sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Agreste malvarosa por Hermes Bernardi Jr.

Agreste malvarosa*
Esta é a história de um homem e uma mulher que se conhecem no sertão nordestino. Entre eles, uma cerca, talvez a metáfora do amor impossível. Um amor que nasce predestinado à tragédia, a observar o clima instaurado desde a entrada da plateia. A viola chora uma dor, esteiras de palha envolvem o ambiente e tornam o lugar uma frágil clausura. Algo ali, nos será dito em segredo. Embora seco e frágil, o ambiente sugere a claustrofobia. Na face da atriz, sentada a encarar-nos, uma lágrima ressecada é o prenúncio de uma viagem árida, a seco, como o próprio sertão. A outra atriz perambula a esmo pelo palco, como se à procura de algo que possa florescer. Talvez a planta, a malva rosa, que empresta seu nome ao título nesta versão adaptada de Agreste, concebida para atores contadores de histórias e já vista no Poa em Cena. Malva rosa tem poderes medicinais. É usada como calmante, antifúngica e expectorante. Presta-se para expulsar o que nos incomoda à garganta.  O cenário lembra Uma mulher vestida de sol, de Ariano Suassuna, no qual usa como metáfora a cerca, a divisão dos lados, a impossibilidade do amor. Como não lembrar de Ariano quando arremetidos para o sertão nordestino? Um pequeno crucifixo suspenso é o indicativo do que Steiner denomina justiça poética: cada indivíduo deve receber da providência divina graças ou punições de acordo com seu caráter e suas atitudes. Assim, o espírito cristão fatalmente se atrela ao drama da terra árida. A primeira fala de Rosana - uma das atrizes contadoras - dirigida ao público que ali está como para ouvir histórias ao redor de uma fogueira, reforça o tom trágico do que iremos assistir. Sua voz é seca e firme. Sua voz é doída. 
Cruel, a natureza é
Dá o sol na desmedida
Dá um corpo na desmedida
Dá o amor na desmedida.
E então mesclam-se narrativas e ações para nos contar do ocorrido, cumprindo a rubrica que o próprio dramaturgo, Newton Moreno, sinaliza: “Da união destas duas linguagens – a oralidade e a dança-teatro; verbo e movimento – será feito o espetáculo.” Em clima de total tensão dramática, pontuada pela música que felicita e chora, embarcamos agreste amor adentro. Alegrias e dores, entre pavios que se apagam e lençóis que encobrem, vão construindo em nosso imaginário as imagens deste segredo de amor inspirado em fatos reais. Lembro de quando a notícia real viera à mídia. Tinha por característica enlevar o inusitado. A mulher que viveu por anos com seu marido, quando de sua morte, descobre um segredo a respeito do esposo e, sobre o qual, os vizinhos e autoridades de arredores supõe que ela tenha compactuado. O espetáculo dá-se em situação de contação de história. Millene e Rosana vão trazendo à cena alguns dos personagens. Newton o escreveu para ser um exercício de ator/contador. Sugere, inclusive, que “O narrador pode assumir todas as outras personagens, viúva, o padre, o delegado,ou as vozes dos moradores.” E a direção compartilhada de Stephane Brodt e Ana Teixeira, da reconhecida Cia. Amok Teatro, atende a isto à risca. O vigor, desde a entrada da plateia, desde as primeiras palavras ditas, se mantém com tamanho virtuosismo que, por vezes, nos leva a certa exaustão e desconforto, nos distanciando das imagens poéticas e da narrativa, que a poesia das palavras, objeto da ação proposta, possa vir a construir. O aplauso, aqui, torna-se consequência da tensão impressa ao tom vocal e à energia corporal utilizados para que a narrativa chegue a nós. Uma tensão “desmedida” – para reportar às palavras que nos introduzem à trama – como o fogo do preconceito que incendeia a tudo. Mas confesso que esperei pelo respiro, o fôlego último, para entrar no coração das personagens e extrair daquilo que as humaniza o que me toca no lugar de plateia e ouvinte. Não quisera morrer de sede no sertão. Quisera encontrar a flor, a malva rosa, para tornar amena a ranhura do amor incondicional.
* Hermes Bernardi Jr. é escritor