A imagem inicial apresenta ao espectador
um cenário inspirado na estética do pintor K. Malevicht (1878-1935) e nos
introduz num mundo de formas geométricas e economia de cores. A obra O quadrado
negro sobre fundo branco marcou o início do movimento suprematista, na primeira
metade do século XX, que valorizava a arte pura em contraposição à arte
aplicada. As projeções utilizadas durante o espetáculo, bem como os figurinos,
sonoplastia e iluminação, sugerem um jogo que referencia a obra deste artista. A
longa diagonal formada por cadeiras chama os personagens para a jornada: cada
um revelará algo essencial. Divididos na árdua tarefa de narrar e viver os
personagens, os atores recorrem a um jogo delicado, onde o silêncio, as pausas
e o não dito, é presença marcante, convidando o público a compartilhar de um
tempo e espaço poéticos.
A
atriz Inês Peixoto – com ótima atuação - já nos situa, logo nas primeiras
cenas, no universo tchekhoviano, quando declara impetuosamente, tomando para si
as palavras da personagem Nina, de A gaivota: “Mas essa peça não tem ação, não
tem história de amor, só declamação!?”. Cinco pessoas, cinco personagens, cinco
atores esperam o fim de um eclipse solar enquanto trazem à tona temas caros aos
seres humanos como fé, talento, felicidade, pecado e vida.
O
espetáculo faz parte do projeto ‘Viagem a Tchékhov’ dos mineiros do Grupo
Galpão, e foi dirigida pelo pedagogo russo Jurij Alschitz, que também assina a
dramaturgia, a cenografia, o figurino e o treinamento do elenco. Em conversa com os atores, indaguei sobre o
método de trabalho realizado com eles por Jurij, na montagem de Eclipse. O
método inclui, entre outros, exercícios voltados para a cumplicidade do jogo
coletivo e o treinamento de velocidades, herança das pesquisas desenvolvidas a
partir do elemento tempo/ritmo do “sistema” de Stanislavsky.
Na costura da
dramaturgia proposta pelo diretor pode-se reconhecer inúmeros fragmentos de
peças, como A gaivota e As três irmãs, e contos, dentre os mais de 150 lidos
para a montagem. Chamo a atenção para alguns contos, como: A groselheira – com
a destacada atuação da atriz Simone Ordones, que num determinado momento de seu
extenso monólogo sobre a felicidade, a personagem declara: “Uma pessoa não necessita
de três archin de terra, de um sítio,
mas sim, do planeta e da natureza inteira, para que possa desenvolver todas as
propriedades e potencialidades do seu espírito livre”; no conto No caminho, depois
da personagem ter confessado toda a tragédia de sua vida em virtude de sua
inconstância diante de suas crenças e paixões declara: “Vivi, sim, mas naquela
embriaguez nem sentia o processo da vida. Não sei se acreditam, mas não me
lembro de nenhuma primavera...”; em O relato do jardineiro-chefe, encontra-se
um personagem que luta pela crença no ser humano e em sua dignidade.
Na
obra de Anton Tchekhov (1860-1904) observa-se a coexistência do sublime com o
material. A mescla desses dois princípios é usada para apresentar a vida em
toda a sua totalidade. A espiritualidade, para Tchekhov, é o mais elevado que o
ser humano pode alcançar. Seus temas não são situados num tempo histórico,
elevando-os assim, para o modo arquetípico, de uma validade eterna, aplicada a
todas as épocas e pessoas. O espetáculo conjuga temas que tratam do surgimento,
nos personagens, desse impulso para o espiritual.
Os
personagens, obrigados a dividir o mesmo espaço enquanto esperam o fim do
eclipse, incluem o espectador nesta espera, flertando com o mesmo, numa
simbiose entre personagem, narrador e ator. Em alguns momentos, a atuação cai
na recitação, tornando difícil para o espectador a visualização das imagens
narradas. No entanto, o espetáculo requer uma escuta e olhar diferenciados. Em
Eclipse, as ações são mais internas, condensadas, sintéticas. Some a isso, histórias
deliciosas, repletas de uma profunda humanidade, contadas e vividas com bom
humor e ironia. É bom deixar-se impregnar pelos personagens que, esperando o
retorno do sol, debatem sobre a função da arte, a importância da fé e da
verdade e o deslumbramento diante da vida.
*Cristiane Werlang é atriz e professora do Departamento de Arte Dramática da UFRGS. Colaborou no texto Nair D'Agostini, diretora, professora e pesquisadora de teatro
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