quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Medeia por Jessé Oliveira

Medeia numa montagem intercultural*

Médée, de Burkina Faso, sob a direção de Jean-Louis Martinelli foi, em minha opinião, um dos pontos culminantes do 18º Porto Alegre em Cena. Obviamente que eu tinha uma expectativa em relação a este espetáculo por conta de interesses pessoais, essencialmente pelo trabalho que desenvolvo junto ao Grupo Caixa-Preta. Há uma evidente identidade com o ensemble burquinense.
Para Bernard Dort não dizemos que vamos ver uma peça ou um espetáculo e sim que vamos ao teatro, significando que há muito mais coisas nesta aventura que somente a obra que assistiremos. Esta assertiva é confirmada por Jorge Dubatti que defende a noção de um convívio teatral que estende esta experiência a diversas dimensões para além do momento exclusivo da representação e para falar de Médée é preciso escancarar as portas do presente e do passado.
Fui ao espetáculo com a “tarefa” de extrair algum comentário que pudesse ser compartilhado com outras pessoas que iriam ler na página do festival e isto imprimiu certa preocupação extra com a experiência efêmera que é a representação teatral. Tive o privilégio de adentrar a plateia com aproximadamente uma hora de antecedência ao restante do público, o que me possibilitou presenciar ajustes por parte dos atores e equipe técnica e da própria produção do Em Cena. Inegável observar que se tratava de atores negros e equipe de criação e técnica formada por artistas brancos. No entanto, todos se comunicavam em francês, língua adotada no país desde que era uma possessão francesa. Impossível abstrair esta observação.
No final do século XIX a França chega a esta localidade e a nomeia de Alto Volta, que perduraria até o ano de 1984 quando troca para Burkina Faso. É um país muito pobre com alto índice de analfabetismo e, como toda a África, sofreu com a histórica espoliação colonialista que viveu durante mais de um século sob o domínio francês, tendo alcançado sua independência somente em 1960. Unificado e dividido muitas vezes segundo interesses externos, Burkina Faso, sofre ainda por esta história de violência política. Como parte da África, tem, atualmente, sua maioria religiosa de muçulmanos, mas ainda possui reminiscências de religiões originais que competem ainda com o cristianismo católico e protestante. Os deuses originais vivem no exílio, aqui no Brasil, em Cuba, no Haiti...
Esta situação de permanente acampamento de refugiados em seu próprio país serve de “cenário” para Médée, entretanto, falta à montagem decifrar a origem das lutas étnicas, pois elas foram intensificadas justamente pela delimitação artificial de um território político que não podia comportar a diversidade, fenômeno identificado em quase toda a África e Oriente Médio. Relevante lembrar que os anos 1950-1960 foi um período em que se desenvolveu o conceito de negritude, cunhado por intelectuais africanos e antilhanos francófonos que viveram na França, como Aimé Cesaire, Leopold Senghor, Sheik Anta Diop. A França à época tinha uma efervescência por liberdade, contudo, mantinha colônias na África e Ásia. Liberdade para quem?
Estivéssemos na Grécia Antiga, uma introdução à tragédia seria algo dispensável, uma vez que todos conheciam seus mitos e as histórias contadas nos festivais teatrais, todos queriam saber como seus autores preferidos desenvolviam cada história. Eurípides (480-406 a.C.) foi tragediógrafo da fase decadente de uma Grécia clássica já dominada pelo sofisma. O enredo de Medeia (431 a.C.) é simples e tem seu início na aventura dos Argonautas, liderados por Jasão que tem a tarefa de conquistar o Velocino de Ouro, muito bem protegido no Bosque de Ares, sob o domínio do rei da Cólquida, Eetes, pai de Medeia. Com a promessa de casamento por parte de Jasão ela o ajuda, e na fuga despedaça seu próprio irmão para atrasar os perseguidores. Tem dois filhos com Jasão e eles serão o instrumento de sua vingança. Medeia é sobrinha de Circe, a feiticeira, e neta de Hélio, o Sol, que ao final garante sua fuga no deus ex-máquina, uma inovação na estrutura trágica que de certa forma resolvia o complexo enredamento da narrativa euripidiana. Jasão pretere o amor de Medeia em favor de Creusa, filha do fraco Creonte e ela como vingança envia, através dos filhos, um véu enfeitiçado que ateia fogo na jovem e em seu pai. Ao retornarem os filhos são mortos por Medeia. A peça em questão é uma adaptação de Max Rouquete, que sintetiza muito bem a trama utilizando um dialeto do sul da França em contraponto com cânticos autóctones que muito lembram as cerimônias do povo do asè (Axé) brasileiro.
Aqui no Brasil, qualquer pessoa minimamente iniciada no Candomblé, ou no Batuque, designação da religião de matriz africana no Rio Grande do Sul, não precisaria de informação alguma para compreender os personagens e os signos da liturgia por haver um domínio desta cultura. Entretanto, nós, público médio, desconhecemos os mitos unificadores desta longa tradição perpetuada no país como forma de resistência cultural e política, assim como nos falta o conhecimento do sistema trágico grego. Nos resta analisar a obra a partir dos elementos que dominamos, na sua condição de teatro. E isto basta para compreender a montagem burquinense, estrelada pela magistral atriz Odile Sankara, uma vez que a obra trava aproximação muito grande com o teatro europeu. A Medeia de Odile é inesquecível e impecável assim como toda a montagem.
Já no início da peça chama atenção a pergunta proferida pelo coro: “Que povo que somos? Povo maldito” e que, sob certo aspecto, pode ser compreendida como uma ponte entre o discurso original da peça e o homem contemporâneo vivido pela população burquinense e o elenco de Médée.
Contrariando seus antecessores, da fatalidade cega de Ésquilo ou o lógos da razão socrática de Sófocles, em quem os deuses olímpicos tinham papel fundamental, em Euripides é Eros, a força da paixão que nutre os personagens. Medeia é, segundo Junito Brandão, a tragédia do amor transmutado em ódio mortal e, lembrando uma frase de Brecht: “um homem tem sempre medo de uma mulher que ame muito”. Odile, a atriz burquinense consegue dar esta dimensão da mulher que sofre por amar desmedidamente, mas não se torna submissa ao objeto amado, somente à sua própria paixão.
Além de uma presença cênica estupenda (seja lá o que isto significar) Odile tem uma voz e uma forma tão intensa de dizer o seu texto que comoveria, ainda que se estivesse de olhos fechados. A África tem uma tradição oral tão forte e viva, uma vez que parte do ensino-aprendizagem se dá pela oralidade e a transmissão do conhecimento é muito direta, apreende-se o conhecimento ancestral ouvindo os mais velhos. Gostaria de ter gravado esta mulher dizendo suas falas. Elas tinham imagens interiores.
Sua força contrasta com as figuras masculinas fracas como a do Rei Creonte, muito bem construídas pelo ator que o representou que, já em sua primeira aparição cativou e disse muito com seu silêncio cheio de intensidade. Creonte aparece em cena como um político populista e oportunista que por sua fraqueza intelectual em contraste com a fala apaixonada de Medeia acaba tendo como alternativa somente o uso da força. Contudo, a astúcia dela acaba por dobrá-lo pela falta de argumentos. É, sem dúvida, uma das cenas mais brilhantes desta montagem.
Não poderíamos esquecer a Ama, já presente em cena enquanto o público entra. Seria impossível. Ela tenta manter o fogo de um braseiro aceso e mantemo-nos presos as suas ações mínimas e, logo que começa a peça já indica sua preocupação com as intensões da protagonista. Juntamente com o preceptor dá a devida força para a progressão da peça a fim de manter o espectador atendo ao desenrolar da trama sempre num crescente. Ama e preceptor, uma dupla que joga o jogo do teatro numa simplicidade que comove. Aliados às crianças que foram recrutadas aqui e foram absolutamente magníficas - e olha que não gosto de peça com crianças em cena. O menino menor era de fazer suar os olhos e ao mesmo tempo tirar lindos sorrisos de nossos rostos sisudos, lembrando que existe um futuro...que dura pouco.
A peça segue em termos de espetáculo o rigor da tradição europeia. Pouco da narrativa ou mesmo dos elementos de encenação foge aos modelos conhecidos nos palcos ocidentais e isto não traz prejuízo algum, apenas saliento que não é uma peça construída sob os referenciais culturais africanos, ainda que consigamos ver uma corporalidade que afirma sua africanidade e, neste sentido criam um modo próprio de deglutir a influência de um teatro de inspiração euro-ocidental.
Em contraponto à personagem Medeia, com seu furor intempestivo, temos o cinismo de Jasão oportunista que com sua fala mansa tenta sofisticamente convencer Medeia de que ele tomou a melhor decisão para todos e que o exílio dela faz parte de seu jeito de protegê-la e aos seus filhos.
O cenário, assim como o próprio espaço cênico são reveladores, ora deixando uma tênue luz revelar parte da movimentação em penumbra e ora ao modo brechtiano, revela toda a estrutura do teatro nos chamando a consciência de espectadores. Utilizando potentes refletores fresnel de 5 mil watts, algo somente visto nas grandes produções de fora da cidade, a luz é sempre reveladora e não deixa nada escondido, é quase a presença de Hélio, o Sol que vai proteger Medeia de seus atos e acusar a omissão e a traição de seus inimigos.
Se toda a peça é construída sob um forte domínio de uma teatralidade de matriz europeia, na noite do dia 25 de setembro fomos brindados, ao final da apresentação, com uma pequena demonstração de danças africanas por parte das atrizes, algo provavelmente não ensaiado, fruto da alegria do momento. Uma bela despedida para o Festival. Viva Burkina Faso. Asè.
* Jessé Oliveira é encenador

2 comentários:

Julio Appel disse...

Crítica enriquecedora ! Parabéns Jessé !
Aproveito a oportunidade e parabenizo o Marcelo Adams e a organização do Poa em Cena pela qualidade das criticas publicadas no blog. Pena a pouca participação dos leitores.
Aprendi sobre teatro neste periodo do festival.
Parabéns e abraço a todos

Marcelo G. Spritzer disse...

Parabéns pela crítica. O teatro é verdadeiramente um laboratório de emoções para a vida. É onde os espectadores elaboram suas vivências, identificam-se com os personagens e incluem-se nas cenas. Talvez por não se dar a importância devida à arte e ao movimento de pensar que ela traz consigo, que a sociedade tenha que reagir muito através do ato e da violência e não da palavra.