragmentos das peças míticas de Nelson Rodrigues: Álbum de família, Anjo negro, Doroteia e Senhora dos afogados. Os dois espetáculos prosseguiram em cartaz, durante 2010, com apresentações em eventos e seminários especiais.
Em 2011, o terceiro módulo do GET teve como autor homenageado o dramaturgo gaúcho Ivo Bender. A montagem Cabaré do Ivo reuniu fragmentos de sete peças do dramaturgo: A ronda do lobo/1826, As cartas marcadas ou Os assassinos, O cabaré de Maria Elefante, Mulheres Mix, Quem roubou meu anabela?, Surpresa de verão e Sexta-feira das paixões. Com direção musical de Marcelo Delacroix e direção de atores de Laura Backes , o espetáculo é fiel ao objetivo principal da investigação: ter o texto como protagonista da cena. No entanto, como é tradicional no trabalho de Guzinski, este caminho é percorrido com imagens potentes em significados. Apesar de a cenografia ser simples e com poucos elementos (cadeiras e alguns adereços), o diretor busca a teatralidade no conjunto de corpos em cena, em sua movimentação e coreografias (assinadas por Carlota Albuquerque).
A base do roteiro é a peça O cabaré de Maria Elefante. Em cena durante todo o espetáculo, os oito atores apresentam esquetes curtos pinçados da dramaturgia de Bender, tendo como referência a estética do teatro de revista brasileiro. Assim, desfilam no palco vampiros, travestis ou um juiz de direito, em meio a canções e números de dança. O tragicômico das situações é sublinhado por um figurino em que predomina a cor preta e pelas maquiagens inspiradas no teatro oriental.
Ao embaralhar situações, personagens e diálogos, Guzinski borra as fronteiras de outra questão da arte e teatro contemporâneos: a autoria. Uma inédita dramaturgia surge de seu processo. Os fragmentos originais dos textos estão lá, mas organizados em outra ordem, na qual ganham nova potência. Deste mix, surgem outros Ivos, outros Nelsons, outros Jorges, outros Simões, outros Williams, já totalmente contagiados pela cena guzinskiana: um labirinto de palavras, de memórias, de corpos mortos que tratam da vida, de tragédias que falam de carne e sangue, de sombra e luz, em ritos teatrais de imagens e sons.
* Newton Silva é jornalista e apresentador na TVE RS
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